Apesar de não ter uma página no Facebook, não paro de ser diariamente bombardeado com notícias do dito. Chegam-me elas a casa envoltas em longas e enfadonhas recitações, pressurosamente entregues por amigos e conhecidos, quais marçanos ou moços de fretes das transnacionais.
Uma das coisas que nunca deixará de me surpreender no Facebook é a sua capacidade inebriante e viciante, de alguma forma comparável à do álcool. Porém, ao contrário do álcool, o Facebook, que eu saiba, não provoca morte por cirrose, mas antes uma espécie de loucura carregada de disfuncionalidades, no que se assemelha ao álcool. O efeito inebriante (do Facebook e do álcool) leva o utente a baixar os seus escudos e espartilhos comportamentais, a mostrar-se tal qual é – «in vino veritas».
Para que fique claro e para evitar ofensas desnecessárias: conheço gente que usa do álcool (ou do Facebook) com civilidade, conta, peso e medida. Contudo, por regra, o utente do Facebook acaba por tornar-se um autêntico diabo da Tasmânia: ofende o seu semelhante a torto e a direito; torna-se trauliteiro, intolerante, chauvinista, ameaça de morte. Grande parte dos posts publicados no Facebook exsudam ódio enraivecido à humanidade em geral e às opiniões adversas em particular.
Apelando às teses de Ivan Illich, diria eu que o Facebook se tornou um exemplo perfeito dos efeitos mais nefastos da industrialização (neste caso a indústria das «redes sociais») quando esta excede as barreiras naturais que deviam contê-la e se substitui à afabilidade [1]. Reformulando, por palavras minhas, que me perdoe Illich: se o Homem (europeu) era a medida de todas as coisas nas sociedades pré-capitalistas, a indústria (global) passou a ser a medida de todas as coisas nas sociedades capitalistas – sendo o Facebook um exemplo óbvio de industrialização das relações humanas e das redes sociais.
Igualmente surpreendente é o facto de os modernos instrumentos industriais de comunicação social terem feito perder de vista um facto que costumava pairar sobre a cabeça de qualquer pessoa que empunhasse uma pena, nem que fosse um semianalfabeto lavrando um recado escrito: aquilo que nós escrevemos e assinamos hoje, permanece para toda a eternidade, ainda além da nossa morte, e por fim, desfeita a carne e carcomidos os ossos, é a única coisa pela qual poderemos um dia ser avaliados. Esta consciência parece morta, o que não deixa de ser óptimo para o despudor.
Como se verificou recentemente a propósito da demissão da ministra da Saúde, Marta Temido, muitos utentes do Facebook divorciaram-se dos princípios e métodos que proclamavam, para casarem com o seu oposto – aí está, «in facebuko veritas». Para meu grande espanto, vejo pessoas que, apesar de se dizerem revolucionárias, desculpam a ministra, dizendo que ela não quereria levar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao descalabro a que ele chegou. O facto de alguém dizer que um ministro ou uma ministra pode governar contra sua própria vontade já demonstra o grau de insanidade mental a que se pode chegar: tudo quanto foi objectivamente feito pelo Ministério da Saúde nos últimos 11 anos é agora apresentado por estes defensores da ministra como um fenómeno do Entroncamento – os efeitos objectivos da governação não coincidiriam com as intenções subjectivas dos governantes, de modo que estes, coitadinhos, não teriam culpa daquilo que fizeram … embora o tenham feito. Se isto não é esquizofrenia em acção, então não sei que seja.
As mesmíssimas pessoas que acusaram o governo de Passos Coelho de ataque intencional e aleivoso ao SNS, vêm agora, perante um governo do PS que há 7 anos (sete!) perpetua e reforça as políticas neoliberais do seu antecessor, afirmar que não, coitadinhos dos governantes (os actuais, não os anteriores), não era isso que eles queriam fazer.
O simples facto de passar da análise objectiva dos factos para o julgamento de intenções (boas ou más, consoante as preferências e amizades pessoais dos inquiridores) mostra a que ponto chegou o despojamento intelectual de tantos escrevinhadores facebookianos. Mostra também, desgraçadamente, a que arrepiantes extremos poderão eles um dia chegar, já que a substituição da análise objectiva da realidade pelo julgamento de intenções é apanágio das correntes políticas mais tenebrosas, desde os tempos do absolutismo, passando pelos tempos do fascismo, até aos tempos do neoliberalismo na sua fase actual.
Notas:
Origem da imagem de rosto deste artigo: obtida de https://outraspalavras.net/, sem atribuição.
[1] Ivan
Illich, A Convivialidade,
1973: «(…) para além de
um certo limiar, o instrumento deixa de ser servo para passar a ser
déspota. Para além de um certo limiar, a sociedade torna-se uma
escola, um hospital, uma prisão [ou uma rede social digital,
acrescentaria eu] (…) Convivial [≈afável]
é a sociedade onde o homem
controla a ferramenta», p. 7 da ed. francesa, Editions du Seuil.
Tomás
de Aquino, Summa Theologica,
c. 1273: «A
austeridade, por ser uma virtude, não elimina todos os prazeres,
mas apenas o supérfluo
e desordenado: de onde parece pertencer à questão da afabilidade», IIa IIae, q. 168, art. 4, ad 3 m (colhido em Illich, não verificado, tradução minha).
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