O referendo independentista catalão tem sido
tratado em moldes legalistas e institucionais pela maioria dos
comentadores. Ora o cerne da questão não é jurídico,
constitucional ou institucional, mas sim histórico e político.
Adiante tentarei elucidar o que isto significa.
Vemos jornalistas, comentadores – nomeadamente
escritoras de renome –, com assento permanente nos púlpitos
televisivos, afirmarem coisas como: se nos pomos agora a permitir que
todas as populações com remotas razões históricas reivindiquem a
independência, qualquer dia temos os Algarves, a Madeira e os Açores
a pedirem a independência. O grau de disparate deste tipo de
afirmações é confrangedor.
Não tenho agora tempo para me ocupar com
investigações de lana-caprina, por isso não posso afiançar qual
terá sido a atitude desses mesmos comentadores quando o mundo
ocidental decidiu alinhar no esquartejamento, a ferro e fogo, da
antiga República Socialista Federal da Jugoslávia. Tanto quanto a
minha fraca memória alcança, não me lembro que alguém tenha
invocado a constituição jugoslava para pôr termo à secessão e ao
morticínio. E notem que se tratava duma federação, não de uma
república una ou duma monarquia …
A legitimidade da autodeterminação não deriva duma bandeira hasteada, mas sim duma vontade popular persistente e continuada
Para repormos a discussão nos eixos, é preciso
recordarmos aos nossos confusos comentadores de serviço que entre a
Catalunha e os Algarves não existem pontos comuns. Os Algarves,
ainda que possam manter alguns traços culturais distintivos (como de
resto todas as regiões de todas as nações em todo o mundo), não
teimaram em manter uma língua própria; quanto à Madeira e Açores, eram
ilhas inabitadas, não foram terras conquistadas a ferro e fogo, não
implicaram massacres e genocídios. Se algum movimento
independentista por lá apareceu alguma vez, isso deveu-se a um
oportunismo político grosseiro. De modo que qualquer comparação
entre os Algarves (e quejandos) e a Catalunha só pode ter fins
demagógicos (sendo esta a explicação mais simpática que posso colar aos seus autores).
A questão também não se reduz a saber
se a Catalunha foi terra violentamente conquistada por um imperador
– a unidade de todas as nações europeias tem exactamente os
mesmos antecedentes: conquista militar violenta, predadora dos bens e
das almas, sangrenta, violadora das mulheres e crianças, castradora
da língua, da cultura e da memória locais.
O cerne da questão reside em saber se existe ou
não uma vontade autonómica e independentista, uma resistência ao
poder ocupante, de forma persistente e continuada. Ora, há quatro
séculos que os catalães lutam contra a presença das tropas
castelhanas; há quatro séculos que, de forma reiterada e
continuada, rolam cabeças por causa do poder ocupante. A língua
catalã (sim, é uma língua distinta, não é um dialecto) foi
tenazmente preservada, escrita, falada, durante séculos, contra tudo
e contra todos, arrostando à conta disso uma repressão sangrenta. E
se o meu leitor fizer o favor de visitar as muralhas que rodeiam
Barcelona, verificará esta coisa extraordinária, ainda hoje: os
canhões instalados nas muralhas não apontam para o exterior, contra
um possível invasor, como é costume em toda a parte, mas sim para
dentro, contra a própria população! Face a este dado histórico continuado, podemos
dizer que o referendo actual é apenas um pormenor (que até pode,
dou de barato, ser poluído por circunstâncias e jogos políticos de
ocasião) numa longa história de resistência contra o poder
central.
O argumentário legalista e constitucional releva da ignorância
Outro dos argumentos centrais propostos pelos comentadores, a começar pelas nossas ilustres escritoras com direito a fazer tergiversações políticas na TV, é o de que o referendo catalão ou qualquer outra forma consultiva da vontade popular de autodeterminação são ilegítimos, por irem contra a constituição espanhola. É a minha vez de fazer uma comparação à pressão: imaginemos que alguém se lembrava, em 1970, de fazer um referendo sobre a vontade independentista em Moçambique, ou em Angola, ou na Guiné. Imediatamente seriam enviadas (mais) tropas e se levantaria um coro de vozes esclarecendo que a constituição portuguesa considerava unas e indivisíveis do território nacional essas províncias e por conseguinte o acto referendário era ilegítimo. Ou, se preferem: imaginemos que, face à sublevação popular da Revolução Francesa, ou norte-americana, ou indiana, ou qualquer outra população sujeita a um domínio político e militar que ela própria não aceita, vinham os comentadores políticos afirmar a sua ilegitimidade, em razão das leis instituídas. Não preciso fazer um desenho, espero eu, para se perceber o ridículo do argumento legalista e constitucional. Todo o acto de autodeterminação é contrário à ordem legal instituída, por definição.
Desde os tempos do Iluminismo, o que legitima um
regime não é a lei vigente, mas sim a vontade popular. Podemos
prescindir deste princípio, se quisermos, mas então temos de estar
preparados para regressar às trevas, a uma época em que ainda se
desconhecia o que é o exercício democrático, a separação de
poderes, a legislação com base (pelo menos em teoria) na vontade
popular, e assim por diante.
Além disso, já que querem falar de
jurisprudência, é preciso dizer o seguinte: a jurisprudência
internacional contempla a autodeterminação, não é contra ela;
aceita que, após um acto de independência, a lei anterior não pode
ser invocada. O pior que pode acontecer a um povo que exerceu o seu
direito inalienável à autodeterminação é a comunidade
internacional estar amarrada a interesses políticos, comerciais e
estratégicos que a impedem de reconhecer, em casos pontuais, a
independência desse povo; mas isso significa apenas que a comunidade
internacional, por razões pouco abonatórias, abriu uma excepção
contra a jurisprudência que ela própria construiu ao longo dos
séculos; não significa que a jurisprudência internacional foi
abolida e que podemos fazer tábua rasa de todas as práticas e
ideias iluminadas que fomos burilando ao longo dos séculos. Os
comentadores que ignoram este dado não se limitam a fazer prova de
ignorância e burrice – são um perigo para a opinião pública.
O negócio da comunicação social tornou-se mais forte que a lógica política
Praticamente todos os comentadores zurziram na
violência exercida pelo Estado central espanhol contra a população
catalã, a propósito do referendo independentista – valha-nos
isso! Incluem-se neste grupo os que consideram ilegítimo o direito à
autodeterminação catalã. Por outras palavras, os comentadores
podem não perceber nada de jurisprudência internacional, podem ser
perfeitos burros em matéria de história e direitos dos povos, mas
são sensíveis ao espectáculo do sangue promovido pela comunicação
social … para, logo a seguir, prosseguirem calmamente as suas
críticas ao referendo catalão, como se alguma vez na história da
humanidade uma potência ocupante (neste caso o Estado central
espanhol) tivesse resolvido uma tentativa de autodeterminação com
chá e bolinhos. É preciso ser um bocadinho tonto para
acreditar em semelhante conto de fadas.
E no entanto …
Para que não se gerem mal-entendidos sobre as
minhas próprias posições (ainda que elas não sejam para aqui
chamadas), devo esclarecer que tenho um ódio de estimação aos
nacionalismos e à ideia de nação, que é uma ideia sem sentido, sem
bases materiais, artificialmente gerada pelo estado burguês e que
apenas serviu para esmagar culturas, línguas, autonomias,
solidariedades entre povos, e para gerar exércitos milicianos
(=baratos, por oposição aos exércitos mercenários). Por isso
reservo alguma desconfiança em relação a processos
independentistas dentro do mundo ocidental actual. No clima político
actual, as minhas desconfianças são agravadas pelo oportunismo de
extrema direita nacionalista e por uma onda de xenofobia que parece
galgar barreiras e conquistar novos adeptos com alguma facilidade,
tirando partido do desnorte de populações crescentemente oprimidas
e exploradas.
Ao ouvir alguns catalães queixarem-se da
quantidade de riqueza que sai do território catalão para o resto da
Espanha, resta-me ter fé em que, no caso de a Catalunha se tornar um
dia independente, não se esqueça de exercer alguma solidariedade
real com as populações mais desfavorecidas, mais pobres e mais
oprimidas do resto da Ibéria. Aliás, receio que o povo catalão, se
não manifestar desde já formas concretas de exercer essa
solidariedade no futuro, não possa contar com a solidariedade actual
das restantes populações ibéricas. No entanto, compreendo que a
autodeterminação catalã possa ser uma arma de circunstância.
De resto, a mim, que não sou catalão – ou
galego, ou basco, ou negro, ou guarani, ou de uma identidade de
género oprimida –, não me compete dizer qual a melhor forma
de esses grupos sociais fazerem valer os seus direitos e alcançarem
uma melhoria de bem-estar e felicidade. Só eles podem dizê-lo; a
nós compete-nos respeitar a sua vontade e apoiá-la.
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