Uma das coisas mais perigosas em que podemos tropeçar é uma pessoa bronca que tenha a possibilidade de exercer alguma influência na nossa vida. As desgraças daí resultantes serão tanto maiores quanto mais enérgica for a bronquice.
É fácil confundir uma pessoa bronca e cheia de energia com alguém medianamente inteligente e fiável. Por defeito de cultura (pelo menos a ocidental), a iniciativa esfuziante ou frenética pode semelhar a inteligência. Um – ou uma, em bom português o género é indistinto na falta de marcador1 –, um bronco mole, sem iniciativa, corresponde com facilidade ao estereótipo da bronquice, pondo-nos logo alerta. Mas o chavasco ágil, dinâmico, por vezes ambicioso, voluntarista, finta com facilidade as primeiras impressões de quem esteja menos atento. E de repente é tarde – deixámos a bronquice entrar na nossa vida, no nosso ambiente de trabalho, na nossa intimidade, e ela revela-se uma lapa, não há forma de nos livrarmos.
Um bronco, ainda que possa ter dias melhores, quase nunca é capaz de aceder por seus próprios meios às operações mentais mais elevadas; por isso frequentemente leva a metonímia e a metáfora à letra. Se, por exemplo, dizemos «fulano veste-se da cor do dinheiro» ou «S. Bento quer pôr-nos de tanga», a seguir temos de laboriosamente explicar tintim por tintim o significado, o contexto e a intenção da tirada, sob pena de se criar uma cadeia fatal de consequências. Primeiro, a bronquice leva uma parte qualquer da metáfora à letra. Nunca se sabe qual parte será essa, pois a ruptura da operação mental dá-se algures, fora de toda a lógica, e portanto é imprevisível. Depois, as consequências derivadas começam a acumular-se de formas que nunca poderíamos ter imaginado, precisamente porque não obedecem à lógica nem à experiência empírica organizada.
Praticamente todos os lugares onde a bronquice se manifeste são perigosos, uns mais do que outros. Na vida íntima de um casal, por exemplo, o resultado pode ser desastroso, pode mesmo levar à loucura, porque a bronquice constante provoca constantes situações de disfuncionalidade; e a disfuncionalidade continuada, seja ela de que tipo for, é amiga da insanidade mental. Mas na política, na vida colectiva, a coisa é ainda mais grave, porque são milhares ou milhões de pessoas que estão em jogo. E também aí o processo progressivo de insanidade mental alastra, mas neste caso com dimensões numéricas gigantescas. Ora as estruturas hierarquizadas de poder são como mel para um bronco: exercem uma atracção fatal.
O bronco não domina certos métodos. Por exemplo, a progressão por tentativa e erro é-lhe desconhecida. Em certo sentido pode dizer-se que o bronco é a excepção que abala a teoria de Pavlov. Por mais graves que sejam as consequências do erro (por vezes com risco da própria vida, quando não da dos outros), o bronco irá repeti-lo vezes sem conta, até que alguém a quem reconheça autoridade lhe diga: «não podes voltar a fazer isso». Este elemento, a autoridade, é um dado da maior importância: o princípio da autoridade é mais forte no bronco do que o princípio da inteligência. (Note-se que neste caso «autoridade» conota poder puro e duro, não denota o sentido etimológico de desenvolvimento e criação contido em «autor».)
Não são só os outros que sofrem com os erros do bronco. O bronco sofre em igual medida os seus próprios erros. Sente na pele que alguma coisa não está a correr bem, mas a bronquice não lhe permite perceber o quê e porquê. Sofre o confronto permanente com os não-broncos à sua volta, cujas reacções são sentidas pelo bronco como agressões. Na realidade os seus actos agridem os outros, mas esta realidade não lhe é acessível, e por isso procura defender-se – com tanto mais agressividade quanto mais dinâmico e ambicioso for. Vagamente, por mais estúpido que seja, o chavasco consegue ainda assim intuir que no cerne desse confronto está alguma coisa que ele não consegue definir e que sente como «a autoridade» – é a autoridade da inteligência, digamos assim. A consequência deste sentimento, nalguns casos, é que a dolorosa turbulência de ideias desconexas na cabeça do bronco o incita a adquirir os atributos da autoridade, julgando ser a falta desses atributos a origem dos seus sofrimentos. Este é o bronco mais perigoso, aquele que espantosamente chegará ao topo da hierarquia profissional, partidária, estatal, mundial.
O exercício da autoridade brutal, autocrática, desumana, sem sentido, pode parecer estúpido, e é. Só um bronco (ou um doente mental) pode lá chegar. Por definição, uma pessoa lúcida, inteligente e funcional tenderá a evitar cuidadosamente o exercício desses procedimentos, por saber que causam sofrimento desnecessário – aos outros e a si mesmo. Mas no bronco a brutalidade autoritária é o único recurso à sua disposição para não se sentir inferiorizado, para varrer do caminho as consequências nefastas (para si próprio) dos erros que comete, para preencher o vazio deixado pelas suas incapacidades, enfim, para não sofrer – porque o bronco, afinal, é um ser humano como outro qualquer, e por isso sofre com a sua própria bronquice.
Assim, por exemplo, um chavasco colocado à cabeça de um projecto (científico, industrial, artístico, político, …) tenderá a provocar o descalabro total. Face aos primeiros sinais de descalabro, a sua primeira reacção não consistirá em ir para casa fazer um balanço do seu papel no fiasco (esse nível de autoanálise apenas é acessível a graus de inteligência superiores), mas, muito pelo contrário, tenderá a acusar toda a equipa às suas ordens e até o mundo exterior à própria equipa. Se nessa equipa existirem pessoas competentes e inteligentes, o conflito depressa atingirá níveis insuportáveis – pouco a pouco toda a possível discussão será substituída pelos argumentos da autoridade (violenta), da mentira, da calúnia e da difamação, que são as únicas armas ao dispor do bronco para manter os atributos da autoridade. Numa situação de fiasco, a tendência natural do chavasco é livrar-se de todas as pessoas detentoras do único tipo de autoridade que não lhe é acessível: a inteligência, a agilidade mental. Não há como dar a volta a isto, porque essa é uma questão vital para o bronco. Passado pouco tempo, o chavasco ter-se-á rodeado apenas de inúteis, broncos como ele, mas talvez não tão dinâmicos e ambiciosos, isto é, não tão aptos a conquistar a autoridade brutal. E assim o projecto fracassará de vez. Mas isso é para o bronco a coisa menos importante do mundo. A excelência, que é o alvo sempre na mira da competência e da inteligência, não é apenas inacessível ao bronco; ela é-lhe indiferente. O bronco é, por definição, um agnóstico da qualidade, quanto mais da excelência. A partir de um certo ponto, apenas uma coisa conta para ele: a autoridade bruta. Esta é talvez a opção mais inteligente que fez em toda a sua vida, pois a única coisa funcional que pode salvá-lo no confronto com o resto do mundo é a autoridade brutal.
A escalada da bronquice acaba sempre por provocar situações catastróficas impossíveis de julgar – precisamente porque todo o julgamento exige uma dose mínima de inteligência. No campo das relações familiares ou de um casal, por exemplo, é frequente chegar-se a situações de violência (física ou psicológica e emocional) em que temos de usar de alguma complacência no nosso julgamento, ainda que, por princípio, toda a violência entre seres humanos nos seja repugnante. A atenuante, no tipo de casos a que estou a referir-me, deriva da insanidade mental que a bronquice continuada vai instalando, ao longo do tempo.
Na vida social e política, contudo, as coisas passam-se de maneira diferente. O conceito de divórcio não é aplicável ao conjunto da sociedade, nem directa nem indirectamente, nem real nem metaforicamente. A única saída social para a espiral da bronquice e da autoridade brutal é a violência. Esta violência pode manifestar-se de diversas formas – pela guerra, pela revolução, pelo terrorismo, etc. Podemos considerar umas soluções menos más que outras, mas no fim não existe escapatória. No campo social alargado não existe divórcio pacífico, de comum acordo. A única forma de quebrar um contrato social bronco é à estalada.
É esta, no meu entender, a situação em que nos encontramos hoje: ou comemos e calamos a ditadura dos chavascos (no emprego, na universidade, nos movimentos sociais, nos partidos, no Estado, na Europa, no Mundo) ou desatamos à estalada.
Notas:
1 No sistema linguístico português (e em muitas outras línguas modernas) é necessário um marcador para suspender a indeterminação de género. Se dissermos «a corredora», a palavra «a» serve de marcador para levantar a indeterminação – sabemos sem margem para dúvidas que estamos a falar de alguém do género feminino. Se dissermos «aquele corredor», a indeterminação é levantada a favor do género masculino. Mas se dissermos «o corredor é alguém que não sabe andar a passo», a indeterminação de género está instalada – é inútil, para não dizer ridículo, grafar, por exemplo, «o.a corredor.a», como está na moda agora fazerem os francófonos. A língua (ou seja, concomitantemente, a cognição) é um sistema extremamente complexo de organização categórica do mundo (neste caso: categoria indeterminada ⊃ { categoria feminina , categoria masculina, … } ), e por isso mesmo desconfortável para o bronco, cuja reacção normal será criar novos modelos que o poupem a erros de interpretação e compreensão – nomeadamente criando marcadores para a indeterminação (uma operação de abstracção de nível superior, e portanto mais difícil de dominar), o que é um contra-senso nesta língua (embora possa fazer sentido num sistema linguístico totalmente diferente). Com efeito, o recurso à novilíngua é um dos sintomas da chegada ao poder – político, cultural, académico, … – dos broncos, com a correspondente instalação de procedimentos repressivos e autocráticos.
(por erro de gestão do blog, foi apagado o comentário de um leitor anónimo que dizia o seguinte)
ResponderEliminarSíndrome do “idiota confiante” explica ascensão de Trump e Bolsonaro
Segundo o pesquisador americano David Dunning, eleitores que não conhecem o limite da própria ignorância aderem mais facilmente a candidatos que fazem promessas irreais
http://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/sindrome-do-idiota-confiante-explica-ascensao-de-trump-e-bolsonaro-de3widharpofwxh8wwtrvape7