31/10/17

Balanço da 5ª Cimeira por um Plano B para a Europa

Realizou-se em Lisboa, no fim de semana de 21-22/Outubro/2017, o 5º encontro internacional por um Plano B para a Europa. Trata-se duma iniciativa ainda pouco divulgada mas que interessa à generalidade das populações europeias, por isso tentarei explicar do que se trata e fazer um balanço da situação – um balanço parcelar e abreviado, que deve ser entendido como uma impressão subjectiva, por não ter sido discutido em nenhum colectivo.

Como nasce o Plano B

Em Julho de 2015 os eleitores Gregos exprimiram a sua vontade quanto às medidas de austeridade propostas pelos credores e pelos poderes públicos europeus. A resposta helénica, dada por 63 % do eleitorado, foi clara: NÃO, obrigado (61 % dos votos). É preciso acrescentar que esta votação foi feita sob uma catadupa de ameaças e chantagens atemorizantes lançada pelos dirigentes da UE, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela banca privada, o que confere redobrada força à expressão popular.
A reacção dos manda-chuvas da UE pode ser resumida numa curta frase do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Junker: «Não pode haver escolhas democráticas contra os tratados europeus». Esta tirada glosa outra declaração de Junker, datada de 2005: «os tratados europeus estão acima da democracia». Este desprezo pela vontade expressa do povo grego não é surpreendente retém na memória os seus antecedentes.1
Parece-me evidente que as autoridades públicas, ao convocarem referendos, visam sobretudo legitimar aos olhos das populações um conjunto de instituições executivas europeias jamais sufragadas. Estas entidades, que podemos justamente classificar de ilegítimas, detêm um poder imenso sobre a vida de todos os cidadãos da UE. Contudo, foi preciso assistirmos à violação grosseira da vontade do povo grego, para que alguns políticos mais distraídos acordassem para a realidade. Figuras como Ianis Varoufakis, que se tinham prestado a encenar negociações entre o Governo grego e os representantes das autoridades europeias e das corporações financeiras, acordaram no dia seguinte em súbito estado de indignação. Eis o busílis da questão: as «negociações» entre Gregos e credores, estes mediados pela UE, jamais permitiriam negociar coisa alguma; apenas serviram para dar uma aparência de legitimidade ao conjunto de poderes que verdadeiramente governa a Europa. Algumas das figuras que começaram por colaborar nessa legitimação clamam agora – quando já não ocupam cargos públicos – por justiça, democracia, autonomia.
Os maus tratos aplicados ao povo grego em resposta ao referendo de 2015 tiveram pois o mérito de despoletar diversas iniciativas que põem a nu a natureza desta UE. Entre elas destacaram-se o Plano B para a Europa, o Austerexit e o DiEM25 (Democracy in Europe Movement 2025). Umas têm um pendor reformador (caso do DiEM25), mantendo a ilusão de que seria possível «curar» esta UE. Outras propõem um corte radical, consumado em actos de desobediência às autoridades europeias (caso de uma das tendências presentes no Plano B para a Europa). Apesar da sua diversidade, todas elas convergem na condenação da natureza antidemocrática, economicista e neoliberal da UE no seu estado actual; desmascaram além disso o facto de os executivos e demais autoridades da UE agirem como meras correias de transmissão das corporações patronais internacionais, das transnacionais e da banca privada2. Uma tal concordância não é coisa pouca e permite, se assim quisermos, formar uma frente unida – pelo menos numa primeira fase de luta – contra a oligarquia europeia.
Notam-se grandes diferenças na capacidade de organização e comunicação das várias iniciativas. O DiEM25 mantém uma página de Internet actualizada, bem organizada, com publicação regular de documentação e notícias; identifica com clareza os seus responsáveis. O Plano B, pelo contrário, carece de um órgão permanente de comunicação que lhe dê rosto, que una as diversas tendências presentes e que agite as populações.
A única iniciativa que acompanhei com alguma atenção desde o seu início foi o Plano B para a Europa – só dela posso falar com algum detalhe. Começo por destacar alguns pontos significativos:
  1. Na declaração inicial do Plano B: «Propomos (...) a realização de uma cimeira internacional para um plano B na Europa, aberta a cidadãos voluntários, organizações e intelectuais. (...) Junte-se a nós!». Este apelo cria a expectativa implícita de uma abertura ampla, inclusiva dos movimentos sociais.
  2. Noutro passo lê-se: «propomos a convocação de uma cimeira internacional para um plano B na Europa». Uma vez que expressão «cimeira» é explícita, fica aberta a possibilidade de a abertura proposta no ponto anterior ficar sujeita uma hegemonia de cúpulas.
  3. Cada um dos 5 encontros internacionais realizados abriu a sua própria página na Internet – pobre, desinteressante, vazia de dados, documentação e notícias. No dia seguinte à conclusão dos eventos, as respectivas páginas de Internet morrem, sem deixar descendentes.
  4. O primeiro apelo ao Plano B não incluía uma colagem a qualquer força partidária específica; nem punha à cabeça do chamado a ideia de «cimeira». A convocatória e a propaganda do 5º encontro, em Lisboa, colam indelevelmente ao BE toda a iniciativa e propagandeiam-no como cimeira, e não como encontro aberto.
  5. Passaram dois anos desde o lançamento da iniciativa; já vamos no encontro internacional. Seria de esperar que a convocatória fosse acompanhada de documentos preparatórios, do abandono das declarações genéricas, abstractas, vagas, em favor da montagem de oficinas de estudo sectorial, da construção de propostas e planos de intervenção. Nada disto aconteceu.
  6. O evento de Lisboa adoptou o formato de cimeira de cúpulas partidárias, aberta à participação de cidadãos, movimentos sociais e ONG. Esta postura reflectiu-se em toda a organização do encontro. Nos cartazes de propaganda do evento a expressão «Plano B» só pode ser gráfica e semanticamente lida como uma bandeira do BE, com o apoio do GUE/NGL (grupo euro-parlamentar de esquerda).
  7. Várias tendências coabitam a «cimeira». Uma defende em abstracto o confronto com a UE e respectivas autoridades; quando chega o momento de apontar vias de acção, opta pelo statu quo (por exemplo, defendendo a renegociação da dívida, num perpetuum mobile que retoma a capitulação do governo de Tsipras, como um hamster preso no interior da sua roda incansável). Outra tendência, defensora da desobediência como forma de mandar abaixo todo o sistema europeu instalado, manteve-se à beira do silêncio neste 5º encontrotalvez para não criar disrupções dentro das hostes?

O formato genérico do Plano B para a Europa

Não pude estar presente nos 4 encontros anteriores, o que me impede de os comentar e comparar.
Recordemos mais uma vez o primeiro manifesto do Plano B, surgido por volta de Outubro de 2015. Nele encontramos apelos alargados:
«[o nosso plano] é inclusivo e apela à maioria dos europeus»3,
que podem ser entendidos como referências implícitas a um formato participativo, e apelos restritos explícitos:
«propomos a convocação de uma cimeira internacional para um plano B na Europa»4.
O documento tem uma postura periclitante: um pé no formato fórum (personalidades avulsas + movimentos sociais), outro pé no formato cimeira (cúpulas partidárias + académicos + negociações de bastidores). Olhando para a sua aplicação prática na Cimeira de Lisboa, concluo que o segundo pé venceu o primeiro.
O texto fala também de planos A, planos B … que planos são esses?, para onde caminham eles?
«O nosso plano A é este: vamos trabalhar em cada um dos nossos países, e em conjunto por toda a Europa, para uma completa renegociação dos Tratados Europeus.»5
Para o caso de este plano falhar, é feita alusão a um plano B, cujos vagos contornos apontam para formas de confronto com os poderes instalados na UE.
Uma questão atravessa todos os caminhos possíveis: nenhum plano pode resultar, seja ele A,B,...Z, se não existir um programa de acção. Talvez eu tenha adormecido algures a meio dos trabalhos, mas até à data não vi um programa com cabeça, tronco e membros, passível de apontar às populações de toda a Europa os caminhos da desobediência.
O documento fala de fraternidade, de solidariedade entre povos da Europa, de reposição da democracia e da soberania, dando uma importância particular, julgo eu, às questões monetárias e financeiras.
Intui-se no documento a vontade de manter unidas diversas fileiras: os que acreditam na possibilidade de reformar/curar a UE; os que não acreditam na solução reformadora; os que acreditam na possibilidade de renegociar as dívidas soberanas a contento dos povos; os que pensam que grande parte das dívidas é ilegítima; os que não sabem ainda para que lado hão-de cair. Se for correcta esta a leitura, se de facto existe uma vontade unificadora, tanto melhor. Mas nesse caso gostaria de propor duas leis universais6:
  1. Uma estrutura que patina eternamente sobre as suas próprias declarações genéricas, abstractas ou interpretativas não tem capacidade agregadora; tende a promover o estreitamento das suas hostes e prepara uma quantidade de cisões futuras.
  2. Uma estrutura capaz de produzir simultaneamente um programa estratégico genérico e múltiplos programas concretos de acção é mobilizador, em princípio.
Boa parte das comunicações que ouvi na cimeira de Lisboa foram generalistas e interpretativas; por vezes lambuzadas de proselitismo, como aconteceu nos plenários de abertura e fecho. Em honra das excepções, gostaria de reproduzir (por palavras minhas, filhas de fraca memória) uma parte da intervenção de uma das conferencistas, militante na luta por habitação:
É um facto que os habitantes dos bairros de lata e outros bairros pobres fogem da intervenção partidária como o diabo da cruz. Isto devia fazer-nos pensar. Terão os partidos da esquerda dificuldades em estabelecer pontes com esses sectores da população, de entender os seus problemas quotidianos reais?
[Nota: esta intervenção é insuspeita, por não vir de alguém com uma patologia antipartidária, mas sim de uma militante permanente do BE. De resto, qualquer activista que tenha passado muito tempo junto dessas populações sabe que o relato da conferencista é justo e verdadeiro.]

5ª Cimeira do Plano B

Realizaram-se encontros internacionais do Plano B em Paris, Roma, Copenhaga e Madrid. Foi agora a vez de Lisboa. A organização esteve a cargo do Bloco de Esquerda (BE), como é natural, tratando-se de um encontro internacional deste tipo, realizado em Lisboa.
O documento de apresentação da Cimeira de Lisboa ecoa o manifesto inicial do Plano B, onde podemos ler:
«Os partidos políticos progressistas, as organizações sindicais, os movimentos feministas, ambientalistas, de defesa dos direitos humanos, sociais, bem como os activistas envolvidos no Plano B estão unidos na sua mensagem: entre salvar a UE e o Euro e salvar os nossos povos das garras da austeridade, escolheremos sempre preservar os direitos sociais e democráticos dos nossos povos» [sublinhados meus].
Este jeito de falar, sem mandato expresso, em nome de outros colectivos é coerente com o formato adoptado.

O formato da Cimeira de Lisboa

O formato adoptado pelos organizadores é uma espécie de ménage à trois: uma cimeira, um comício e uma série de aulas-palestra, todos embrulhados no mesmo lençol. A coisa passou-se assim:

  1. Um programa de palestras (desculpem, mas não encontrei a versão on-line em português) organizado por temas:
    • Plenário – Abertura e boas-vindas
    • 10 anos de Tratado de Lisboa; planos Makron para o futuro da Europa
    • A desobediência civil pode salvar a democracia europeia?
    • Governança do euro e dívida: que tipo de ruptura com a UE(M)?
    • UE e defesa: diversos caminhos para a paz na Europa
    • O papel dos movimentos sociais na luta pelos direitos sociais na Europa
    • Impacte da austeridade no género e nas gerações futuras
    • Plenário – Relatório das sessões e encerramento – Que caminhos? Um Plano B para a Europa.
    À excepção dos plenários inicial e final, as restantes sessões efectuaram-se em paralelo, duas a duas.
  1. É uma cimeiraencontro organizado pelas cúpulas de vários partidos de esquerda radical, cabendo a maioria do encargo organizativo ao BE, como é natural. Os conferencistas foram na sua maioria responsáveis dos partidos apoiantes, eurodeputados, ex-ministros.
  2. Aparenta alguns aspectos do formato fórum – abre as portas a toda a gente, mediante inscrição prévia.
  3. Cada sessão consistiu num painel de 4 ou 5 conferencistas convidados para falarem perante uma plateia. Após estas dissertações, a plateia era autorizada, no curtíssimo espaço de tempo restante, a colocar questões sucintas aos conferencistas (idealmente 2 minutos para cada pergunta). Feita uma ronda inicial de perguntas (cerca de 6), o painel respondia, na prática sem limite de tempo. Ora, após 5 longas respostas às 6 perguntas sucintas, não sobrava tempo para uma segunda ronda. Este formato tornou-se desmobilizador para muitas pessoas que compareceram à iniciativa pela primeira vez.

Em suma, o formato escolhido pareceu-me desmobilizador, eivado de proselitismo, bloqueador de uma dinâmica de trabalho alargada, pragmática e criativa. A única forma de sair dali com algumas luzes sobre os caminhos práticos a seguir e com um esboço de programa de acção coordenada, teria sido o formato de encontro com oficinas, em pequenos grupos de trabalho animados por activistas directamente ligados à intervenção social.

Relações de coerência entre forma e conteúdo

Já referi os temas das sessões. Também já referi o formato de palestra-cimeira. Falta-me referir um aspecto formal importante: o formato comício.
Logo no plenário de boas-vindas e abertura, a cargo de Catarina Martins, deparamo-nos com uma surpresa: um discurso fortemente centrado nos problemas nacionais, na relação de forças entre o BE e a geringonça, nos detalhes circunstanciais dos incêndios e outros aspectos do momento político local. Esta intervenção de oportunidade foi feita perante um forte aparato de câmaras mediáticas, dando-me a sensação de que Catarina Martins não estava a falar para nós, ali presentes (e note-se que muitos fizeram milhares de quilómetros para comparecerem), nem para a generalidade dos europeus, mas sim para o eleitorado português. Nós éramos portanto o ramalhete que compunha a sala, diante das câmaras de televisão – um ramalhete composto por cerca de 300 flores que, na ausência de documentos preparatórios de trabalho, dispunham de duas mãos livres para aplaudir.
Não espanta que o plenário para apresentação das conclusões das sessões paralelas tenha sido confrangedor: de facto, na falta de ateliers de trabalho, nada havia para relatar.
Quanto ao plenário de encerramento, seguiu o mesmo caminho do plenário de abertura, com o mesmo número de câmaras de vídeo ou TV.
Em suma: este formato de Cimeira por um Plano B para a Europa pareceu-me inútil, para além dos seus óbvios méritos propagandísticos e do proselitismo embebido nas suas intervenções mais mediáticas. Saímos dali sem planos concretos de trabalho, sem um projecto de debate e estudo para as questões de desobediência e confronto com os poderes da UE, sem um rumo até à próxima cimeira. Note-se que as acções de desobediência e contestação às directivas e tratados da UE não são nada fáceis de definir e pôr em prática ao nível das populações e dos movimentos sociais, por isso seria indispensável trocar experiências, estudar situações concretas, apontar soluções pragmáticas. E por fim o afunilamento da iniciativa pelo BE pareceu-me desnecessário e contraproducente. Não passa despercebida a ausência de várias correntes políticas e partidárias que faria todo o sentido estivessem presentes – já para não falar de diversos movimentos sociais e sindicais cuja presença seria natural, dadas as suas práticas de combate aos poderes da UE.
Tudo somado, vejo com bastante preocupação o futuro desenvolvimento de uma resistência séria a esta UE antidemocrática, oligárquica e opressora dos povos da Europa e da sua soberania.

Notas:
1 No respeitante à constituição europeia (Tratado de Roma), realizaram-se consultas directas à população (referendos) em 4 países: Espanha, França, Holanda, Luxemburgo. Franceses e Holandeses votaram maioritariamente contra; a maioria dos votantes espanhóis aprovou o tratado, mas convém recordar que apenas 42 % dos eleitores votaram. Como sabemos, as populações que votaram contra tornaram-se afinal parte plena da UE … Em 6 países – Dinamarca, Irlanda, Polónia, Portugal, Reino Unido e República Checa – estava previsto o referendo, mas afinal as autoridades públicas julgaram mais prudente não permitir que a população se pronunciasse …
Quanto ao Tratado de Lisboa, os arquitectos da UE já estavam escaldados: optaram por fugir à consulta popular, com excepção da Irlanda, em 2008. O resultado deste referendo deixou a UE em maus lençóis (participação = 53 % do eleitorado; não ao tratado = 53 % dos votos expressos). Em 2009 os poderes públicos voltaram à carga com um segundo referendo e conseguiram introduzir alterações à Constituição irlandesa: a Câmara Baixa irlandesa pôde então aprovar o tratado sem consultar mais ninguém.
2 As grandes linhas estratégicas das transnacionais, do sector financeiro e das corporações patronais internacionais são delineadas com muita antecedência (geralmente bem mais de uma década). Uma leitura atenta destes dos estudos, propostas e planos mostra que numerosos tratados e diplomas estruturantes da UE e limitativos da soberania do Estados-membros foram feitos em regime de corta-e-cola (cut & paste), a partir desses documentos. A usurpação do poder democrático pelas empresas privadas é detalhadamente mostrada por Susan George no seu livro Os Usurpadores, publicado por
3 «[Our plan] is inclusive and aims at appealing to the majority of Europeans», A Plan B in Europe.
4 «We therefore propose the convening of an international summit on a plan B for Europe», ibid.
5 «This is our plan A: We shall work in each of our countries, and all together throughout Europe, towards a complete renegotiation of the European Treaties», ibid.
6 É claro que as duas leis que proponho apenas são «universais» no conjunto das sociedades capitalistas em que o produtivismo se tornou uma ideia profundamente embebida na cultura popular.

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