Manual da entrista (de Codex Seraphinianus, Luigi Serafini, 1976-78, ed. 1981) |
Hoje fui apanhado de surpresa por uma palavra que desconhecia: «enterismo». Numa fracção de segundo, que é o tempo que temos num diálogo dos tempos que correm – onde o intervalo e a pausa são proscritos e todas as decisões têm de ser calculadas e tomadas em milésimos de segundo –, pensei comigo que seria o oposto de «disenterismo» – ou seja, uma prisão de ventre patológica e extrema.
Como não sou completamente parvo e o contexto da conversa era político, pus-me a pensar que «enterismo», ainda que fosse um termo técnico da medicina, neste caso seria metáfora: alguém, ou alguma organização política, armazenava de forma continuada uma quantidade crescente de excremento, até explodir. A não ser que lhe fosse administrado um supositório contra o «enterismo».
Por fim, a curiosidade levou-me a investigar um pouco. Percebi que estava enganado, que não se tratava de «enterismo» mas sim de «entrismo», e que (como de costume) a culpa da minha confusão auditiva provinha do facto de ser usado um estrangeirismo (desnecessário, como de costume) para designar a ideia de «infiltração». Um «entrista» é portanto uma pessoa que se infiltra numa organização (vamos supor: uma igreja, ou seja, um conjunto de credos e convicções organizados socialmente na forma de congregação), para virar do avesso a cabeça dos fiéis e ou acabar com a igreja ou ficar na posse da caixa das esmolas. Pasmei: o entrismo não é afinal um volvo, mas, muito pelo contrário, um supositório destinado a provocar a diarreia (organizativa, mental, etc.).
O «entreiro» (vulgo: infiltrado) é portanto a pessoa que se imiscui na intimidade duma organização para, usando de hipocrisia e dissimulação, procurar estender a mão à caixa dos óbulos ou pura e simplesmente destruir tudo à sua volta.
Quis saber mais desta escatologia e indaguei. Conclusão: estava a lidar com uma seita de leninistas e trotskistas – coisa que continuo a não ser capaz de definir com rigor, mas tudo bem. Na minha inocência (mais uma vez) e nunca tendo lidado de tão perto com tais bisnaus, fiquei pasmo ao descobrir que estas seitas se regem por uma coisa chamada «centralismo democrático». O centralismo democrático, segundo indaguei, é uma ética deontológica; usa portanto a noção de dever categórico no sentido kantiano e leninista (isto existe?).
Nisto o meu espanto decuplicou, porque os adeptos da seita aceitam o conceito de categorias «ao natural», isto é, como dado adquirido e sem discussão, como se estivéssemos ainda na idade proto-filosófica de 1910. Em Kant é isto desculpável, atendendo à época em que viveu, mas no século XXI, após 50 anos de investigação científica e respectiva discussão filosófica sobre a noção de categorias, após a chamada «revolução cognitiva», custa a crer que alguém que se tem na conta de vanguarda esclarecida aceite dogmaticamente o dever categórico, sem discussão, como sendo a coisa mais natural da natureza.
Mesmo que tentemos aplicar em cima disto as lógicas avançadas do século XX – por exemplo, para usar a versão mais simples, a lógica dos conjuntos difusos –, resulta que um capitalista tem o dever categórico de explorar toda a gente com dolo e um proletário tem o dever categórico de lhe dar um tiro na nuca. Convenhamos: a lógica cartesiana e as categorias de Kant exigem muito menos esforço mental do que qualquer discussão avançada e séria sobre o assunto – não por serem mais simples, mas apenas por terem a apoiá-las 2300 anos de cultura firmemente cravada nos nossos cérebros, dispensando-nos de grandes esforços mentais para ver mais claro e mais simples. Conclusão: as seitas leninistas/trotskistas são, por definição, conservadoras. Mas ensinaram-me hoje uma palavra nova (para mim), ainda que desnecessária, e por isso tenho de lhes averbar um ponto. Ainda que desnecessário; ainda que escatológico.
(versão corrigida em 21-06-2016)
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