Para bom entendimento de alguns artigos que ficaram para trás e doutros que virão adiante, apresento alguns esclarecimentos sobre o conceito de economia.
A expressão «A Economia» é constantemente utilizada por políticos de todas as cores e pelos comentadores residentes da comunicação social. Servem-se dela para denotar uma entidade que eles entendem (ou querem dar a entender) como concreta, objectiva e universal – daí a utilização do artigo «a», seguido da palavra «economia» no singular (em vez de «as economias» ou «uma economia»). Destrincemos o erro, começando pela sua etimologia.
Economia refere a administração ou intendência dos bens duma casa e tem a sua origem remota na Grécia antiga: oikonomía reúne os conceitos de casa (oikos) e de distribuição (substantivo nemen = pasto; verbo nemein = distribuir).1
Não existe uma entidade genérica e universal chamada «a economia» – uma economia refere-se sempre a uma entidade social restrita e concreta (uma família, por exemplo); é uma categoria de pensamento que designa os métodos de administração de um conjunto de bens; está associada a um conjunto específico de relações sociais e de propriedade (tal como o Direito original). Podemos falar de «a economia» da nossa casa, do Belmiro de Azevedo ou dos Rothschild, mas é completamente impossível, em bom rigor, falar da economia do país. Dentro de cada país não existe uma economia – existem muitas economias, todas elas relacionadas entre si, sem dúvida, mas cada qual orientada pelos interesses específicos de cada grupo social restrito. Esse grupo tanto pode ser uma família e respectivos bens, como os accionistas duma empresa. Por isso, no conjunto de um país ou de uma região, é natural que encontremos diversas economias em conflito de interesses entre si.
Sempre que se fala de economia é preciso perguntar: economia de quem? A pergunta quem? é aliás a raiz de todo o pensamento político. Para os accionistas do Banco Espírito Santo, faz sentido falar em economia e propor políticas em nome de «a economia» – mas temos de entender que estão a falar da sua economia, não da nossa. Para os proletários, que por definição não possuem património nem capital, «a economia» é uma coisa que não pode fazer qualquer sentido ou pelo menos não diz respeito aos seus interesses específicos. Se um proletário (ou aqueles que falam em seu nome) gosta de falar de economia, isso não se deve a um interesse próprio, mas sim a um estado de encantamento semelhante ao das pessoas que gostam de ler nas revistas cor de rosa sobre a vida dos ricos e notáveis: a ideia de «economia» genérica, universal e abstracta é um instrumento de alienação, faz parte do gigantesco mecanismo da «sociedade do espectáculo»2.
No entanto, uma vez que uma das características do Estado consiste na gestão dos bens comuns, temos de encontrar uma expressão que remeta para a gestão desses bens, que existem num universo muito mais alargado que o de economia; uma expressão que denote a administração de um vasto conjunto de economias, cada qual assente em interesses específicos – o equivalente de um nemein que exorbita do oikos. Esse enorme salto na história do pensamento económico e social foi dado por Antoine de Montchrestien (c. 1575 – 1621), que criou o conceito de economia política3.
É compreensível, por razões que têm a ver com a preguiça ou com o linguarejar coloquial, que se fale abreviadamente economia quando se pretende falar de economia política. Mas para que a preguiça não dê origem a equívocos, são necessárias duas condições: 1) que os economistas entendam a distinção entre economia e economia política; 2) que o público para quem falam esteja igualmente ciente dessa distinção.
Falar de a economia como entidade objectiva e concreta é tão disparatado como falar do número 33 como entidade – 33 quê?; laranjas?, comedores de laranja?, costeletas de porco?, investidores da Bolsa? … As categorias abstractas e genéricas não têm qualquer relação directa com a realidade; são ideais; são elementos duma mundividência, meros instrumentos de pensamento; servem para representar o mundo que nos rodeia de forma abstracta e categórica, mas não podem ser confundidos com o próprio mundo, senão entorna-se o caldo do pensamento. Sem elas, não haveria razão crítica. Com elas, temos de estar alerta, para não confundirmos o mundo material com as categorias ideais que usamos para o representar.
Para exemplificar a enorme diferença que existe entre uma categoria e um objecto, vou socorrer-me de um poema de Mário Henrique Leiria. Começo por apresentá-lo de forma propositadamente deturpada: «Uma fruta / estava na cama / deitada / muito calada / a ver / o que acontecia // chegou um vertebrado / e disse / olha uma fruta / e zás comeu-a». Nesta versão do poema reina a indeterminação e a abstracção: existem dois personagens, mas eles são categorias abstractas, não correspondem a coisa alguma em particular: a fruta tanto pode ser um ananás como uma cereja, podemos chamar-lhe com propriedade uma nuvem difusa e indeterminada; o animal tanto pode ser um morcego frutícola como um porco ou … enfim, outra nuvem difusa. Resulta daqui um espartilho à imaginação (isto é, à capacidade de reconstruir criativamente o mundo a partir de uma ideia). Vejamos a versão original do poema de Mário Henrique Leiria:
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a (...) 4
Como o leitor pode verificar, a representação e reconstrução do mundo é muito mais eficaz na versão original do poema – conseguimos facilmente imaginar uma cena e construir os respectivos personagens. Não deixa de ser irónico que, para explicarmos a um «economista» o absurdo da abstracção economicista, seja preciso recorrer a um poeta …
Notas
1 As pessoas encarregadas da administração da casa chamavam-se ecónomos. A palavra economista é muito mais recente – designa aqueles que estudam uma determinada economia em abstracto. O economista é, por assim dizer, o equivalente ao crítico de cinema que fala do assunto todos os dias e a todas as horas, ainda que jamais tenha feito um único filme.
2 Ver Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo.
3 Antoine de Montchrestien, Traicté de l'économie politique, 1615.
4 Mário Henrique Leiria, Contos do Gin Tónico. Para desvendar o verdadeiro fito do poema (que nada tem a ver com esta minha dissertação) é preciso ler a sua estrofe final: «é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / caladas / a esperar / o que acontece».
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