A ameaça de os «bancos sistémicos» arrastarem
na sua queda toda a sociedade tornou-se uma espécie pré-anúncio
permanente do Armagedão e tem servido para justificar os enormes
sacrifícios impostos às populações, devidamente consumado por um sumo sacerdote que dá
pelo nome de Autoridade Pública. A palavra sacrifício é apropriada, uma vez que
são penas e perdas de vidas o que está em causa.
O que guardarão os cofres dos bancos de tão
precioso, de tão misterioso, de tão funesto, que possa desencadear um fim do mundo?
A resposta mais comum é: dinheiro, oceanos de dinheiro, muito para
além daquilo que a imaginação comum pode alcançar. Se a
imaginação não pode alcançar, a resposta é vaga. Impõe-se
portanto outra pergunta menos vaga, mas infelizmente mais complexa: o
que é o dinheiro?, donde vem?, para onde vai?
O dinheiro é a forma simbólica de representar o
valor criado pelo trabalho; é uma coisa
mensurável e plenamente funcional, ainda que os seus utentes não
compreendam a sua natureza e funcionamento. Será isto possível?
Claro que é, tal como foi possível, muitos séculos antes de
compreendermos a verdadeira natureza e funcionamento das estrelas,
medir a sua posição no céu e prever o seu movimento. Contudo, o
dinheiro apenas pode representar simbolicamente o valor de troca dos
bens produzidos pelo trabalho assalariado; todos os outros valores e
formas de criar valor, quer existam per se
quer resultem do
trabalho, ficam de fora.
Vejamos de forma sumária como funciona este
sistema. O ar que respiramos, por exemplo, não possui valor de
troca: podemos usufruí-lo livremente, sem necessidade da
intermediação de qualquer tipo de trabalho. No entanto, se
quisermos visitar o fundo do mar, lugar onde não encontramos ar
naturalmente disponível, precisamos engarrafá-lo e associar-lhe um
mecanismo doseador. As botijas de ar comprimido contêm diversos
materiais e implicam numerosas fases de trabalho; por isso incorporam
um valor acrescentado ao valor dos elementos que as compõem. Na
sociedade capitalista isto confere à botija dois valores: um valor
de uso (não mensurável) e um valor de troca (mensurável).
Se não existissem as relações capitalistas, de
cada vez que eu precisasse de botijas de ar para mergulhar,
dirigir-me-ia a quem sabe fabricá-las e diria: preciso de 3 botijas
de ar. Fabricar-se-iam então as 3 botijas. Fora dessa situação
específica de uso não passaria pela cabeça a ninguém fabricar
botijas de ar comprimido o ano inteiro, 8 horas por dia. No momento
em que alguém começa a fabricar botijas de ar comprimido
independentemente do seu valor de uso, quebra-se o elo que unia o
valor de uso e a necessidade ocasional do trabalho; inicia-se então
um processo histórico de alienação: cria-se um hiato entre o
utilizador, o produtor e o produto; perde-se o elo de ligação (a
consciência) que os unia valor; as pessoas que determinavam o valor
de uso dos bens produzidos – ou seja, as pessoas que os
usavam – deixam de tomar parte no controlo da produção e, ao
olharem para o produto, deixam de ver o trabalho nele contido, deixam
de ver o seu próprio papel na engrenagem colectiva de produção,
apenas vêem valor de troca. Daí esta pergunta anedótica mas
corrente: «Que belo fato! Quanto custou?»; 6 décadas antes, num
país «atrasado» como Portugal, a pergunta era: «Que belo fato!
Quem é o teu alfaiate?».
O «valor» de que estamos aqui a falar é um
conceito puro, imaterial, uma representação mental das relações
sociais ou perceptuais. A única coisa material nesta nossa história
é a botija de ar e o trabalho que a gerou – sim, o acto do
trabalho também é um dado material: consiste num dispêndio de
energia aplicada e esta faz parte do mundo palpável, tal como o
calor, a electricidade ou a luz. Quanto ao «valor de uso» das
botijas, é muito simplesmente uma ideia abstracta que exprime o
facto de eu querer usá-las. Numa sociedade capitalista, contudo,
elas são produzidas com a intenção primordial de criar um valor donde possa ser extraído lucro; o seu valor de uso torna-se
relativamente insignificante, pois todas as necessidades e
utilidades, por mais estúpidas que sejam, podem ser artificialmente
criadas a posteriori.
Na representação simbólica do valor
acrescentado pelo trabalho encontramos parte da origem do conceito de
«fetichismo» (da mercadoria e do dinheiro). Um fetiche
(etimologicamente: feitiço) é um objecto inanimado que «assume»
as qualidades ou os poderes mágicos de uma coisa animada – neste
caso a força de trabalho, que tem a capacidade mágica de criar
coisas novas a partir de coisas velhas. O significado moderno de
«fetiche», em economia política, denota a transferência do amor à
coisa representada – a pessoa e as suas capacidades mágicas –
para a coisa representante – o objecto inanimado. «A necessidade
de dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela
economia política, e a única necessidade que ela produz»
[Manuscritos Económico-Filosóficos, 1844].
A este sentido elementar do fetichismo proposto
por Karl Marx, a Internacional Situacionista veio acrescentar um
salto qualitativo, fornecendo-nos uma visão mais fina da sociedade
do século XX e mostrando como a lógica fetichista alastrou a todos
os domínios das relações sociais, criando por fim a «sociedade do
espectáculo». Assim, por exemplo, o amor a um grupo de deputados e
às suas acções torna-se maior do que o amor à população que
eles representam; ou, dito doutra maneira: o amor ao representante
oblitera não só o amor ao representado, mas até a própria
autoconsciência deste, gerando o grau último da alienação: a
ideologia sob a forma de espectáculo. É o processo histórico
combinado do fetichismo e da alienação que transforma a massa
imensa duma população em espectadores da sua própria vida, ao
invés de actores da sua própria vida.
Em consequência da evolução histórica que acabamos de ver, o ataque ao espectáculo (capitalista) é hoje condição
necessária para a construção duma sociedade diferente. Sem um
combate prévio à alienação (e portanto à ideologia) não pode
existir transformação social de espécie alguma. Quanto mais se
aposta na ideologia, na representação intermediada das coisas, das
pessoas e dos seus poderes, mais se reforça o sistema de opressão
da maioria por uma minoria. Embora a história não permita fazer
marcha-atrás, uma parte deste processo histórico tem de ser
revertida: sem atacar o espectáculo (capitalista) e toda a espécie
de ideologias que o configuram, não é possível transformar as
relações materiais de produção – paradoxalmente, a ideologia,
que começou por ser um instrumento de enorme utilidade, acabou por
recobrir as relações materiais de produção e tornar-se um
empecilho.
É neste quadro que convém analisar o dogma dos
«bancos sistémicos» (tal como o escândalo dos «Panama papers»,
ou os paraísos fiscais, ou a dívida pública). O que os «bancos
sistémicos» guardam nos seus cofres é a representação simbólica
do valor mensurável criado pelo trabalho – nada mais do que isso. Mas
não podemos confundir a representação simbólica das coisas com as
coisas propriamente ditas. Se todos os «bancos sistémicos» forem à
falência, se todos os títulos de propriedade das terras arderem, o
que arde não são as coisas em si mesmas, mas sim a sua
representação fetiche. No dia seguinte à bancarrota, quando formos
inspeccionar a realidade material, vemos que os silos de cereais não
arderam; o pão não apodreceu; as terras não se tornaram estéreis;
o tecto das fábricas não desmoronou; as máquinas não se diluíram
no éter. Nada do que existe materialmente desaparece com a queda dos
empórios financeiros; o que desaparece é a acumulação de
representações simbólicas do valor criado pelo trabalho (e mesmo
assim é duvidoso que desapareça, mais provavelmente apenas é
transferido para outro lugar).
O poder extraordinário da ideologia provoca a
confusão entre o que existe materialmente e o que existe
simbolicamente. Um banco é um armazém simbólico da acumulação de
valor simbolicamente representado; é um símbolo de um símbolo.
Disso não passa. Podem ruir todos os bancos, podem todos os
banqueiros do mundo levar um tiro na testa, pode arder todo o
dinheiro do Banco Central Europeu, que nada disso belisca os silos ou
a vontade de comer; as coisas materiais e o valor de uso a elas
associado mantêm-se incólomes; não é materialmente possível
– embora seja conceptualmente possível – a queda de um
banco, ou de qualquer outra forma de acumulação de riqueza
simbolicamente representada, gerar fome e caos; nenhum símbolo tem a
capacidade de alterar materialmente a coisa representada (embora
possa ter a capacidade de alterar a sua representação imaterial,
mental ou ideológica).
Olhando para a evolução histórica da moeda,
percebemos que o dinheiro também pode ser interpretado como uma
metáfora. Uma metáfora é, grosso modo,
a representação de
um objecto através de
outro, devendo
ambos partilhar
algumas propriedades, a
fim de focar o olhar em
aspectos específicos do
objecto representado. Por exemplo, se eu disser: «as
duas turquesas que trazes nos olhos»,
estou a realçar
a cor verde dos
olhos de alguém e a elevada
estima que lhes atribuo.
Mas esta é uma
metáfora imperfeita, porque
o objecto visado continua explícito.
Se eu disser: «duas turquesas foram minha perdição», então sim,
estou a construir uma metáfora perfeita. Ora
o dinheiro, que nalgumas
sociedades começou por consistir em moedas feitas de metal precioso
(metáfora imperfeita), tornou-se na sociedade capitalista uma
metáfora perfeita: as moedas de metal precioso deram lugar a títulos
de propriedade (ou de dívida)
sob variadas formas. Mais:
o objecto metafórico
transcendeu-se:
o papel moeda, os títulos de propriedade, os zeros e uns na conta
bancária electrónica já não possuem qualquer propriedade que
remeta para o objecto representado no
início –
algures no decurso
deste processo histórico
perdeu-se
a referência ao objecto
representado: o valor gerado
pelo trabalho. O
elo de ligação quebrou-se e a
metáfora tornou-se
tautológica; remete agora
para si mesma.
O
objecto representado foi
varrido da consciência –
apenas
resta
uma
metáfora perfeita e
tautológica: o dinheiro.
Digamos
que o poeta apaixonou-se
pelas gemas e varreu da
memória a pessoa amada.
Graças à
consolidação da
sociedade do espectáculo, a
maioria dos economistas pode agora afirmar
todos os dias: se a economia estiver bem, tudo está bem na
sociedade. Infelizmente este
estado de graça não passa duma
efabulação
esotérica sem qualquer correspondência com a realidade material. Na
verdade, a coisa que menos
conta para a realidade material em que vivemos é a economia e a
finança; é ela, no entanto,
a coisa que mais conta para a sociedade do espectáculo.
Isto deveria bastar para se
intuir a força com que a ideologia e a sociedade do espectáculo
recobriram
a realidade material e as
relações sociais. Dito
isto, é preciso recordar que seria um
erro fatal
pensarmos
que o capital pode agora produzir por si mesmo mais capital. Ele
não adquiriu
a capacidade de se reproduzir a si mesmo
– tornar-se tautológico
não significa tornar-se
hermafrodita –, continua
a depender da força de trabalho para gerar mais capital.
Que
pensar então da bancarrota dos «bancos sistémicos»? Nada de
especial – um banco em
dificuldades deve ter o mesmo
destino de qualquer outra empresa: encerra-se e distribuem-se
os seus restos mortais
pelos interessados.
A única coisa que não deve ser feita é precisamente aquilo que os
sacerdotes do sacrifício têm feito: arrebanhar mais riqueza
colectiva para a
acumular nos cofres dos bancos. No
entanto, como o «bem» aí
guardado tem uma eminente utilidade pública (investimento
produtivo), o que resta dos
bancos, falidos ou
não, não deve ser deixado
aos acasos redistributivos. Deve ser socializado e submetido ao
controlo público. Quanto à
forma prática
de o fazer e
às medidas concretas a adoptar,
sugiro que consultem,
entre outros: «Que Fazer Com os Bancos?», publicado em francês a 25/03/2015, em inglês a 13/04/2015 e em português a 22/04/2016.
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