10/07/24

Como matar uma cultura e transformar o paraíso num inferno


 

Para compreender a realidade em que vivemos, é indispensável estudar a actual vaga turística, que já não é apenas um fenómeno localizado em certas zonas litorais. É um tsunami que devasta todo o território, exercendo uma tremenda pressão social, económica e cultural. É um dos factores responsáveis pela degradação económica e cultural do país, por sub-reptícias formas de neocolonialismo. Arrasa a paisagem e encharca todos os aspectos da nossa vida.

Logo à partida, porém, a análise da pressão turística tropeça numa dificuldade: a escassez de informação. Os dados sobre turismo massificado ao dispor do público visam sobretudo o seu estudo económico em sentido estrito e quantitativo; não existe informação vocacionada para o estudo qualitativo dos seus efeitos sociais e culturais. Tentarei apontar caminhos para o estudo qualitativo do fenómeno.

Tomando por referência o ano de 2023, temos, por um lado, 10,6 milhões de residentes no território nacional. Por outro lado, desembarcaram em Portugal 27,5 milhões de estrangeiros aerotransportados e aos portos marítimos atracaram 1,8 milhões de turistas (mais de 900 navios!). No total, 29,4 milhões de desembarcados. [Nota: a pegada ecológica deixada por estes transportes aéreos e marítimos é assustadora. Não vou entrar nesse vasto assunto de saúde pública e ambiental e dos seus custos; relembro apenas que Lisboa detém um recorde europeu relacionado com as micropartículas nocivas à saúde, lançadas pelos aviões.]

Temos portanto um total anual de cerca de 30 milhões de estrangeiros desembarcados, sem contar com os que cá chegam por outros meios, num território de 10 milhões de almas. Este número, porém, nada nos diz sobre a situação pontual, em cada momento do nosso dia-a-dia. É quase como se as autoridades responsáveis pelas estatísticas de turismo não quisessem que conhecêssemos a realidade concreta em que vivemos… Dizem-nos que, em média, cada cada estrangeiro em trânsito permanece 3,1 dias no território, mas esta abstracção é inútil, não tem significado – o que seria necessário saber é quantos turistas estão presentes materialmente (e não estatisticamente) em cada momento do nosso dia-a-dia, de forma a podermos estabelecer um rácio turistas/residentes.

Digamos que, de um ponto de vista meramente estatístico, temos um fluxo turístico mensal médio equivalente a 23 % da população residente, ou seja, praticamente um quarto da população. Mas, atendendo a que as «épocas altas» tendem a abarcar 6 meses do ano, é de prever que nesse período a massa de turistas equivalha pelo menos a metade da população residente – uma estimativa já de si impressionante –, sendo mais rarefeita em algumas regiões e noutras excedendo o número de habitantes. Continuamos, porém, sem saber qual a exacta relação diária turistas/residentes.

Façamos então uma experiência de amostragem: passemos um dia numa esplanada, numa cidade como Lisboa, a contar as pessoas que passam, dividindo-as «de ouvido» em dois grupos – os falantes de português (incluindo o português do Brasil, partindo do princípio que na sua maioria são trabalhadores imigrantes) e os falantes de outras línguas (com excepção das línguas orientais, que na sua maioria também correspondem a imigrantes residentes). Feitas as contas, chegamos à assustadora conclusão de que os residentes representam com frequência entre zero e 10 % dos transeuntes – depende dos dias e das zonas da cidade, evidentemente. Dir-se-ia que são eles os turistas.

Quanto aos efeitos económicos do tsunami turístico, a primeira coisa que salta à vista é a especulação imobiliária. Para quê produzir parafusos ou baterias de lítio, investir numa fábrica geradora de lentos lucros e elevados riscos, se um só apartamento pode render hoje em dia para cima de 4 mil euros mensais brutos, alugado através do AirBnb?

A noção de que a habitação é uma necessidade humana fundamental foi às urtigas – a defesa extremista do princípio sacrossanto da propriedade imobiliária sobrepôs-se a tudo o mais com uma violência inusitada, custe as vidas que custar. As consequências, ao nível da consciência colectiva, já se fazem sentir, e ainda agora a procissão vai no adro – com o correr do tempo, revelar-se-á até onde os tentáculos desta degradação cultural podem chegar. De facto, as noções ligadas à propriedade imobiliária andam associadas à questão de saber se a água, a terra, o ar e o sol são bens comuns ou bens privados; por arrasto, o mesmo se pode dizer da Natureza em geral e, in fine, de coisas como as sementes, o código genético, e por aí fora. O problema aqui é que a visão do mundo, ou seja a ideologia, tende a ser muito mais coesa numa sociedade do que parece à primeira vista, e uma maçã (ou uma ideia) podre rapidamente contagia as suas irmãs.

O aumento desmesurado de rendas e preços por metro quadrado não bastou para satisfazer a ganância imobiliária. Nos antigos bairros populares dificilmente encontramos uma casa para alugar em regime permanente. Tornou-se mais lucrativo para os proprietários alugar as habitações em períodos de curta duração.

Dormidas em hotelaria: 63 milhões; dormidas em alojamento local: 6 milhões, ou seja, 10 % do mercado hoteleiro de dormidas. Se usarmos estes números, encontramos uma média de cerca de 200 mil turistas por dia presentes no território – número puramente teórico, que provavelmente nada tem a ver com a realidade vivida ou que apenas a exprime por defeito.

Contudo, antes de aceitarmos estes números, reparemos num estranho critério oficial: nas instituições nacionais e europeias de estatística, a categoria «alojamento local» apenas contabiliza os alojamentos com 10 camas ou mais; todos os outros (provavelmente a larga maioria do alojamento local) ficam de fora, não existem. Do que não restam dúvidas, porém, é que a transformação de apartamentos normais em apartamentos de alojamento local esvaziou os antigos bairros populares e os transformou em estâncias turísticas. Temos bairros inteiros que foram transformados em estâncias de turismo e que estão constantemente esgotados. Alguém acredita que um bairro inteiro de habitações transformadas em «alojamento local» tenha menos camas para turistas do que os hotéis existentes na mesma zona? Acresce uma subtileza semântica: alojamento local soa diferente de hotelaria; mas em substância e em efeitos objectivos não difere muito.

No início desta brutal vaga turística, a babel linguística era bastante sedutora, especialmente para quem gosta de ambientes cosmopolitas, como é o meu caso. Porém, com o correr do tempo e à medida que a pressão demográfica do turismo massificado aumentava, as posições inverteram-se: gerou-se a sensação de sermos nós estrangeiros em terra alheia. Este desenraizamento tem, em muitas pessoas, efeitos dramáticos. Os desequilíbrios sociais e culturais provocados por esta pressão demográfica e linguística são muito subtis e exigiriam estudos especializados de psicologia, sociologia e antropologia, que eu não sei dizer se existem ou não.

Por outro lado, a esmagadora maioria dos turistas que vêm a Portugal passar umas saudáveis e bem merecidas férias, embora tenha salários equivalentes ao dobro ou triplo dos portugueses, é, à escala do seu país de origem, de classe média/baixa – o chamado «turismo de pé descalço», que não se dá a certos luxos, como seja o aluguer de carros; mas gostam de deambular livremente, e portanto constituem uma enorme massa de utentes dos transportes públicos. Ora os transportes públicos portugueses já eram insuficientes e mal estruturados. Estão por isso a rebentar pelas costuras – é normal em Lisboa os residentes a caminho do trabalho verem-se nos transportes públicos em competição selvática com os turistas; uma competição tanto mais agressiva, quanto o turista médio europeu e norte-americano (ao contrário dos provenientes de outros continentes) tende a comportar-se como se estivesse em terra conquistada, desrespeitando com enorme frequência as filas de espera e os lugares reservados.

A especulação imobiliária e o défice de transportes públicos ganha ainda outra dimensão, tanto mais grave quanto entra em contradição aberta com as necessidades ambientais e climáticas: ao longo de uma década, à medida que a pressão turística aumentava e as casas para habitação permanente desapareciam dos centros urbanos, os residentes foram fugindo para a periferia, cada vez mais longe; porém, mesmo na periferia as rendas tendem a correr atrás dos preços do centro, de modo que além de haver uma subida generalizada dos preços, todos os anos a periferia urbana se estende mais uns quilómetros. Isto, por sua vez, leva muitos habitantes em fuga a acrescentarem mais uma despesa ao seu orçamento familiar: já não lhes é possível ir trabalhar sem disporem de um carro – ou até de um carro para cada membro activo da família. O nível de poluição e carbonização aumenta assim desmesuradamente. Por outro lado, o aumento do tempo de deslocação, como se sabe, representa mais tempo de trabalho não pago; e é tempo roubado ao descanso, ao lazer e ao convívio. Mais uma vez, as consequências culturais a longo prazo serão tremendas.

A expansão inumerável das actividades ligadas ao turismo altera profundamente a estrutura do emprego no país; contribui para secar os postos de trabalho de alto valor acrescentado. É comum hoje em dia um jovem andar vários anos a queimar as pestanas para fazer um curso superior, e depois ir servir às mesas dos turistas, fazer-lhes a cama ou trabalhar em cadeias de transporte e distribuição do tipo Uber. Mas como, em qualquer dos casos, os salários são baixíssimos e as rendas de casa altíssimas, estes jovens não podem sair de casa dos pais ou dos avós – cria-se uma geração dependente, que vê ser destruída uma série de hábitos e valores culturais. O velho ditado «quem casa quer casa» não passa hoje de uma anedota histórica.

Depois de várias gerações terem investido couro e cabelo no ensino, em vez de tirarmos proveito desse «produto» gerado com tanto sacrifício, exportamo-lo – se já éramos periferia, cada vez o somos mais, e cada vez mais especializados: somos agora uma estância que recebe idosos reformados e modestos trabalhadores a precisar de férias, e exporta jovens formados com cursos superiores – tudo isto pago do nosso bolso, proporcionando enormes poupanças públicas e sociais aos países do centro.

Entretanto, nos antigos bairros de habitação, a esmagadora maioria das lojas de utilidade popular não só ficou sujeita à especulação das rendas, obrigando-as a encerrar, como deixou de ter procura suficiente para sobreviver, dada a escassez de moradores permanentes: drogarias, mercearias, talhos, pequenos serviços (electricista, canalizador, estofador, sapateiro, costureira, etc.), pequenos cafés populares, tudo isso desapareceu. Subsiste apenas o comércio necessário à actividade turística. Os pequenos cafés e restaurantes populares, ícones essenciais à «socialização» das camadas populares lusitanas, desapareceram, de modo que apenas subsistem os restaurantes demasiado caros para a bolsa do português médio e adaptados às culturas estrangeiras predominantes.

O desaparecimento dos restaurantes populares é um dos sintomas de como o turismo pode arrasar uma cultura da forma mais brutal e colonial. A famosa culinária portuguesa, que era praticada em quase todos os restaurantes populares e bistros e que apresentava uma elevada sofisticação e uma variedade espantosa, está em vias de desaparecer. O mesmo sucedeu à famosa doçaria conventual, praticamente extinta, e aos variadíssimos vinhos portugueses, dado que do ponto de vista comercial é mais simples, seguro e «turístico» «normalizá-los», apostando na produção de vinhos ao gosto francês.

As colectividades, actividades associativas, centros culturais sem fins lucrativos, etc., desapareceram das grandes cidades – não lhes foi possível suportar as rendas actuais; e, na falta de instalações que sirvam de ponto de encontro e permitam abrigar as suas actividades, definham e morrem. O desaparecimento das colectividades e associações é o prenúncio da morte de uma grande fatia da educação e acção cívica. Enfim, é espantoso como o turismo massificado pode secar a alma de um povo.

As instituições encarregadas da protecção do património histórico, das reservas naturais e até das paisagens declaradas património da humanidade foram cilindradas pelo poder económico. É normal hoje em dia construir um elevador público para uso dos turistas, mesmo que para isso seja necessário destruir monumentos clássicos e medievais, como aconteceu no centro histórico de Lisboa. Tornou-se corrente vermos paisagens protegidas, algumas delas último refúgio de espécies endógenas ou em vias de extinção, serem arrasadas para darem lugar a empreendimentos turísticos, aeroportos, marinas, campos de golfe, etc. É um facto comprovado: a prazo, o turismo «industrial» tende a fazer tábua rasa do estado de direito. E não será certamente por acaso que nas regiões onde o turismo massificado já impera há mais de seis décadas (como é o caso do litoral algarvio) assistimos à vitória absoluta das forças de extrema direita, ao crescimento de um lumpen altamente tóxico e a um número recorde de actos bárbaros de racismo e xenofobia.

Paradoxalmente, grande parte dos ícones locais que ajudaram a vender o turismo em Portugal foram destruídos pela própria actividade turística «industrial»: a bonomia dos Portugueses, a boa comida, o ambiente urbano e arquitectónico, as paisagens naturais paradisíacas, tudo foi adulterado ou até eliminado pela actividade turística e pelas desigualdades sociais, de modo que o que está a ser vendido ao turista é um conjunto de mitos e ícones impressos em postais mas apagados da realidade. Até os elementos que não são (ou não deviam ser) propriedade de ninguém – o ar, a água e o mar, o sol, as ruas, as praias – foram parcialmente adulterados e privatizados. O que o turista encontra hoje em dia, e cada vez mais a cada ano que passa, é uma espécie de Disneylândia onde os habitantes locais são obrigados a viver como figurantes/serventes.

De uma hipocrisia inexplicável é o facto de as forças de direita atacarem a abertura de fronteiras à imigração (embora esta constitua apenas 7-8 % da população e contribua para a sua riqueza colectiva), enquanto a abertura total e incondicional de fronteiras ao turismo, que em certas épocas atafulha as ruas a quase 100 %, não merece o mínimo reparo e é até louvada (ainda que ninguém me saiba dizer para que sítio do mundo corre grande parte da receita gerada). A própria esquerda tende a silenciar o assunto, presumo que por patético medo de ser apelidada xenófoba.

Em suma, o turismo provocou, num curto espaço de tempo, uma crise habitacional, cultural e económica de proporções gigantescas, da qual, lastimo informar, jamais recuperaremos – regra geral, os factores culturais extintos podem ser substituídos por sucedâneos, mas jamais serão recuperados, mesmo que continuem a fazer sentido ou a ser necessários ou desejáveis.

Se fôssemos uma ilha minúscula, de limitados recursos humanos e naturais, talvez nos víssemos obrigados a aceitar o turismo em vez da fome – a barriga quase sempre vence os dilemas desta vida. Mas não é esse o caso. Recursos naturais e humanos não nos faltam. Nos últimos tempos produzimos energia renovável em quantidade suficiente para ser exportada (embora tenhamos aberto mão desse recurso estratégico, privatizando a sua produção). Temos terras cultiváveis e área marítima suficientes para manter a autonomia alimentar (se não as substituirmos por campos de golfe e marinas); água de rega suficiente em mais de metade do país; a maior reserva europeia de lítio (indispensável aos planos actuais e futuros de industrialização descarbonizada a nível mundial); azeite, sardinhas e laranjas quanto baste para inundar vários mercados externos; durante 50 anos investimos pesadamente no sistema de ensino e por isso temos mão-de-obra especializada mais que suficiente, a qual exportamos em vez de a utilizar (isto é, investimos para proveito alheio); etc. Enfim, não precisamos para nada de turismo massificado, excepto talvez nalgumas regiões que são ilhas de recursos mais limitados. Porque nos sujeitamos à actividade destruidora do turismo massificado? Porque não impomos quotas (à escala da população local) para entrada de turistas? Porque não impomos quotas drásticas na relação entre alojamento transitório e alojamento permanente? Porque não taxamos o turismo para subsidiar o alojamento de associações e grupos sem fins lucrativos? Porque não pomos freio a este saque desregrado, em tantos aspectos reminiscente das invasões francesas? Mistério indecifrável do capitalismo.

O turismo empresarial, massificado, é, juntamente com a guerra, a actividade humana globalmente mais destrutiva. Por onde passam, ambos destroem e esterilizam a paisagem; ambos arrasam o parque habitacional ao dispor da população; ambos saqueiam os bens humanos e materiais de uma região; ambos corroem as mentalidades e a cultura de um povo; ambos provocam a miséria mais profunda dos habitantes, para benefício de uma elite distante.

O turismo empresarial massificado mercantiliza definitivamente todas as relações humanas, tornando-as objectos de consumo rápido, quais pizzas. Tudo aquilo que no passado fazíamos por prazer com os ocasionais turistas que porventura encontrássemos na rua – passear com eles, mostrar-lhes as terras, as gentes, os costumes, o património cultural e arquitectónico, as gastronomias, as ginjinhas –, passou agora a ser um negócio. Em certas regiões turísticas, a prostituição é massificada. Em suma, tudo o que diz respeito ao prazer e à sociabilidade é falsificado e mercantilizado.

O turismo empresarial massificado, tal como a guerra, devia ser extinto. Dever-se-ia planificar a substituição progressiva dos postos de trabalho ligados ao turismo por trabalho digno, produtivo. Dever-se-ia combater ferozmente toda a mercantilização do prazer e do lazer.

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