12/11/16

Impressões categóricas - versão curta


«O Homem Orquestra», de Georges Méliès, 1900

Muitas pessoas lidam hoje com um volume de correspondência e comunicação pessoal que ultrapassou os limites da capacidade individual. A consequência é, muito possivelmente, um desarranjo das funções mentais superiores, sobre o qual tentarei lançar aqui algumas pistas.



O volume de comunicações com que muitas pessoas lidam diariamente é comparável ao volume de informação recebido num departamento de espionagem e policiamento da era da Guerra Fria – com a diferença de que nesses departamentos havia um vasto número de funcionários a gerir, analisar, «digerir», filtrar, classificar e arquivar a informação. Ora, o número de funcionários nesses departamentos de antanho não era elevado por não possuírem ainda computadores capazes de processarem a informação, mas sim porque existe um conjunto de funções mentais que nenhum computador pode preencher, nem agora nem num mirabolante futuro de ficção científica: interpretar o significado da comunicação e produzir significado a partir dela, em relação com a actividade humana e respectiva formação de consciência. Não me custa nada imaginar que num futuro próximo sejam criadas máquinas capazes de interpretar e produzir significado de forma dinâmica (os computadores actuais já lidam com significado, mas apenas de forma estática, condicionada a um modelo programático pré-concebido). Mas essa capacidade será coisa do exclusivo âmbito e competência dos computadores, pois o que melhor caracteriza a interpretação e produção de significado nos humanos é a ligação intrínseca desse processo com a formação da consciência individual – o mesmo é dizer: a ligação intrínseca entre pensamento e acção.1
 
A esmagadora maioria das pessoas que conheço adoptou um modo descontínuo de ler as mensagens. Em palavras simples: treslê. Este processo de leitura presumida e descontínua gera por sua vez diversos processos descontínuos de pensamento, responsáveis pela degradação da capacidade individual de ajuizar.
 
É também corrente a introdução numa meada de emails dum assunto que nada tem a ver com a epígrafe, de modo que tanto a organização física da informação como a sua organização mental perde-se ou descamba numa barafunda sem sentido. Este é talvez o efeito mais grave do fenómeno de exorbitância comunicativa, pois acarreta uma diminuição generalizada das capacidades mentais, sem que disso seja possível adquirir consciência.
 
As funções superiores do cérebro humano assentam em 3 operações: a metonímia, a metáfora e a categorização (sendo esta derivada das duas primeiras). Nelas assenta o sistema de representação do mundo que nos rodeia (isto é, são a base da nossa mundividência), bem como as operações de abstracção e generalização.2
 
O desarranjo generalizado da categorização das mensagens, embora possa parecer um pormenor sem relevância, é quanto a mim um sintoma alarmante do desarranjo categórico mental em curso. Este desarranjo tem consequências imediatas na mundividência, e portanto na interacção do indivíduo com o resto da sociedade e com o meio ambiente.
 
Metaforicamente o fluxo brutal de informação a que muitas pessoas estão sujeitas age nos seus processos mentais como as cheias dum rio: transborda as margens e arrasta consigo detritos, troncos e pedras, cuja limpeza exigiria um tempo e uma força indisponíveis, de tal forma que o leito normal e útil do rio (do pensamento) fica entupido, inutilizado; o fluxo transborda então de forma descontrolada, à margem de qualquer sistema organizado (de pensamento). Neste sentido, o Facebook é o paradigma da enchente pueril: passados 10 minutos, uma mensagem, por mais importante que seja, desapareceu do mapa do conhecimento, soterrada por dezenas ou centenas de «novidades» posteriores. É o síndrome do peixinho dourado, cuja memória dura apenas alguns segundos, ou, em termos mais humanos, o síndrome de Alzheimer antecipado, não por razões físicas, mas sim culturais e comportamentais.

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 ver versão longa 

notas:
 
1 Como podem deduzir, entendo que não se pode falar de consciência fora do âmbito da acção em sentido lato (incida ela sobre o ambiente exterior ou sobre o ambiente interior). É claramente um posicionamento materialista, na linha das conclusões científicas de António Damásio.
 
2 Ver: George Lakoff, Women, Fire, and Dangerous Things – What Categories Reveal about the Mind, The University of Chicago Press, 1987.

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