Realizou-se em Lisboa, no fim de semana de
21-22/Outubro/2017, o 5º encontro internacional por um Plano B para
a Europa. Trata-se duma iniciativa ainda pouco divulgada mas que
interessa à generalidade das populações europeias, por isso
tentarei explicar do que se trata e fazer um balanço da situação – um balanço parcelar e abreviado, que deve ser entendido como uma impressão subjectiva, por não ter sido discutido em nenhum colectivo.
Como nasce o Plano B
Em Julho de 2015 os eleitores Gregos exprimiram a
sua vontade quanto às medidas de austeridade propostas pelos
credores e pelos poderes públicos europeus. A resposta helénica,
dada por 63 % do eleitorado, foi clara: NÃO, obrigado (61 %
dos votos). É preciso acrescentar que esta votação foi feita sob
uma catadupa de ameaças e chantagens atemorizantes lançada pelos
dirigentes da UE, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela banca
privada, o que confere redobrada força à expressão popular.
A reacção dos manda-chuvas da UE pode ser
resumida numa curta frase do presidente da Comissão Europeia,
Jean-Claude Junker: «Não pode haver escolhas democráticas contra
os tratados europeus». Esta tirada glosa outra declaração de
Junker, datada de 2005: «os tratados europeus estão acima da
democracia». Este desprezo pela vontade expressa do povo grego não
é surpreendente retém na memória os seus antecedentes.1
Parece-me evidente que as autoridades públicas,
ao convocarem referendos, visam sobretudo legitimar aos olhos das
populações um conjunto de instituições executivas europeias
jamais sufragadas. Estas entidades, que podemos justamente
classificar de ilegítimas, detêm um poder imenso sobre a vida de
todos os cidadãos da UE. Contudo, foi preciso assistirmos à
violação grosseira da vontade do povo grego, para que alguns
políticos mais distraídos acordassem para a realidade. Figuras como
Ianis Varoufakis, que se tinham prestado a encenar negociações
entre o Governo grego e os representantes das autoridades europeias e
das corporações financeiras, acordaram no dia seguinte em súbito
estado de indignação. Eis o busílis da questão: as «negociações»
entre Gregos e credores, estes mediados pela UE, jamais permitiriam
negociar coisa alguma; apenas serviram para dar
uma aparência de legitimidade ao conjunto de
poderes que verdadeiramente governa a Europa. Algumas das
figuras que começaram por colaborar nessa legitimação clamam agora
– quando já não ocupam cargos públicos – por
justiça, democracia, autonomia.
Os
maus tratos aplicados ao povo grego
em resposta ao referendo de
2015 tiveram
pois o
mérito de despoletar
diversas
iniciativas que
põem a nu a natureza desta UE.
Entre elas destacaram-se
o Plano
B para a Europa, o
Austerexit
e o
DiEM25 (Democracy in Europe
Movement 2025). Umas
têm um pendor reformador
(caso do DiEM25), mantendo
a ilusão de que seria
possível «curar»
esta UE. Outras
propõem um
corte radical, consumado
em actos de
desobediência às
autoridades europeias (caso
de uma das tendências
presentes no Plano B para a Europa).
Apesar da sua diversidade, todas elas convergem na condenação
da natureza antidemocrática, economicista e neoliberal da UE no seu
estado actual; desmascaram além disso o facto de os executivos e
demais autoridades da UE agirem como meras correias de transmissão
das corporações patronais internacionais, das transnacionais e da
banca privada2.
Uma tal concordância não é coisa pouca e permite, se assim
quisermos, formar uma frente unida – pelo menos numa primeira
fase de luta – contra a oligarquia europeia.
Notam-se
grandes diferenças na
capacidade de organização e
comunicação
das várias iniciativas.
O
DiEM25 mantém uma página de
Internet actualizada, bem organizada, com publicação
regular de documentação e
notícias; identifica com
clareza os seus responsáveis.
O Plano B, pelo
contrário, carece de um
órgão permanente de comunicação que lhe dê rosto, que
una as diversas tendências presentes
e que agite
as populações.
A única iniciativa que acompanhei com alguma
atenção desde o seu início foi o Plano B para a Europa – só
dela posso falar com algum detalhe. Começo por destacar alguns
pontos significativos:
-
Na declaração inicial do Plano B: «Propomos (...) a realização de uma cimeira internacional para um plano B na Europa, aberta a cidadãos voluntários, organizações e intelectuais. (...) Junte-se a nós!». Este apelo cria a expectativa implícita de uma abertura ampla, inclusiva dos movimentos sociais.
-
Noutro passo lê-se: «propomos a convocação de uma cimeira internacional para um plano B na Europa». Uma vez que expressão «cimeira» é explícita, fica aberta a possibilidade de a abertura proposta no ponto anterior ficar sujeita uma hegemonia de cúpulas.
-
Cada um dos 5 encontros internacionais já realizados abriu a sua própria página na Internet – pobre, desinteressante, vazia de dados, documentação e notícias. No dia seguinte à conclusão dos eventos, as respectivas páginas de Internet morrem, sem deixar descendentes.
-
O primeiro apelo ao Plano B não incluía uma colagem a qualquer força partidária específica; nem punha à cabeça do chamado a ideia de «cimeira». A convocatória e a propaganda do 5º encontro, em Lisboa, colam indelevelmente ao BE toda a iniciativa e propagandeiam-no como cimeira, e não como encontro aberto.
-
Passaram dois anos desde o lançamento da iniciativa; já vamos no 5º encontro internacional. Seria de esperar que a convocatória fosse acompanhada de documentos preparatórios, do abandono das declarações genéricas, abstractas, vagas, em favor da montagem de oficinas de estudo sectorial, da construção de propostas e planos de intervenção. Nada disto aconteceu.
-
O evento de Lisboa adoptou o formato de cimeira de cúpulas partidárias, aberta à participação de cidadãos, movimentos sociais e ONG. Esta postura reflectiu-se em toda a organização do encontro. Nos cartazes de propaganda do evento a expressão «Plano B» só pode ser gráfica e semanticamente lida como uma bandeira do BE, com o apoio do GUE/NGL (grupo euro-parlamentar de esquerda).
-
Várias tendências coabitam a «cimeira». Uma defende em abstracto o confronto com a UE e respectivas autoridades; quando chega o momento de apontar vias de acção, opta pelo statu quo (por exemplo, defendendo a renegociação da dívida, num perpetuum mobile que retoma a capitulação do governo de Tsipras, como um hamster preso no interior da sua roda incansável). Outra tendência, defensora da desobediência como forma de mandar abaixo todo o sistema europeu instalado, manteve-se à beira do silêncio neste 5º encontro – talvez para não criar disrupções dentro das hostes?
O formato genérico do Plano B para a Europa
Não pude estar
presente nos 4 encontros anteriores, o que me impede de os comentar e
comparar.
Recordemos mais uma vez o primeiro manifesto do
Plano B, surgido por volta de Outubro de 2015. Nele encontramos
apelos alargados:
«[o nosso plano] é inclusivo e apela à maioria dos europeus»3,
que podem ser entendidos
como referências implícitas a um formato participativo, e apelos
restritos explícitos:
«propomos a convocação de uma cimeira internacional para um plano B na Europa»4.
O documento tem uma postura periclitante: um pé
no formato fórum (personalidades avulsas + movimentos sociais),
outro pé no formato cimeira (cúpulas partidárias + académicos +
negociações de bastidores). Olhando para a sua aplicação prática
na Cimeira de Lisboa, concluo que o segundo pé venceu o primeiro.
O texto fala também de
planos A, planos B … que planos são esses?, para onde caminham
eles?
«O nosso plano A é este: vamos trabalhar em cada um dos nossos países, e em conjunto por toda a Europa, para uma completa renegociação dos Tratados Europeus.»5
Para o caso de este
plano falhar, é feita alusão a um plano B, cujos vagos contornos
apontam para formas de confronto com os poderes instalados na UE.
Uma questão atravessa
todos os caminhos possíveis: nenhum plano pode resultar, seja ele
A,B,...Z, se não existir um programa de acção. Talvez eu tenha
adormecido algures a meio dos trabalhos, mas até à data não vi um
programa com cabeça, tronco e membros, passível de apontar às
populações de toda a Europa os caminhos da desobediência.
O documento fala de
fraternidade, de solidariedade entre povos da Europa, de reposição
da democracia e da soberania, dando uma importância particular,
julgo eu, às questões monetárias e financeiras.
Intui-se no documento a
vontade de manter unidas diversas fileiras: os que acreditam na
possibilidade de reformar/curar a UE; os que não acreditam na
solução reformadora; os que acreditam na possibilidade de
renegociar as dívidas soberanas a contento dos povos; os que pensam
que grande parte das dívidas é ilegítima; os que não sabem ainda
para que lado hão-de cair. Se for correcta esta a leitura, se de
facto existe uma vontade unificadora, tanto melhor. Mas nesse caso
gostaria de propor duas leis universais6:
-
Uma estrutura que patina eternamente sobre as suas próprias declarações genéricas, abstractas ou interpretativas não tem capacidade agregadora; tende a promover o estreitamento das suas hostes e prepara uma quantidade de cisões futuras.
-
Uma estrutura capaz de produzir simultaneamente um programa estratégico genérico e múltiplos programas concretos de acção é mobilizador, em princípio.
Boa parte das
comunicações que ouvi na cimeira de Lisboa foram generalistas e
interpretativas; por vezes lambuzadas de proselitismo, como aconteceu
nos plenários de abertura e fecho. Em honra das excepções,
gostaria de reproduzir (por palavras minhas, filhas de fraca memória)
uma parte da intervenção de uma das conferencistas, militante na
luta por habitação:
É um facto que os habitantes dos bairros de lata e outros bairros pobres fogem da intervenção partidária como o diabo da cruz. Isto devia fazer-nos pensar. Terão os partidos da esquerda dificuldades em estabelecer pontes com esses sectores da população, de entender os seus problemas quotidianos reais?
[Nota: esta intervenção é insuspeita, por não vir de alguém com uma patologia antipartidária, mas sim de uma militante permanente do BE. De resto, qualquer activista que tenha passado muito tempo junto dessas populações sabe que o relato da conferencista é justo e verdadeiro.]
5ª Cimeira do Plano B
Realizaram-se encontros
internacionais do Plano B em Paris, Roma, Copenhaga e Madrid. Foi
agora a vez de Lisboa. A organização esteve a cargo do Bloco de
Esquerda (BE), como é natural, tratando-se de um encontro
internacional deste tipo, realizado em Lisboa.
O documento
de apresentação da Cimeira de Lisboa ecoa o manifesto inicial
do Plano B, onde podemos ler:
«Os partidos políticos progressistas, as organizações sindicais, os movimentos feministas, ambientalistas, de defesa dos direitos humanos, sociais, bem como os activistas envolvidos no Plano B estão unidos na sua mensagem: entre salvar a UE e o Euro e salvar os nossos povos das garras da austeridade, escolheremos sempre preservar os direitos sociais e democráticos dos nossos povos» [sublinhados meus].
Este jeito de falar,
sem mandato expresso, em nome de outros colectivos é coerente com o
formato adoptado.
O formato da Cimeira de Lisboa
O formato adoptado
pelos organizadores é uma espécie de ménage
à trois: uma cimeira, um comício e uma série de
aulas-palestra, todos embrulhados no mesmo lençol. A coisa passou-se
assim:
-
Um programa de palestras (desculpem, mas não encontrei a versão on-line em português) organizado por temas:
-
Plenário – Abertura e boas-vindas
-
-
10 anos de Tratado de Lisboa; planos Makron para o futuro da Europa
-
A desobediência civil pode salvar a democracia europeia?
-
Governança do euro e dívida: que tipo de ruptura com a UE(M)?
-
UE e defesa: diversos caminhos para a paz na Europa
-
O papel dos movimentos sociais na luta pelos direitos sociais na Europa
-
Impacte da austeridade no género e nas gerações futuras
-
Plenário – Relatório das sessões e encerramento – Que caminhos? Um Plano B para a Europa.
À excepção dos
plenários inicial e final, as restantes sessões efectuaram-se em
paralelo, duas a duas.
-
É uma cimeira – encontro organizado pelas cúpulas de vários partidos de esquerda radical, cabendo a maioria do encargo organizativo ao BE, como é natural. Os conferencistas foram na sua maioria responsáveis dos partidos apoiantes, eurodeputados, ex-ministros.
-
Aparenta alguns aspectos do formato fórum – abre as portas a toda a gente, mediante inscrição prévia.
-
Cada sessão consistiu num painel de 4 ou 5 conferencistas convidados para falarem perante uma plateia. Após estas dissertações, a plateia era autorizada, no curtíssimo espaço de tempo restante, a colocar questões sucintas aos conferencistas (idealmente 2 minutos para cada pergunta). Feita uma ronda inicial de perguntas (cerca de 6), o painel respondia, na prática sem limite de tempo. Ora, após 5 longas respostas às 6 perguntas sucintas, não sobrava tempo para uma segunda ronda. Este formato tornou-se desmobilizador para muitas pessoas que compareceram à iniciativa pela primeira vez.
Em suma, o
formato escolhido pareceu-me desmobilizador, eivado de proselitismo,
bloqueador de uma dinâmica de trabalho alargada,
pragmática e criativa.
A única forma de sair dali com algumas luzes sobre
os caminhos
práticos a seguir e com
um esboço de programa de
acção coordenada, teria sido o formato de
encontro com oficinas, em
pequenos grupos de trabalho animados por activistas directamente
ligados à intervenção social.
Relações de coerência entre forma e conteúdo
Já referi os temas das sessões. Também já
referi o formato de palestra-cimeira. Falta-me referir um aspecto
formal importante: o formato comício.
Logo no plenário de boas-vindas e abertura, a
cargo de Catarina Martins, deparamo-nos com uma surpresa: um discurso
fortemente centrado nos problemas nacionais, na relação de forças
entre o BE e a geringonça, nos detalhes circunstanciais dos
incêndios e outros aspectos do momento político local. Esta
intervenção de oportunidade foi feita perante um forte aparato de
câmaras mediáticas, dando-me a sensação de que Catarina Martins
não estava a falar para nós, ali presentes (e note-se que muitos
fizeram milhares de quilómetros para comparecerem), nem para a
generalidade dos europeus, mas sim para o eleitorado português. Nós
éramos portanto o ramalhete que compunha a sala, diante das câmaras
de televisão – um ramalhete composto por cerca de 300 flores que,
na ausência de documentos preparatórios de trabalho, dispunham de
duas mãos livres para aplaudir.
Não espanta que o plenário para apresentação
das conclusões das sessões paralelas tenha sido confrangedor: de
facto, na falta de ateliers
de trabalho, nada havia para relatar.
Quanto ao
plenário de encerramento, seguiu o mesmo caminho do plenário de
abertura, com o mesmo número de câmaras de
vídeo ou TV.
Em
suma: este formato de Cimeira por um Plano B para a Europa pareceu-me
inútil, para além dos seus óbvios méritos propagandísticos e do
proselitismo embebido nas suas intervenções mais mediáticas.
Saímos dali sem planos
concretos de trabalho, sem um projecto de debate e estudo para as
questões de desobediência e confronto com os poderes da UE, sem um
rumo até à próxima cimeira. Note-se
que as acções de
desobediência e contestação às directivas e tratados da UE não
são nada fáceis de definir e pôr em prática ao nível das
populações e dos movimentos sociais, por isso seria indispensável
trocar experiências, estudar situações concretas, apontar
soluções pragmáticas. E
por fim o afunilamento da iniciativa pelo BE pareceu-me desnecessário
e contraproducente. Não
passa despercebida a ausência de várias correntes políticas e
partidárias que faria todo o
sentido estivessem presentes – já para não falar de diversos
movimentos sociais e sindicais cuja presença seria natural, dadas as
suas práticas de combate aos poderes da UE.
Tudo somado, vejo
com bastante preocupação o futuro desenvolvimento de uma
resistência séria a esta UE antidemocrática, oligárquica e
opressora dos povos da Europa e da sua soberania.
Notas:
1 No
respeitante à constituição europeia (Tratado de Roma),
realizaram-se consultas directas à população (referendos) em 4
países: Espanha, França, Holanda, Luxemburgo. Franceses e
Holandeses votaram maioritariamente contra; a maioria dos votantes
espanhóis aprovou o tratado, mas convém recordar que apenas 42 %
dos eleitores votaram. Como sabemos, as populações que votaram
contra tornaram-se afinal parte plena da UE … Em 6 países
– Dinamarca, Irlanda, Polónia, Portugal, Reino Unido e
República Checa – estava previsto o referendo, mas afinal as
autoridades públicas julgaram mais prudente não permitir que a
população se pronunciasse …
Quanto ao Tratado de Lisboa, os
arquitectos da UE já estavam escaldados: optaram por fugir à
consulta popular, com excepção da Irlanda, em 2008. O resultado
deste referendo deixou a UE em maus lençóis (participação = 53 %
do eleitorado; não ao tratado = 53 % dos votos expressos). Em
2009 os poderes públicos voltaram à carga com um segundo referendo
e conseguiram introduzir alterações
à Constituição irlandesa: a Câmara Baixa irlandesa pôde
então aprovar o tratado sem consultar mais ninguém.
2 As
grandes linhas estratégicas das transnacionais, do sector
financeiro e das corporações patronais internacionais são
delineadas com muita antecedência (geralmente bem mais de uma
década). Uma leitura atenta destes dos estudos, propostas e planos
mostra que numerosos tratados e diplomas estruturantes da UE e
limitativos da soberania do Estados-membros foram feitos em regime
de corta-e-cola (cut & paste), a partir desses
documentos. A usurpação do poder democrático pelas empresas
privadas é detalhadamente mostrada por Susan George no seu livro Os
Usurpadores, publicado por
3 «[Our
plan] is inclusive and aims at appealing to the majority of
Europeans», A
Plan B in Europe.
4 «We
therefore propose the convening of an international summit on a plan
B for Europe», ibid.
5 «This
is our plan A: We shall work in each of our countries, and all
together throughout Europe, towards a complete renegotiation of the
European Treaties», ibid.
6 É
claro que as duas leis que proponho apenas são «universais» no
conjunto das sociedades capitalistas em que o produtivismo se tornou
uma ideia profundamente embebida na cultura popular.
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