21/07/16

Pinochetada à porta de casa



Erdoan (na versão inglesada: Erdogan) começou por ser futebolista. Daí passou a presidente da câmara de Istambul, depois a presidente do partido AKP, depois a primeiro-ministro e por fim tornou-se presidente da Turquia. Pacientemente, amarinhou de jogador de 2ª divisão a árbitro supremo.
 
Poucas horas depois do início do golpe militar, já Erdoan tinha mostrado o cartão vermelho a 3000 turcos aprisionados ou destituídos. Averbemos-lhe um ponto – tanta presteza exige muito trabalho de casa.
 
72 horas depois do golpe, o número de prisioneiros e de gente destituída – funcionários públicos, professores, juízes, estudantes, jornalistas, líderes religiosos, etc. – já ascendia a 60.000. Quanto à comunicação social, foram 24 as licenças revogadas [Esquerda.net].
Eis o aspecto dos prisioneiros:

 

Estes pobres diabos não têm direito a pedir a advogado, nem a contactar a família por telefone [Turkish Review].
 
Em imagens transmitidas pela televisão vemos prisioneiros dentro de um autocarro, esfarrapados e seminus, nitidamente amachucados. Noutras imagens captadas dentro de uma sala, em jeito de retrato de família, dúzia e meia de prisioneiros manietados, com as caras ensaguentadas e olhos negros. «Eles vão dar-nos mais nomes», diz Erdoan. Não admira que não se veja um pingo de contestação nas ruas.

Alguém escreveu por aí que é normal uma vítima de golpe militar ficar um pouco paranóica. Não nos iludamos – não há nada de qualitativamente novo na Turquia em resultado do golpe. A intentona apenas serviu de pretexto para incrementar quantitativamente aquilo que as organizações humanitárias já sabem há muito:

 
«Assim que entramos nas instalações [duma certa prisão na Turquia], sentimos a falta de oxigénio e o ar estagnado (…) na camarata onde 60 mulheres partilham um espaço concebido para 20, uma nuvem densa de moscas ocupa o espaço restante», afirma um polícia – se até um polícia produz tais afirmações, não admira que Erdoan tenha encarcerado ou suspendido milhares de polícias nos últimos dias. «A Fundação para os Direitos Humanos na Turquia relatou 724 casos de tortura e maus tratos em prisões em 2011» [Global Post].

«Não sei se é caso para nos orgulharmos, mas posso afirmar que a Turquia tem os presos políticos mais educados do mundo. Segundo um relatório publicado pela Iniciativa pelos Estudantes Presos, datada de Junho de 2012, há 771 estudantes universitários nas prisões da Turquia.» E em que condições? «Há 377 prisões na Turquia, com capacidade para 121.000 pessoas. No entanto, existem mais de 132.000 prisioneiros. Isto significa que mais de 10.000 não têm condições adequadas (…)» A advogada Evrim Deniz Karatana, membro da Associação dos Advogados Progressistas da Turquia, acrescenta: a Turquia já era, em 2012, o país com mais prisioneiros políticos em todo o mundo (é caso para perguntar se ela ainda estará viva a esta hora) [The Naked Facts].
  
Dois meses antes da tentativa de golpe de 15 de Julho corrente, dois jornalistas foram condenados a cinco anos de prisão por terem publicado provas irrefutáveis de o Governo turco distribuir armas aos guerrilheiros do Estado Islâmico na Síria. Os jornalistas recorreram da sentença e foram postos em liberdade, aguardando nova sentença. Pior para eles – embora tenham escapado com vida, foram baleados assim que saíram à rua. «Hoje sofremos duas tentativas de assassínio: uma armada, outra judicial» [AM1380 The Answer].
 
Como é de regra numa ditadura (ainda que mascarada de democracia), o Governo turco não faz distinção entre criminosos de delito comum, revolucionários, socialistas, patriotas curdos, extremistas religiosos (da outra facção), jornalistas impertinentes, professores universitários humanistas, …

Este é o regime com quem a União Europeia negocia alegremente uma entrada para clientes habituais, pedindo-lhe apenas polidamente que vista um casaco e uma gravata – isto é, que suspenda a pena de morte. Bons tempos esses, em que alguns países da Europa decretavam embargos a Salazar, a Pinochet, ao regime de apartheid, … O que mais me assusta nestes acontecimentos situados a 3200 km da minha porta, é a atitude perfeitamente descontraída e confortável da UE perante o comportamento dos governos turcos durante anos a fio e a sua indiferença conivente perante um chefe de Estado que destitui 3000 juízes e 1600 reitores universitários – fico ciente do que podem esperar os cidadãos europeus, na pior das hipóteses.
 
Aqui e ali, uma ou outra voz discordante: «Parece que o Governo já tinha preparado uma lista de gente a ser detida, antes do golpe», afirmou o comissário europeu para o alargamento [Turkish Review]. Em contrapartida, nos telejornais portugueses ouvimos de 30 em 30 minutos, sem contraditório, o eco das palavras de Erdoan: trata-se de salvar a democracia e proteger o Estado de direito. Pergunto-me em que escola terá andado um jornalista que noticia à cabeça que o poder executivo turco destituiu 3000 juízes, para afirmar a seguir que a medida visa manter o Estado de direito (ou seja, por definição, a separação de poderes).

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