20/07/17

Fogos, relatórios, inquéritos e teses: Hades cá vir

Em pleno Hades de desolação e cinza, um porto salvo, graças à reflorestação por iniciativa das populações. Foto publicada no Jornal de Leiria, sem autor explícito

Há cerca de meio século (salvo erro) que a população portuguesa do interior e das zonas periféricas é anualmente fustigada por incêndios de proporções dantescas. Passada a fronteira das últimas chuvas de Abril, o país entra no inferno dos fogos florestais. Segue-se uma jornada pelo reino de Hades: desolação, cinza e sofrimento.
Todos os anos (ou quase) os poderes públicos constituem comissões de inquérito, estudo e investigação, com o fim de resolver o problema. Já iremos nesta altura com umas boas 50 comissões de estudo, relatórios e teses. A solução é pois conhecida: abolir o plantio extenso de eucaliptos. Porém, o lobby dos madeireiros e da indústria madeireira tem mais força que 50 relatórios técnicos e académicos. Só a iniciativa autónoma das populações pode pôr fim à calamidade.

Este ano o banquete das harpias mediáticas foi luxuoso. Foi dose reforçada. Mas nada de qualitativamente novo aconteceu: a ementa mantém-se. Se o sofrimento humano fosse mensurável, poderíamos dizer: pois é, houve novidade. Mas a dignidade humana e o sofrimento não são mensuráveis; não existe qualquer diferença qualitativa entre meia dúzia de mortos e feridos (coisa habitual todos os anos) e 64 mortos e 200 feridos.
Todos os anos os poderes públicos se aprestam a oferecer ajuda económica. De que adianta isso? De nada, como se prova no ano seguinte, às vezes com repetição das mesmas vítimas, nos mesmos lugares. Querer apagar fogos com indemnizações é de um ridículo macabro.
De resto, as vidas não se aquilatam pelo número de mortos. É certo que a morte de uns pesa sobre os que cá ficam, mas as vítimas sobreviventes sofrem o desaparecimento dos haveres pessoais, do abrigo, das memórias materiais dos seus afectos, dos meios de produção com que trabalharam uma vida inteira é uma morte em vida, um purgatório. Nenhuma indemnização, nenhuma linha de apoio psicológico pode compensar essa perda de bens, de meios de produção e de memórias afectivas que abarcam não só a vítima, mas até várias gerações anteriores.
A situação não só não melhora de ano para ano, como até piora, ao ponto de Portugal se ter tornado, no curso de 50 anos, a maior concentração europeia de eucaliptos. Para isso contribuíram criminosos como a ex-ministra Assunção Cristas – especialista na prática de crimes contra a humanidade, juntamente com os demais membros dos governos de Passos Coelho –, que liberalizou totalmente a plantação de eucalipto.

Contudo, este ano assistimos, de facto, a algo novo: os habitantes duma das aldeias afectadas reuniram-se no rescaldo do fogo e decidiram criar uma zona circundante onde é proibido o eucalipto. Outras aldeias seguiram o exemplo. Por outras palavras, algumas populações locais conseguiram resolver (parcialmente) em 24 horas o que os poderes públicos não lograram (ou não quiseram) fazer em cinco décadas. E isto faz toda a diferença, não só na vida das pessoas envolvidas, mas também politicamente. Esta linha de actuação situa-se no pólo oposto das soluções políticas que preconizam uma simples reforma das instituições (seja em Portugal, seja na Europa) ou uma cordata negociação com os poderes económicos.
Face ao historial incendiário das últimas décadas, a proscrição do eucalipto por iniciativa das populações locais é a única novidade realmente importante deste ano. Assim o fogo da autonomia organizativa das populações alastrasse a outras regiões e a outros sectores da vida social.



Referências:
DN, 7-07-2017«Estes fogos [de Pedrógão Grande e Góis] terão afectado aproximadamente 500 habitações [...] Quase 50 empresas foram também afectadas, assim como os empregos de 372 pessoas. Os prejuízos directos dos incêndios ascendem a 193,3 milhões de euros, estimando-se em 303,5 milhões o investimento em medidas de prevenção e relançamento da economia.»



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