05/02/23

O grau zero da consciência

 


Pasmei quando, há dias, ouvi uma representante da associação nacional de pais dizer na televisão que a luta dos professores estava a prejudicar as crianças, o direito dos pais ao trabalho e a missão da escola pública. Tive de usar o comando da televisão para ouvir várias vezes, não fosse eu ter entendido mal.

 

Estamos perante o grau zero da consciência, em todas as suas formas – pessoal, ética, política, de classe. Estamos, além disso, perante um portento de estupidez militante. Face à luta dos professores e ao pendor que lhe deu o novo sindicato STOP (sindicato de todos os trabalhadores do ensino, e não apenas dos interesses corporativos e económicos do pessoal docente), a associação nacional de pais dever-se-ia ter calado ou, vamos lá, caso seja arraçada de Marcelo e não consiga fechar o bico, apenas poderia fazer uma declaração genérica: manifestar a sua solidariedade com toda e qualquer luta, sob toda e qualquer forma, que reclame um ensino público de excelência e a dignificação do pessoal docente, técnico e discente.

A associação nacional de pais é uma entidade monstruosa, como todas as entidades que se arrogam o direito de representação nacional. Não afirmo que este tipo de monstros, derivados dos conceitos abstractos de representação, seja totalmente inútil (a começar pelo Parlamento) – certamente uma declaração de solidariedade teria tido um efeito espectacular no curso da luta por um ensino digno e no achincalhamento deste governo insuportavelmente neoliberal –, mas é, por assim dizer, uma coisa abstracta. É manuseável, corrosível, como ficou provado. Situa-se a quilómetros de distância das pessoas concretas. Pode exercer influências, mas não é mobilizadora – é, por inerência do seu carácter abstracto (superstrutural, se preferem), desmobilizadora. Mobilizadoras são as associações locais (de pais, de moradores, etc.) activas no terreno.

Comparemos com exemplos do que vimos na década de 1970. A diferença é abissal, no que diz respeito ao grau de consciência e inteligência interventiva: as associações locais de pais ter-se-iam mobilizado em piquetes de solidariedade com os professores, escola a escola; teriam improvisado brigadas de apoio aos alunos sem aulas, e eventualmente teriam feito pressão para o alastramento de greves de solidariedade noutros sectores. É a diferença que existe entre o grau zero de consciência e uma amadurecida consciência política e de classe; entre a estupidez militante e a inteligência interventiva.

Tenho vergonha de viver num país onde, perante a justa luta de um sector do trabalho que tem sido sistematicamente aviltado e prejudicado nas duas últimas décadas, os «representantes» dos pais vão fazer queixinhas ò sô-tor (isto é, ao governo), em vez de estenderem um abraço solidário aos seus pares. Tirem-me daqui, que isto mete nojo.

Tal como me mete nojo verificar que existe no Algarve uma geração de adolescentes que se mobiliza aos magotes para ir dar cargas de porrada nos desgraçados que, por meia tuta e sob condições de escravatura, vão colher os morangos que eles, adolescentes à beira da idade de votarem (no Chega?), comem ao lanche. É o grau zero da consciência (pessoal, ética, política, de classe). É indigno, e eu tenho vergonha de viver no mesmo território, partilhar das mesmas coisas colectivas, frequentar as mesmas escolas, as mesmas praias e discotecas, sentir-me obrigado a cruzar-me polidamente com eles. Tirem-me daqui, por favor. Tudo, menos este país de merda.

Tenho vergonha de viver num país em que dúzias de doutorados e pós-doutorados aceitam ser pagos para fazer o frete de ir à televisão e aos jornais aviltar a luta dos professores e até (pasme-se) defender os méritos (!) de inovações normativas que ilegalizam formas constitucionalmente adequadas de luta e que são dirigidas especificamente a determinados sectores e até a um sindicato específico. Já tínhamos visto algo assim com os estivadores e os camionistas, mas agora a escala é gigantescamente maior (há milhares de professores por cada estivador).

Tenho vergonha de viver num país em que os opinadores de serviço, além de serem pagos para dizerem as mais mirabolantes bacoradas, não têm aquele grão mínimo de inteligência que permite compreender que todas as greves nos sectores de serviços públicos aparentam prejudicar o público em geral – a não ser que este, evidentemente, se solidarize activamente –, embora, de facto, laborem para o bem geral. É claro que uma greve dos almeidas afecta o saneamento público, que uma greve dos médicos interrompe o exercício pontual da saúde pública, que uma greve dos professores atrapalha pais e alunos, que uma greve dos funcionários públicos provoca distúrbios na máquina burocrática… Ça va de soi, seus grandessíssimos burros. Se assim não fosse, a greve seria inútil! O resultado final dessas formas de luta depende quase em absoluto da atitude com que o público as acolher – se for solidário, quem se lixa é o patrão ou o ministro; se não for solidário, então o próprio público se alcandora à categoria de patrão, e nesse caso, evidentemente, sai prejudicado.

Até uma criança consegue entender que uma colherada de óleo de rícino sabe horrivelmente mal, mas cura. Só os atrasados mentais não entendem; e quanto a isso, nada a fazer – a não ser mudar de país, porque este já fede.

Bem sei que isso da «nação», do país, do «povo», é uma ficção inventada por uma burguesia que, de há três séculos para cá, se arroga o direito de falar em nome de toda a gente e inventar uma panóplia de entidades abstractas, mitológicas, que não têm qualquer correspondência na realidade histórica e social. Bem sei que, ao mandar esta «nação» à merda, posso estar a ser injusto, ou até ofensivo, para uma pequena minoria consciente da população (entre a qual se contam muitos professores). Mas nada disso elide o fedor que por aqui paira.

Sem comentários:

Enviar um comentário