«O Homem Orquestra», de Georges Méliès, 1900 |
Muitas pessoas lidam hoje com um volume de correspondência e comunicação pessoal que ultrapassou os limites da capacidade individual de gestão. A consequência deste excesso é, muito possivelmente, um desarranjo das funções mentais superiores, sobre o qual tentarei lançar aqui algumas pistas.
Um dos meios mais vulneráveis a este fenómeno é o das pessoas interessadas em assuntos específicos (sociais, ambientais, políticos, científicos, …), com os quais ocupam uma parte muito importante do seu tempo. Destacam-se neste grupo os activistas, bem como largos sectores das gerações nascidas na era Internet, sejam quais forem os seus interesses. O volume de comunicações com que estas pessoas lidam diariamente é comparável ao volume diário de informação recebido num departamento de espionagem e policiamento da era da Guerra Fria – com a diferença de que nesses departamentos havia um vasto número de funcionários a gerir, analisar, «digerir», filtrar, classificar e arquivar a informação. Ora, o número de funcionários nesses departamentos de antanho não era elevado por eles não possuírem ainda computadores capazes de processarem a informação, mas sim porque existe um conjunto de funções mentais que nenhum computador pode preencher, nem agora nem num mirabolante futuro de ficção científica: interpretar o significado da comunicação e produzir significado a partir dela, em relação com a actividade humana e respectiva formação de consciência. Não me custa nada imaginar que num futuro talvez não muito longínquo possam ser criadas máquinas capazes de interpretar e produzir significado de forma dinâmica (os computadores actuais já lidam com significado, mas apenas de forma estática, condicionada a um modelo programático pré-concebido). Mas essa capacidade futura será coisa do exclusivo âmbito e competência dos computadores, pois o que melhor caracteriza a interpretação e produção de significado nos humanos é a ligação intrínseca, diria mesmo a unificação, desse processo com a formação da consciência individual – o mesmo é dizer: a ligação intrínseca entre pensamento e acção.1
Se estão a pensar que esta introdução é puramente especulativa, desafio-vos a examinarem alguns dados materiais da vida corrente, à cata de indícios empíricos, ainda que de discutível generalização.
Quanto ao volume de comunicação e informação recebido por muitas pessoas, não creio que seja necessário suar para demonstrar a diferença abissal entre os dias de hoje, onde essas pessoas facilmente recebem algumas dezenas de mensagens e comunicações diárias, e os dias de ontem, quando recebiam uma carta de correio de quando em quando e dedicavam meia hora por dia a ler o jornal.
Examinemos agora um conjunto de comportamentos ligados à recepção de comunicações.
A esmagadora maioria das pessoas que conheço foi imperceptivelmente adoptando um modo descontínuo de ler as mensagens. Em palavras simples: lê as mensagens por saltos, deixando numerosas passagens em branco e levando ao extremo aquilo que se chamava classicamente «leitura em diagonal». É até frequente gerarem-se mal-entendidos e quezílias a propósito de mensagens do tipo: «a reunião agendada para dia 12 às 14 horas, por impedimento de força maior dalguns membros do grupo, foi desmarcada»; o receptor da mensagem faz com surpreendente frequência uma leitura parcelar (lê apenas «a reunião agendada para dia 12»), presumindo que o resto são pormenores sem importância que já conhece e não merecem gasto do seu escasso tempo disponível; com base nesta presunção, comparece à reunião desmarcada, indigna-se por o terem feito perder tempo, jura a pés juntos que ninguém o avisou da desmarcação, gerando-se logo ali malquerença entre as pessoas envolvidas. Este processo de leitura presumida e descontínua (chama-se a isto tresler) gera por sua vez diversos processos de descontinuidade de pensamento e presunção, responsáveis pela degradação da capacidade individual de ajuizar.
Outro sintoma do grave desarranjo mental associado ao volume excessivo de comunicações, e aos métodos de lidar com ele, diz respeito à categorização. Assim, por exemplo, é corrente vermos ser introduzido numa meada de emails um assunto que nada tem a ver com o assunto em epígrafe, de modo que tanto a organização física da informação como a sua organização mental perde-se ou descamba numa barafunda sem sentido. Por exemplo, no meio duma meada de emails sobre um acontecimento cultural (um festival de cinema, suponhamos), encontramos uma longa mensagem de alguém, supostamente «a propósito» do tema em epígrafe, sobre a política do governo para a cultura, de forma que mais tarde, quando finalmente encontramos o tempo necessário para estudar e «digerir» o assunto, não só é impossível encontrá-lo nos meios físicos de arquivo (por estar ausente da catalogação sistemática), mas também é impossível situá-lo mentalmente. Este é talvez o efeito mais grave do fenómeno de exorbitância comunicativa, pois acarreta uma diminuição generalizada das capacidades mentais, sem que disso seja possível adquirir consciência.
As funções superiores do cérebro humano assentam sobretudo em 3 operações: a metonímia, a metáfora e a categorização (sendo esta derivada das duas primeiras). Nelas assenta o sistema de representação do mundo que nos rodeia (isto é, são a base da nossa mundividência), bem como as operações de abstracção e generalização. Trata-se de operações mentais de nível superior e apenas começam a tornar-se acessíveis 2 ou 3 anos depois de uma criança aprender a falar. Numa primeira fase, a criança consegue sem dificuldade distinguir espécies – adquire a uma velocidade notável a representação verbal e mental que lhe permite distinguir entre um banco, uma cadeira e uma mesa, embora todos eles tenham 3 ou 4 pernas. Mas o processo mental de categorização (cujos métodos e critérios variam enormemente de cultura para cultura, podendo mesmo chegar a resultados opostos em culturas diferentes) só lhe é acessível bastante mais tarde. A criança pode aprender, como dado mnemónico estático – um pouco à semelhança de um computador –, que a cadeira, a mesa e o banco fazem parte do conjunto da mobília, mas sem conseguir adquirir a abstracção categórica designada «mobília» (durante algum tempo usará a palavra como um atributo apenso à cadeira) nem conseguirá deduzir sozinha – mais uma vez, à semelhança do computador – que uma espécie de cuja existência acabou agora mesmo de tomar conhecimento (por exemplo, uma cómoda) pertence igualmente à categoria do mobiliário. Esta capacidade autónoma de integrar novas espécies em categorias abstractas culturalmente dadas leva algum tempo a ser adquirida.2 Não é por acaso, mas sim graças a um conhecimento adquirido há séculos, primeiro de forma empírica, depois com justificações científicas (a maior parte das vezes as ciências humanas limitam-se a chover no molhado, acho eu), que os programas escolares que implicam certas operações mentais superiores só começam a ser aplicados a partir dos 5-6 anos de idade.
O desarranjo generalizado da categorização das mensagens, embora possa parecer um pormenor sem relevância, é quanto a mim um sintoma alarmante do desarranjo categórico mental em curso. Este desarranjo tem consequências imediatas na mundividência, e portanto na interacção do indivíduo com o resto da sociedade e com o meio ambiente.
Metaforicamente o fluxo brutal de informação a que muitas pessoas estão sujeitas age nos seus processos mentais como as cheias dum rio: transborda as margens e arrasta consigo detritos, troncos e pedras, cuja limpeza exigiria um tempo e uma força indisponíveis, de tal forma que o leito normal e útil do rio (do pensamento) fica entupido, inutilizado; o fluxo transborda então de forma descontrolada, à margem de qualquer sistema organizado (de pensamento). Neste sentido, o Facebook é o paradigma da enchente pueril: passados 10 minutos, uma mensagem, por mais importante que seja, desapareceu do mapa do conhecimento, soterrada por dezenas ou centenas de «novidades» posteriores. É o síndrome do peixinho dourado, cuja memória dura apenas alguns segundos, ou, em termos mais humanos, o síndrome de Alzheimer antecipado, não por razões físicas, mas sim culturais e comportamentais.
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notas:
notas:
1 Como podem deduzir, entendo que não se pode falar de consciência fora do âmbito da acção em sentido lato (incida ela sobre o ambiente exterior ou sobre o ambiente interior material). É claramente um posicionamento materialista, na linha das conclusões científicas de António Damásio.
2 Ver: George Lakoff, Women, Fire, and Dangerous Things – What Categories Reveal about the Mind, The University of Chicago Press, 1987.
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