«Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa: salvar a humanidade.» - Almada Negreiros
20/05/16
Uma demonstração científica feita em cima do cadáver de Manoel de Oliveira
A EDP criou um concurso para atribuição duma bolsa no valor de 50.000 euros para estudantes de cinema ou artes audiovisuais que apresentem um projecto de filme sujeito ao seguinte critério único (art. 9º do regulamento): «Os critérios de seleção de candidaturas a considerar pelo júri serão inspirados no trabalho do mestre Manoel de Oliveira, um dos grandes precursores do neorrealismo, pelo que serão mais ponderados os filmes ou documentários que prossigam o estilo neorrealista, designadamente que utilizem cenários reais e atores não profissionais.» É uma daquelas tiradas que nos obriga a ler o parágrafo 3 vezes seguidas, para termos a certeza de que lemos bem. Eis Manoel de Oliveira promovido a neorrealista!
Este regulamento arrasa a maior parte do meu universo cultural: todos os filmes supostamente neorrealistas que vi, boa parte deles feitos com actores profissionais e cenários preparados (em estúdio ou a partir de sítios reais) afinal não eram neorrealistas, eram... sei lá, desisto de me deitar a adivinhar. Afinal o realizador Manoel de Oliveira, que eu tinha por inclassificável, era um neorrealista? Uau! Aí está uma chinesice inesperada.
Não vou entrar na discussão de catálogos, estéticas e métodos criativos cinematográficos, matéria em que sou bastante ignorante (mas nitidamente não tanto como a administração da EDP), porque não quero fazer má figura. Quem sabe dessa poda que aí meta seu podão. Mas sugiro que os responsáveis da EDP pelo espantoso regulamento da bolsa sejam sujeitos 3 vezes ao dia, antes das refeições principais, a choques eléctricos, até ficarem definitivamente curados e deixarem de dizer bestialidades sobre assuntos que não dominam. Como já estamos muito escaldados nestes últimos 5 anos, e antes que a população portuguesa se veja obrigada a suportar mais despesas por conta de chulos, sugiro também que seja a própria administração da EDP a pagar a conta dos choques eléctricos.
A criação da «Bolsa EDP Manoel de Oliveira» foi noticiada no Público, onde um leitor se deu ao trabalho de manifestar a sua indignação, dizendo que tem vergonha dos artistas que aceitam dinheiro da EDP, dos bancos, do Estado, etc. Esta é uma daquelas cretinices que já por várias vezes tentei zurzir aqui, mas ela resiste. Seguindo a opinião deste leitor, teríamos de deitar para o lixo a quase totalidade da obra artística universal, pelo menos desde o Renascimento, a começar por J. S. Bach e a acabar em M. de Oliveira. De facto muitos desses autores (não seria o caso de M. de Oliveira, mas adiante) só tiveram dinheiro para comprar pão - e portanto para se manterem vivos e produzirem as suas obras - graças ao dinheiro de mecenas, sejam eles o Estado ou os banqueiros ou os negreiros ou os latifundiários ou os herdeiros de piratas saqueadores das populações costeiras ou qualquer outro ladrão protegido pela lei, pelo Estado e pelo sagrado princípio da propriedade privada (tenha ela que origem tiver), que se encontre cheio de massa e que resolva usar um artista como meio de ostentação.
Recapitulando: o referido leitor indignado do Público tem vergonha desse artista.
Eu, pelo contrário, tenho vergonha dos precários que enganam velhinhas nos call center ou aos balcões de atendimento das companhias de telecomunicações, dos funcionários bancários que enganam reformados e lhes sugam o pecúlio acumulado ao longo de 40 anos de trabalho para o investirem em aplicações financeiras tóxicas, dos responsáveis por departamentos académicos que roubam o trabalho dos seus colegas e sobem na hierarquia às suas cavalitas, dos banqueiros e empresários que fazem fortuna à custa dos impostos alheios, da dívida pública, dos recursos colectivos e da venda de armas, branqueando os seus capitais sujos por meio de falsas lojas, falsas empresas e falsa generosidade mecénica, etc. O indignado leitor do Público pega nesta questão pela ponta oposta: tem vergonha do reformado que foi enganado, do contribuinte que foi espoliado, do artista que foi alimentado, ...
Já há umas décadas um professor universitário italiano cujo nome não me ocorre agora publicou a demonstração de que a estupidez é, à semelhança da velocidade da luz, uma constante do universo: encontra-se uniformemente distribuída e a sua percentagem no total da população é constante, quaisquer que sejam os valores das restantes variáveis; não olha a raças, credos, géneros, graus académicos, nada. A administração da EDP, certamente pessoas excepcionais atendendo ao cargo em que foram investidos, e o referido leitor do Público, certamente um homem comum, tiveram a gentileza de vir confirmar a lei da constância universal da estupidez - e ainda bem, porque é de boa regra científica duvidar de tempos a tempos das conclusões adquiridas e voltar a verificá-las.
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gravura usada: quadro a óleo de Andy Thomas, onde cada pirata representa uma figura notável da história da música norte-americana
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