Ontem ao fim da noite ligo a televisão e dou de
caras com o final dum anúncio a uma futura emissão da TVI.
Vislumbro apenas o título, algo do género: «A casa de quem constrói as casas».
Fiquei tão entusiasmado com o que supus ser uma rara iniciativa para
mostrar ao mundo as condições de habitação do trolha que constrói a casa da
educadora de infância, do médico ou do milionário com visto gold,
que imediatamente carreguei no botão de recuar na emissão e ver o
anúncio de início. Surpresa: a série não pretende dar a conhecer
a habitação de quem constrói as casas, mas sim a de quem as
projecta (idealiza em abstracto) por encomenda de quem tem poder e
capital acumulado – ou seja, a TVI quer mostrar-nos as casas dos arquitectos e espera certamente que nos babemos a vê-las.
Acaso ou não, esta iniciativa da TVI surge numa
época em que várias câmaras municipais – com particular
destaque para a Câmara da Amadora – tentam branquear o facto
brutal de continuarem a despejar e a arrasar as casas de muitas
pessoas que constroem, limpam e cuidam … das casas dos outros. «Até
há pouco, o consenso [na Assembleia da República e no Governo] era
de que não fazia sentido falar em problemas e propostas para a
habitação, não era prioridade para ninguém, e por isso o
testemunho da relatora das Nações Unidas para a Habitação
Adequada foi um murro no estômago» (in http://www.habita.info/,
7/01/2017, por Rita Silva).
É também uma época em que grassa como fogo na
palha a moda, apadrinhada e protegida pelas autoridades
públicas, de manter a fachada dos edifícios antigos, esventrando-os
por dentro – ou seja, destruindo a parte principal do trabalho e da
criatividade arquitectónica –, para dar lugar a hotéis e
outros empreendimentos onde o turista possa gozar … a mesma
organização do espaço que encontrou em qualquer outra parte do
mundo onde tenham chegado o Ikea e os modelos de arquitectura
pronta-a-usar.
Entendam-me bem: este meu artigo não incita ao
desprezo pelos arquitectos em geral, antes chama a atenção para um
puro facto da realidade vivida: não são os arquitectos quem
constrói as casas no século XXI ! Essa é uma ideia sumamente bacoca, tão tola como chamar «produtor de cinema» a um investidor
financeiro, ou «produtor de tomate» a um sujeito que vive na cidade e
manda um capataz colocar na apanha do tomate 30 imigrantes
escravizados e introduzidos no país dentro dum contentor selado.
A noção de arquitecto como fazedor de casas tinha cabimento há 2500 anos, quando a etimologia de «arquitecto»
ainda era coerente com a realidade vivida – designava o
pedreiro-chefe (arqui-pedreiro) que comandava os demais pedreiros. Na
origem indo-europeia de teks
– donde
derivam também tecelão,
tela, tecido
e vários outros aspectos
da
produção em acto, e
não em abstracto – há
no entanto um aspecto etimológico que se mantém: a relação
entre a projecção de espaços e o poder.
Sendo a arquitectura a arte de reorganizar o
espaço segundo as necessidades e os interesses humanos, a pergunta
imediata que qualquer pessoa com um mínimo de lucidez política deve
colocar-se é esta: cada projecto de arquitectura serve as
necessidades e os interesses de quem?
Dos especuladores e investidores imobiliários? Ou
dos que constroem as casas e os teares?
De quem cultiva o fetiche de acumular propriedades
e riquezas? Ou daqueles que, nada tendo de seu, necessitam
desesperadamente de um tecto para se abrigarem em condições dignas?
De quem tem meios para mandar projectar e
construir casas? Ou de quem não tem uma casa a que possa chamar sua, sendo
obrigado a suar as estopinhas, todos os dias da sua vida, para alugar
um quarto?
De quem pode apresentar um vasto conjunto de
propriedades imobiliárias como garantia dum empréstimo sacado junto
do Banco Central Europeu, a fim de obter liquidez para comprar dívida
pública? Ou dos trolhas e tecelões que irão pagar essa dívida?
Da glória vã da arquitectura? Ou do facto de a
dívida pública apenas se justificar se for destinada (entre outras
coisas de utilidade pública) a construir habitação social para
quem precisa?
O arquitecto já não é o
artífice/filósofo/cientista que pensa o espaço humanizado e mete
as mãos na massa (e
peço perdão às eventuais excepções que por esse mundo fora
subsistam). É uma extensão executiva e engalanada do poder – do
poder económico, do poder político, do poder académico. É um
escravo vestindo as mesmas roupagens do seu senhor e com isso se
sentido as mais das vezes acima dos demais escravos. Esta sim, seria
uma realidade a considerar na feitura de qualquer série televisiva
actual sobre arquitectura, porque nos mostraria o lugar de cada coisa
e de cada pessoa no mundo. Reconheço, contudo, que só uma inocência
pueril como a minha pode esperar da TVI algo mais que não
seja a educação para a tolice.
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