03/01/16

O episódio final da farsa democrática

 
Ainda agora começou a campanha presidencial e já se percebe que estreou o derradeiro episódio do avacalhamento democrático. Em vez duma visão política das coisas, os debates entre candidatos à Presidência têm-nos brindado com conversa de café, feita de minudências e faits-divers (uma espécie de marcelo-rebelização de todos os candidatos); o posicionamento político e ideológico parece ser tabu, atitude escabrosa que os candidatos, à direita e à esquerda, evitam com cautela. Abro uma excepção honrosa para Paulo Morais; ainda que eu não alinhe na sua defesa social-democrata do capitalismo, parece ser o único que nem tem vergonha de defender aquilo que é, que pensa e que projecta, nem abdica duma postura política e de Estado. De resto, até os candidatos directamente escolhidos por decisão partidária parecem ter sido seleccionados entre o refugo que lá havia, apenas com o fito de ocupar o tempo de antena disponível.

[Nota rectificativa importante: após a publicação deste artigo, o desempenho da candidata Marisa Matias mudou de forma considerável. Deixámos de ouvir o choradinho do «isto só nos acontece a nós» e, entre outras atitudes louváveis, a candidata começou a trazer à discussão a questão da dívida e do TTIP, ainda que muito levemente, e reforçou uma atitude de princípio que já tinha manifestado: a autonomia da população portuguesa deve prevalecer sobre os ditames duma UE não democrática (atenção, sou eu que o digo desta forma, não estou a citar Marisa Matias). Em suma, muito do que se diz neste artigo tornou-se injusto face ao desempenho actual da candidata, embora fosse verdadeiro à data da sua publicação. (nota acrescentada em 6-01-2015)]

O regresso do patriotismo bacoco

Estranhamente, os candidatos adoptaram o patriotismo bacoco. Não só insistem em velhos mitos absurdos (a suposta exclusividade do sentimento de saudade e da prática do desenrascanso, a ideia bronca de que só em Portugal existe sol e mar e gente boa, enfim, um autêntico Portugal dos Pequeninos), como acrescentam outros aos que já vinham dos «bons tempos» salazaristas. Um dos maiores contributos para a renovação da mítica lusitana é-nos dado por Marisa Matias, do Bloco de Esquerda (BE). Jura ela a pés juntos que apenas em Portugal os défices dos bancos são resgatados pelos contribuintes. Sendo Marisa Matias eurodeputada e devendo portanto estar informada, ao menos por alto, do que se passa com a banca europeia, esta afirmação basta para a desclassificar como candidata à Presidência. Mas o problema principal não é o da sua desclassificação, com isso podemos bem, mas sim o facto de seguir uma estratégia mediática de estupidificação dos seus conterrâneos: todos os dias repete várias vezes, tanto nos debates entre candidatos como em declarações avulsas, que só em Portugal os contribuintes pagam os prejuízos da banca. Ora os bancos portugueses não passam de minúsculas gotas de água no oceano financeiro europeu e mundial, ninguém dá por eles fora deste torrão; os montantes oferecidos pelo Estado à banca portuguesa, por muitos sacrifícios que custem aos contribuintes, são migalhas, tanto em termos absolutos como relativos, quando comparados com os resgates oferecidos à banca europeia em França, Bélgica, Alemanha, Itália, Grécia, e por aí fora. E no entanto Marisa Matias informa diariamente o bom povo português de que isto só nos acontece a nós, coitadinhos, donde se poderia deduzir que no resto da Europa o sistema capitalista e financeiro é um alegre descanso.

Marisa Matias (tal como Edgar Silva, Marcelo Rebelo de Sousa e os demais candidatos) parece estar apostada em reduzir o que restava da consciência política dos portugueses ao grau zero. Esta candidata do BE, condenada a ser afastada da corrida à Presidência logo na primeira volta, opta no entanto por calar ou mistificar as questões de fundo que costumam distinguir as propostas de esquerda das propostas de direita, como se estivesse disposta a mostrar-se uma «aluna bem comportada» para disputar a ronda final das presidenciais. [Nota do autor: o primeiro que me vier chatear com o lugar-comum de que a distinção entre direita e esquerda já não tem lugar nos dias de hoje leva com uma cadeira no toutiço.] No confronto de Marisa Matias com Paulo Morais aconteceu mesmo esta coisa espantosa: muitas das propostas que seria suposto Marisa Matias apresentar foram defendidas por Paulo Morais; e algumas das propostas que é suposto serem defendidas por um candidato do centro ou de direita foram defendidas por Marisa Matias, como, por exemplo, a proposta de protecção a todo o custo de um primeiro-ministro aldrabão – se ele vier a ocorrer –, em nome da «estabilidade». Estabilidade de quem e para quê? – eis-nos, mais uma vez, perante o vazio de reflexão política, digamos assim, para não falarmos de completa capitulação ao sistema de desonestidade política instituído.

Por toda a Europa o processo de concentração financeira recrudesce, sempre à custa dos Estados (ou seja, dos contribuintes); os aforradores italianos suicidam-se em série após verem perdida uma vida inteira de sacrifícios e poupanças (não sei exactamente para quê num Estado supostamente social, mas isso é outra conversa), e Marisa Matias insiste: isto é uma desgraça que só nos acontece a nós, pobrezinhos dos portugueses.

Não havia nada melhor para pôr à mesa? Apresentar candidatos presidenciais deste calibre é um insulto não só aos cidadãos portugueses, mas também a todos os europeus.

Palavras leva-as o vento

Soube por portas e travessas que um grupo de cidadãos ofereceu discretamente os seus préstimos a vários candidatos para os ajudar a montar um conjunto de iniciativas capazes de ultrapassar a costumeira vacuidade das declarações eleitorais. Tratar-se-ia de um compromisso solene para a criação de pelo menos duas comissões de trabalho de iniciativa presidencial, as quais iriam estudar a dívida pública (cumprindo assim uma directiva europeia, diga-se de passagem) e as consequências da aplicação dos tratados de livre comércio actualmente na forja. O trabalho destas comissões permitiria apetrechar o futuro Presidente com dados objectivos e rigorosos para «cumprir e fazer cumprir» a Constituição nessas duas matérias centrais para a vida da população. A iniciativa presidencial de criar estas comissões ou grupos de trabalho constituiria prova e garantia de que as «boas intenções» pronunciadas durante a campanha não seriam palavras ocas, mas sim compromissos sérios de acção, solenemente assumidos perante o eleitorado.

Soube também que – com uma honrosa excepção, mas que acabou por não ter seguimento – todos os candidatos declinaram o convite; melhor dizendo: nem se dignaram responder. Isto, penso eu, diz tudo acerca da forma como os actuais candidatos encaram a Presidência; diz também o suficiente acerca das verdadeiras intenções dos que se declaram dispostos a romper com a era do presidente Cavaco Silva.

E pronto, Cavaco foi o que nos coube em sorte até agora; o pantanal é o que nos caberá em sorte daqui para a frente.

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