11/04/16

Que guardam os bancos?


A ameaça de os «bancos sistémicos» arrastarem na sua queda toda a sociedade tornou-se uma espécie pré-anúncio permanente do Armagedão e tem servido para justificar os enormes sacrifícios impostos às populações, devidamente consumado por um sumo sacerdote que dá pelo nome de Autoridade Pública. A palavra sacrifício é apropriada, uma vez que são penas e perdas de vidas o que está em causa.
O que guardarão os cofres dos bancos de tão precioso, de tão misterioso, de tão funesto, que possa desencadear um fim do mundo? A resposta mais comum é: dinheiro, oceanos de dinheiro, muito para além daquilo que a imaginação comum pode alcançar. Se a imaginação não pode alcançar, a resposta é vaga. Impõe-se portanto outra pergunta menos vaga, mas infelizmente mais complexa: o que é o dinheiro?, donde vem?, para onde vai?

O dinheiro é a forma simbólica de representar o valor criado pelo trabalho; é uma coisa mensurável e plenamente funcional, ainda que os seus utentes não compreendam a sua natureza e funcionamento. Será isto possível? Claro que é, tal como foi possível, muitos séculos antes de compreendermos a verdadeira natureza e funcionamento das estrelas, medir a sua posição no céu e prever o seu movimento. Contudo, o dinheiro apenas pode representar simbolicamente o valor de troca dos bens produzidos pelo trabalho assalariado; todos os outros valores e formas de criar valor, quer existam per se quer resultem do trabalho, ficam de fora.
Vejamos de forma sumária como funciona este sistema. O ar que respiramos, por exemplo, não possui valor de troca: podemos usufruí-lo livremente, sem necessidade da intermediação de qualquer tipo de trabalho. No entanto, se quisermos visitar o fundo do mar, lugar onde não encontramos ar naturalmente disponível, precisamos engarrafá-lo e associar-lhe um mecanismo doseador. As botijas de ar comprimido contêm diversos materiais e implicam numerosas fases de trabalho; por isso incorporam um valor acrescentado ao valor dos elementos que as compõem. Na sociedade capitalista isto confere à botija dois valores: um valor de uso (não mensurável) e um valor de troca (mensurável).
Se não existissem as relações capitalistas, de cada vez que eu precisasse de botijas de ar para mergulhar, dirigir-me-ia a quem sabe fabricá-las e diria: preciso de 3 botijas de ar. Fabricar-se-iam então as 3 botijas. Fora dessa situação específica de uso não passaria pela cabeça a ninguém fabricar botijas de ar comprimido o ano inteiro, 8 horas por dia. No momento em que alguém começa a fabricar botijas de ar comprimido independentemente do seu valor de uso, quebra-se o elo que unia o valor de uso e a necessidade ocasional do trabalho; inicia-se então um processo histórico de alienação: cria-se um hiato entre o utilizador, o produtor e o produto; perde-se o elo de ligação (a consciência) que os unia valor; as pessoas que determinavam o valor de uso dos bens produzidos – ou seja, as pessoas que os usavam – deixam de tomar parte no controlo da produção e, ao olharem para o produto, deixam de ver o trabalho nele contido, deixam de ver o seu próprio papel na engrenagem colectiva de produção, apenas vêem valor de troca. Daí esta pergunta anedótica mas corrente: «Que belo fato! Quanto custou?»; 6 décadas antes, num país «atrasado» como Portugal, a pergunta era: «Que belo fato! Quem é o teu alfaiate?».
O «valor» de que estamos aqui a falar é um conceito puro, imaterial, uma representação mental das relações sociais ou perceptuais. A única coisa material nesta nossa história é a botija de ar e o trabalho que a gerou – sim, o acto do trabalho também é um dado material: consiste num dispêndio de energia aplicada e esta faz parte do mundo palpável, tal como o calor, a electricidade ou a luz. Quanto ao «valor de uso» das botijas, é muito simplesmente uma ideia abstracta que exprime o facto de eu querer usá-las. Numa sociedade capitalista, contudo, elas são produzidas com a intenção primordial de criar um valor donde possa ser extraído lucro; o seu valor de uso torna-se relativamente insignificante, pois todas as necessidades e utilidades, por mais estúpidas que sejam, podem ser artificialmente criadas a posteriori.
Na representação simbólica do valor acrescentado pelo trabalho encontramos parte da origem do conceito de «fetichismo» (da mercadoria e do dinheiro). Um fetiche (etimologicamente: feitiço) é um objecto inanimado que «assume» as qualidades ou os poderes mágicos de uma coisa animada – neste caso a força de trabalho, que tem a capacidade mágica de criar coisas novas a partir de coisas velhas. O significado moderno de «fetiche», em economia política, denota a transferência do amor à coisa representada – a pessoa e as suas capacidades mágicas – para a coisa representante – o objecto inanimado. «A necessidade de dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz» [Manuscritos Económico-Filosóficos, 1844].
A este sentido elementar do fetichismo proposto por Karl Marx, a Internacional Situacionista veio acrescentar um salto qualitativo, fornecendo-nos uma visão mais fina da sociedade do século XX e mostrando como a lógica fetichista alastrou a todos os domínios das relações sociais, criando por fim a «sociedade do espectáculo». Assim, por exemplo, o amor a um grupo de deputados e às suas acções torna-se maior do que o amor à população que eles representam; ou, dito doutra maneira: o amor ao representante oblitera não só o amor ao representado, mas até a própria autoconsciência deste, gerando o grau último da alienação: a ideologia sob a forma de espectáculo. É o processo histórico combinado do fetichismo e da alienação que transforma a massa imensa duma população em espectadores da sua própria vida, ao invés de actores da sua própria vida.
Em consequência da evolução histórica que acabamos de ver, o ataque ao espectáculo (capitalista) é hoje condição necessária para a construção duma sociedade diferente. Sem um combate prévio à alienação (e portanto à ideologia) não pode existir transformação social de espécie alguma. Quanto mais se aposta na ideologia, na representação intermediada das coisas, das pessoas e dos seus poderes, mais se reforça o sistema de opressão da maioria por uma minoria. Embora a história não permita fazer marcha-atrás, uma parte deste processo histórico tem de ser revertida: sem atacar o espectáculo (capitalista) e toda a espécie de ideologias que o configuram, não é possível transformar as relações materiais de produção – paradoxalmente, a ideologia, que começou por ser um instrumento de enorme utilidade, acabou por recobrir as relações materiais de produção e tornar-se um empecilho.
É neste quadro que convém analisar o dogma dos «bancos sistémicos» (tal como o escândalo dos «Panama papers», ou os paraísos fiscais, ou a dívida pública). O que os «bancos sistémicos» guardam nos seus cofres é a representação simbólica do valor mensurável criado pelo trabalho – nada mais do que isso. Mas não podemos confundir a representação simbólica das coisas com as coisas propriamente ditas. Se todos os «bancos sistémicos» forem à falência, se todos os títulos de propriedade das terras arderem, o que arde não são as coisas em si mesmas, mas sim a sua representação fetiche. No dia seguinte à bancarrota, quando formos inspeccionar a realidade material, vemos que os silos de cereais não arderam; o pão não apodreceu; as terras não se tornaram estéreis; o tecto das fábricas não desmoronou; as máquinas não se diluíram no éter. Nada do que existe materialmente desaparece com a queda dos empórios financeiros; o que desaparece é a acumulação de representações simbólicas do valor criado pelo trabalho (e mesmo assim é duvidoso que desapareça, mais provavelmente apenas é transferido para outro lugar).
O poder extraordinário da ideologia provoca a confusão entre o que existe materialmente e o que existe simbolicamente. Um banco é um armazém simbólico da acumulação de valor simbolicamente representado; é um símbolo de um símbolo. Disso não passa. Podem ruir todos os bancos, podem todos os banqueiros do mundo levar um tiro na testa, pode arder todo o dinheiro do Banco Central Europeu, que nada disso belisca os silos ou a vontade de comer; as coisas materiais e o valor de uso a elas associado mantêm-se incólomes; não é materialmente possível – embora seja conceptualmente possível – a queda de um banco, ou de qualquer outra forma de acumulação de riqueza simbolicamente representada, gerar fome e caos; nenhum símbolo tem a capacidade de alterar materialmente a coisa representada (embora possa ter a capacidade de alterar a sua representação imaterial, mental ou ideológica).
Olhando para a evolução histórica da moeda, percebemos que o dinheiro também pode ser interpretado como uma metáfora. Uma metáfora é, grosso modo, a representação de um objecto através de outro, devendo ambos partilhar algumas propriedades, a fim de focar o olhar em aspectos específicos do objecto representado. Por exemplo, se eu disser: «as duas turquesas que trazes nos olhos», estou a realçar a cor verde dos olhos de alguém e a elevada estima que lhes atribuo. Mas esta é uma metáfora imperfeita, porque o objecto visado continua explícito. Se eu disser: «duas turquesas foram minha perdição», então sim, estou a construir uma metáfora perfeita. Ora o dinheiro, que nalgumas sociedades começou por consistir em moedas feitas de metal precioso (metáfora imperfeita), tornou-se na sociedade capitalista uma metáfora perfeita: as moedas de metal precioso deram lugar a títulos de propriedade (ou de dívida) sob variadas formas. Mais: o objecto metafórico transcendeu-se: o papel moeda, os títulos de propriedade, os zeros e uns na conta bancária electrónica já não possuem qualquer propriedade que remeta para o objecto representado no início algures no decurso deste processo histórico perdeu-se a referência ao objecto representado: o valor gerado pelo trabalho. O elo de ligação quebrou-se e a metáfora tornou-se tautológica; remete agora para si mesma. O objecto representado foi varrido da consciênciaapenas resta uma metáfora perfeita e tautológica: o dinheiro. Digamos que o poeta apaixonou-se pelas gemas e varreu da memória a pessoa amada.
Graças à consolidação da sociedade do espectáculo, a maioria dos economistas pode agora afirmar todos os dias: se a economia estiver bem, tudo está bem na sociedade. Infelizmente este estado de graça não passa duma efabulação esotérica sem qualquer correspondência com a realidade material. Na verdade, a coisa que menos conta para a realidade material em que vivemos é a economia e a finança; é ela, no entanto, a coisa que mais conta para a sociedade do espectáculo. Isto deveria bastar para se intuir a força com que a ideologia e a sociedade do espectáculo recobriram a realidade material e as relações sociais. Dito isto, é preciso recordar que seria um erro fatal pensarmos que o capital pode agora produzir por si mesmo mais capital. Ele não adquiriu a capacidade de se reproduzir a si mesmo – tornar-se tautológico não significa tornar-se hermafrodita –, continua a depender da força de trabalho para gerar mais capital.
Que pensar então da bancarrota dos «bancos sistémicos»? Nada de especial – um banco em dificuldades deve ter o mesmo destino de qualquer outra empresa: encerra-se e distribuem-se os seus restos mortais pelos interessados. A única coisa que não deve ser feita é precisamente aquilo que os sacerdotes do sacrifício têm feito: arrebanhar mais riqueza colectiva para a acumular nos cofres dos bancos. No entanto, como o «bem» aí guardado tem uma eminente utilidade pública (investimento produtivo), o que resta dos bancos, falidos ou não, não deve ser deixado aos acasos redistributivos. Deve ser socializado e submetido ao controlo público. Quanto à forma prática de o fazer e às medidas concretas a adoptar, sugiro que consultem, entre outros: «Que Fazer Com os Bancos?», publicado em francês a 25/03/2015, em inglês a 13/04/2015 e em português a 22/04/2016.

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