Erdoan
(na versão inglesada: Erdogan) começou por ser futebolista. Daí
passou a presidente da câmara de Istambul, depois a presidente do
partido AKP, depois a primeiro-ministro e por fim tornou-se
presidente da Turquia. Pacientemente, amarinhou de jogador de 2ª
divisão a árbitro supremo.
Poucas horas depois do início do golpe militar,
já Erdoan tinha mostrado o cartão vermelho a 3000 turcos
aprisionados ou destituídos. Averbemos-lhe um ponto – tanta
presteza exige muito trabalho de casa.
72 horas depois do golpe, o número de
prisioneiros e de gente destituída – funcionários públicos,
professores, juízes, estudantes, jornalistas, líderes religiosos,
etc. – já ascendia a 60.000. Quanto à comunicação social,
foram 24 as licenças revogadas [Esquerda.net].
Eis o aspecto dos prisioneiros:
Estes pobres diabos não têm direito a pedir a
advogado, nem a contactar a família por telefone [Turkish
Review].
Em imagens transmitidas pela televisão vemos
prisioneiros dentro de um autocarro, esfarrapados e seminus,
nitidamente amachucados. Noutras imagens captadas dentro de uma sala,
em jeito de retrato de família, dúzia e meia de prisioneiros
manietados, com as caras ensaguentadas e olhos negros. «Eles vão
dar-nos mais nomes», diz Erdoan. Não admira que não se veja um
pingo de contestação nas ruas.
Alguém escreveu por aí que é normal uma vítima
de golpe militar ficar um pouco paranóica. Não nos iludamos – não
há nada de qualitativamente novo na Turquia em resultado do golpe. A
intentona apenas serviu de pretexto para incrementar
quantitativamente aquilo que as organizações humanitárias já
sabem há muito:
«Assim que entramos nas instalações [duma certa
prisão na Turquia], sentimos a falta de oxigénio e o ar estagnado
(…) na camarata onde 60 mulheres partilham um espaço concebido
para 20, uma nuvem densa de moscas ocupa o espaço restante», afirma
um polícia – se até um polícia produz tais afirmações, não
admira que Erdoan tenha encarcerado ou suspendido milhares de
polícias nos últimos dias. «A Fundação para os Direitos Humanos
na Turquia relatou 724 casos de tortura e maus tratos em prisões em
2011» [Global
Post].
«Não sei se é caso para nos orgulharmos, mas
posso afirmar que a Turquia tem os presos políticos mais educados do
mundo. Segundo um relatório publicado pela Iniciativa pelos
Estudantes Presos, datada de Junho de 2012, há 771 estudantes
universitários nas prisões da Turquia.» E em que condições? «Há
377 prisões na Turquia, com capacidade para 121.000 pessoas. No
entanto, existem mais de 132.000 prisioneiros. Isto significa que
mais de 10.000 não têm condições adequadas (…)» A advogada
Evrim Deniz Karatana, membro da Associação dos Advogados
Progressistas da Turquia, acrescenta: a Turquia já era, em 2012, o
país com mais prisioneiros políticos em todo o mundo (é caso para
perguntar se ela ainda estará viva a esta hora) [The
Naked Facts].
Dois meses antes da tentativa de golpe de 15 de
Julho corrente, dois jornalistas foram condenados a cinco anos de
prisão por terem publicado provas irrefutáveis de o Governo turco
distribuir armas aos guerrilheiros do Estado Islâmico na Síria. Os
jornalistas recorreram da sentença e foram postos em liberdade,
aguardando nova sentença. Pior para eles – embora tenham escapado
com vida, foram baleados assim que saíram à rua. «Hoje sofremos
duas tentativas de assassínio: uma armada, outra judicial» [AM1380
The Answer].
Como é de regra numa ditadura (ainda que
mascarada de democracia), o Governo turco não faz distinção entre
criminosos de delito comum, revolucionários, socialistas, patriotas
curdos, extremistas religiosos (da outra facção), jornalistas
impertinentes, professores universitários humanistas, …
Este é o regime com quem a União Europeia
negocia alegremente uma entrada para clientes habituais, pedindo-lhe
apenas polidamente que vista um casaco e uma gravata – isto é, que
suspenda a pena de morte. Bons tempos esses, em que alguns países da
Europa decretavam embargos a Salazar, a Pinochet, ao regime de
apartheid, … O que mais me assusta nestes acontecimentos
situados a 3200 km da minha porta, é a atitude perfeitamente
descontraída e confortável da UE perante o comportamento dos
governos turcos durante anos a fio e a sua indiferença conivente
perante um chefe de Estado que destitui 3000 juízes e 1600 reitores
universitários – fico ciente do que podem esperar os cidadãos
europeus, na pior das hipóteses.
Aqui e ali, uma ou outra voz discordante: «Parece
que o Governo já tinha preparado uma lista de gente a ser detida,
antes do golpe», afirmou o comissário europeu para o alargamento
[Turkish
Review]. Em contrapartida, nos telejornais portugueses
ouvimos de 30 em 30 minutos, sem contraditório, o eco das palavras
de Erdoan: trata-se de salvar a democracia e proteger o Estado de
direito. Pergunto-me em que escola terá andado um jornalista que
noticia à cabeça que o poder executivo turco destituiu 3000 juízes,
para afirmar a seguir que a medida visa manter o Estado de direito
(ou seja, por definição, a separação de poderes).
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