16/09/16

O grau zero da cultura política


Comentando no jornal Público a entrevista dada pelo juiz Carlos Alexandre, que tem a seu cargo uns quantos processos de corrupção e abuso de poder, Francisco Louçã conseguiu o feito notável de produzir um dos discursos mais horríveis que tenho lido nos últimos tempos, colocando-se ao mesmo nível do de Juncker no discurso anual que este fez sobre o estado da União Europeia. Custa-me muito dizer isto, atendendo à consideração que tenho pelo papel desempenhado por Francisco Louçã na cena política portuguesa ao longo de muitas décadas (e independentemente de ter estado ou não de acordo com as suas propostas), mas contra factos não há argumentos. E os factos são estes:
 
«Um juiz não deve dar entrevistas», afirma Louçã, pois «está a intervir politicamente»; e mais adiante: «Ao contrário do juiz, outras figuras públicas devem dar entrevistas, se o seu espaço natural é o da política». Fica portanto expresso com clareza cristalina que F. Louçã considera o «espaço natural» da justiça no Estado burguês absolutamente alheio à política; remete-a para um espaço imaculado, à margem da sociedade; eleva-a à categoria de anjo inimputável, mudo, cego e surdo a tudo quanto se passa na vida política, ou seja, nos conflitos de interesses que atravessam a sociedade. Mas então, se um juiz nada tem a ver com os conflitos de interesses que atravessam a sociedade, que raio anda ele a fazer por cá? Para que serve a justiça ao certo, se não serve para resolver conflitos de interesse? Qualquer jovem marxista bem formado com 50 anos menos que Louçã já sabe a resposta a esta pergunta e é para ele que aconselho Francisco Louçã a dirigir as suas dúvidas e interrogações.
 
No momento em que alguns meios na nossa sociedade começam a admitir (finalmente!) a necessidade imperiosa de políticos, académicos, comentadores – enfim, qualquer pessoa detentora de um mínimo de autoridade pública –, fazer uma declaração de interesses antes de exercer a sua autoridade, Francisco Louçã vem dizer-nos: não, esperem, calma aí, segurem lá os cavalos, porque nada disso se aplica à justiça!

 
Em compensação Louçã admite (indirectamente) que a comunicação social tem tudo a ver com política. Vamos lá, já é melhor que nada. Mas depois, baseado no pressuposto anterior (segundo o qual justiça não é política), deduz que um juiz não deve ter entrada no território da comunicação social. Bela cabriola.
 
Que um ideólogo de direita defenda estes pontos de vista, nem espanta nem é novidade. Que um suposto ideólogo da esquerda radical defenda a imaculada neutralidade da justiça em relação à res publica, que advogue o imobilismo do sistema a este respeito, causa uma tristeza indizível. E faz-nos desconfiar que, apesar dos reconhecidos e doutos saberes de Francisco Louçã sobre Economia e contas de merceeiro, a sua cultura política encontra-se à beira do grau zero. 
 
Mas há mais: «Se um juiz dá entrevistas para falar de si, temos que nos perguntar porque é que quer falar de si. (…) Pode querer reinterpretar a sua própria função.» Pondo de parte os torcicolos lógicos desta tirada, ficamos a saber que Francisco Louçã acha mal que um juiz tente «reinterpretar a sua própria função»; acha bem que o juiz se considere ao largo não só da política, mas até de qualquer espécie de dúvida metódica e científica; em suma, Louçã aguarda, com manifesta impaciência, o próximo grande salto tecnológico dos processadores e da inteligência artificial para poder substituir os juízes por robôs – poupando assim uma pipa de massa ao Estado e aplicando-a rapidamente em mais pagamento de dívida pública, depois de devidamente reestruturada por uma equipa de altos economistas, de preferência dirigidos por ele próprio. É uma visão da ordem do absolutismo: o juízo do soberano provém de deus e portanto não é terrenamente questionável, nem sequer pelo próprio, pois nenhum soberano tem o direito de questionar o poder que deus lhe deu sobre os seus súbditos.
 
Mas há ainda mais: «o juiz não é escolhido pelo voto e, onde o político tem que ser visível, o juiz tem que ser invisível» – o que se situa ainda mais além do absolutismo e da maçonaria de cripta: é da ordem do jihadismo iluminado e clandestino, do auto-sacrifício bombástico – juiz que morra invisível e mudo encontrará (com selo de garantia Francisco Louçã) 100 virgens à sua espera no paraíso; se for disforme e feioso, aconselho eu, já agora, que mesmo depois de morto permaneça invisível, para não assarapantar as virgens. Desta afirmação (a dele, não a minha), Louçã passa de imediato e com toda a ligeireza a um tipo de exercício que lhe desconhecia (terei eu andado desatento?): comentar as congeminações do juiz sobre a sua própria vida pessoal, e sobretudo comentá-las com muitas reticências socraticamente interrogativas e uma mesquinhez digna dos comentários em antena aberta da Dona Albertina que costuma estar à janela do rés-do-chão a fisgar os vizinhos. Sendo certo que tanto a candura (verdadeira ou falsa) do juiz como os comentários da Dona Albertina seriam dispensáveis, constatemos mais uma vez o grau zero da cultura política e passemos ao assunto seguinte.
 
Tanto nos comentários da Dona Albertina como nos das outras centenas (sem exagero) de albertinas espalhadas por blogues, antenas abertas e colunas de jornal, umas mais louçãs, outras mais soturnas, nem uma palavra acerca daquilo que, quanto a mim, é o aspecto mais relevante da entrevista do juiz Carlos Alexandre: a denúncia clara e sem papas na língua, embora serena, de ameaças, umas mais veladas outras mais brutais (p. ex.: «encontrei uma pistola pousada em cima do retrato do meu filho» [cito de memória]). Sobre isto, nem uma palavra! Pelo contrário, é escandalosamente evidente em todos os comentários à entrevista o esforço desesperado para desviar as atenções desse «pormenor».
 
A prática corrente da ameaça brutal e do assédio por parte dos poderosos é tabu. Qualquer pequeno comerciante de Lisboa com loja instalada num local de interesse turístico sabe disso; foi talvez mesmo ameaçado de morte, ele e sua família; mas não fala disso nem dá entrevistas sobre isso. Pessoas como Francisco Louçã (ou seja, qualquer político com acesso aos bastidores internacionais) sabem que, quando as luzes se apagam, as câmaras se desligam e os microfones emudecem, a linguagem dos poderosos muda – o discurso bem-falante a que estamos habituados na TV dá lugar às ameaças mais brutais e à grosseria mais arrepiante. A maioria dos banqueiros (leia-se: gestores bancários), dos latifundiários, dos grandes proprietários, dos políticos, venham eles da UE ou de Pinhel, recorre ao assédio pessoal ou em massa, à ameaça das armas, é cúmplice da venda de armamento em países massacrados por conflitos armados, branqueia capitais, promove serviços de fuga de capitais, pratica burlas e logros sempre que pode, tem na intimidade dos gabinetes comportamentos e palavras de vândalo. 
  
Louçã devia estar a falar-nos dos presidentes de países sem dívida pública que são mensalmente assediados ao telefone por mandatários do FMI e do Banco Mundial para endividarem o Estado («vá lá, não custa nada, este empréstimo só será pago daqui a 40 anos, não o afecta a si»; e quando finalmente se esgota a paciência: «endivide-se, senão...»); mas não: prefere não sujar a língua com os desagradáveis vícios e violências dos poderosos perdido nos labirintos de Oeiras
  
De forma pouco espalhafatosa, o juiz Carlos Alexandre deu aos políticos honestos desta terra a oportunidade de quebrarem o tabu e falarem da violência do poder (político e económico). Louçã preferiu escamotear esta parte da entrevista. Opta por aplicar o seu tempo a propagandear projectos irrealizáveis de «reestruturação» da dívida pública. Nas horas vagas, por desfastio, entretém-se a fazer coscuvilhice sobre a vida privada de um juiz.
 
É lastimável que um político que era suposto defender a transformação da sociedade, apontar para novas práticas e novas relações sociais mais justas, preparar a transição para outro modo de viver e conviver, se dedique a defender a suposta neutralidade imaculada da justiça, como se ela fosse alguma vez possível em algum tipo de sociedade.

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