16/11/15

As guerras são vossas, mas os mortos são nossos


Logo após os atentados em Paris, François Hollande declara solenemente: «isto é uma declaração de guerra contra a França». Seria hilariante, se os acontecimentos não fossem dramáticos. O Estado francês, um dos que mais guerras provocou em todo o mundo nos últimos 100 anos, da Indochina ao Próximo Oriente, passando pelo Magrebe e pela África Negra, que mais armas vendeu aos ditadores, às guerrilhas, aos golpistas contra regimes soberanos, que mais pressão fez para reduzir ao silêncio o povo grego, obrigando-o a contrair empréstimos para salvar os banqueiros franceses e comprar armas francesas (juntamente com as alemãs, as norte-americanas e as russas), vem choramingar perante as câmaras: as forças contra quem ele, Estado francês, lançou a guerra provocaram 140 mortos em França (número igual ao da média diária de vítimas civis na Síria). Parece uma daquelas piadas absurdas dos Monty Pyton. Infelizmente, não é; há pessoas reais a morrerem de ambos os lados do Mediterrâneo.

François Hollande dirigiu-se ao parlamento para pedir uma alteração da lei; quer prolongar mais 3 meses o estado de emergência que tolhe a população francesa (de facto nem toda, como veremos adiante). Foram fechadas escolas, museus, bibliotecas, mercados de rua, piscinas públicas, enfim, toda a espécie de equipamentos, actividades e comércios colectivos. A cimeira do Plano B, destinada a discutir soluções alternativas para a Europa, teve de ser desmarcada. A França pára. Mas não, nem toda: os bancos, os supermercados e os centros comerciais, todos eles locais de grande afluência, permanecem abertos. Os gigantes económicos foram postos a salvo do estado de emergência – parece quase uma assinatura, não é?



Entretanto, parece repetir-se outro miraculoso absurdo: os bombistas ficam desfeitos em pedaços mas os seus passaportes e bilhetes de identificação permanecerem intactos e fazem capa nos jornais.

Do outro lado do Atlântico, Obama brama: olhem que isto também é uma declaração de guerra contra os EUA (eu sei, ele já tinha dito a mesma coisa anteriormente, mas façamos de conta que estávamos distraídos). Não sei se Merkel, Putin e o primeiro-ministro britânico fizeram o mesmo, mas se não fizeram, faria sentido que o tivessem feito. São eles os actuais representantes dos responsáveis primordiais por todas as barbaridades praticadas de um lado e de outro das forças em combate, desde a Jugoslávia e da Ucrânia até ao Magrebe. É fácil reconhecê-los: são eles que aparecem na primeira fila nas fotos das manifestações sob uma faixa que diz «somos todos Charlie (ou outra coisa qualquer)». São, sem dúvida, as guerras deles. O problema é que os mortos são nossos – e quando digo «nossos» não estou só a pensar no português que foi morto em Paris, mas sobretudo nos milhares de vítimas inocentes no Próximo Oriente, em toda a África, e por aí fora.

Hoje, ao contrário do que sucedia na viragem do século XIX-XX, as vítimas das bombas e tiros de rua já não são monarcas, ministros, chefes de polícia, carrascos, banqueiros, negreiros. Os mortos são agora membros da massa de explorados e oprimidos pelos banqueiros, negreiros, tiranos, oligarcas, mercenários e generais sem escrúpulos.

Já uma vez caí no logro de alinhar na histeria do «somos todos Charlie». Desta vez não me apanham. Admitirei apenas que somos todos vítimas da exploração, da opressão e da crescente onda de excepção (isto é, suspensão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos); nada mais do que isso.

NÃO, NÃO SOMOS TODOS FRANCESES!

Há os franceses que não podem reunir-se, manifestar-se, participar democraticamente na construção de uma Europa solidária. E há um punhado de franceses que podem reunir-se nas salas de conferência dos hotéis de luxo, para tratarem dos seus negócios e fazerem as suas cimeiras, sem que a polícia tenha ordens para os impedir; que podem manter abertos os seus bancos e os seus centros comerciais; que podem vender as armas que fabricam, sem que a polícia dos costumes vá lá inquietá-los. Há dois tipos claramente distintos de franceses, opostos entre si, em guerra entre si, e eu não quero ser confundido com os segundos. Não, não somos todos franceses (ou alemães, ou britânicos, ou norte-americanos, ou russos).

Por cá, ergue-se o coro das imbecilidades. Nesse concurso de aves canoras pontua Miguel Esteves Cardoso, com esta pérola: «As várias polícias precisam de mais poderes. Os incómodos dos cidadãos que se lixem» (Público, 14/11/2015). E há quem seja mais específico, afirmando que se alguma coisa os preocupa, é a segurança dos cidadãos residentes em Paris e outras praças maiores da Europa, onde eles têm amigos, familiares, filhos, enteados, ou simples parceiros de negócio; quanto às dezenas de milhares de mortos sírios, que se lixem. Esta é uma lógica catastrófica, niilista, a cujo processo histórico já assistimos por diversas vezes: primeiro estranha-se, depois entranha-se, como a Coca Cola. Resultado: além de não ser francês, vejo-me obrigado a não ser português – não faço parte desse grupo de portugueses dispostos a aceitar a tirania e o neocolonialismo, em nome dos seus interesses mesquinhos.



21/08/2014 – «Hollande admite que França entregou armas a rebeldes na Síria» (mas também a Hassan, como se pode ler noutras fontes)
19/04/2015 – «Irão: EUA fornecem armas ao Estado Islâmico»
29/09/2015 – «Armas acabam nas mãos do Estado Islâmico» (vindas dos EUA e da Rússia)
10/11/2015 – «a Força Aérea da França realizou um ataque contra instalações petrolíferas do grupo terrorista Estado Islâmico na Síria»
13/11/2015 – atentados à bomba e a tiro em quatro locais de Paris; cerca de 140 mortos
15/11/2015 – «Aviação francesa lança grande ataque aéreo contra Estado Islâmico na Síria»; «Em setembro, a França já havia realizado ataques aéreos contra o grupo terrorista, também na Síria. O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, comentou na ocasião que os ataques foram realizados "com fins de autodefesa".»
15/11/2015 – «12 jatos da Força Aérea francesa usaram 20 bombas sobre alvos do EI»
15/11/2015 – «Cerca de 130 pessoas morreram este domingo nos raides que a Força Aérea francesa desenvolveu contra Raqqa, a cidade síria utilizada pelo "Estado Islâmico" como capital»
etc.



-------------------------------------------------------------
[Um esclarecimento que seria desnecessário, não fosse existirem alguns maníacos dos direitos de autor: este artigo, como é evidente, glosa um tema popular francês que data pelo menos da I Guerra Mundial: «vos guerres, nos morts». Aliás, nos últimos dias, o tema tem sido glosado por dezenas de outros autores, misturando-se com mais dois temas ressuscitados na memória colectiva: «Le déserteur», de Boris Vian, e «A desobediência civil não é problema. O nosso problema é a obediência civil», de Howard Zinn.]


[18/11/2015 - correcção de alguns pequenos erros e deslizes encontrados neste artigo]

Sem comentários:

Enviar um comentário