23/11/13

Os pauliteiros e o beco

 
 
Há uma parte importante da história verdadeira, não mitificada, do PREC que está por fazer. Verdade seja dita, há imensas partes. Mas esta que aqui quero recordar considero-a particularmente importante, pois é uma das principais fontes de fragilização de todo o processo revolucionário em curso (PREC) durante 1974-1975, senão a de maior caudal. Refiro-me à enxurrada de candidatos a militantes que assaltou os partidos logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Por essa época os militantes e quadros partidários formados durante a resistência à ditadura totalizavam uma ninharia de gente, face à efervescência popular e ao número de frentes de luta, que aumentava todos os dias a olhos vistos. Perante a sua própria falta de recursos humanos, os partidos cederam à gula e puseram-se a distribuir cartões a torto e a direito – um recorde que só viria a ser vencido anos mais tarde, com a distribuição indiscriminada de cartões de crédito bancário.
 
Disse partidos, em geral e abstracto; mas de facto interessa-me sobretudo falar dos partidos de esquerda, pois apenas destes tenho algum conhecimento directo. A enxurrada de candidatos a militantes engordou uma parte dos partidos (os «grandes») – estou a lembrar-me, por exemplo, da UDP e do PCP. Os outros, aqueles que por cautela ou desconfiança apenas abriram uma nesga da porta, e ainda assim sempre perguntando pelo santo e senha, mantiveram uma dimensão diminuta. Isso lhes valeu, durante as 4 décadas seguintes, serem gozados e amesquinhados pelos «grandes». Ser pequeno tornou-se um anátema. 

O cérebro humano tem um pendão natural para a associação de ideias. A associação não carece de ser aprendida, faz parte do nosso hardware. É esse o mecanismo que está na base de quase todas as nossas operações mentais, pelo menos as empíricas. É assim que nos recordamos de onde deixámos esquecido o chapéu de chuva ou as chaves de casa. É assim que pomos a água da torneira a correr para que o bebé mije. É assim que somos facilmente enganados por sofismas de palavra – e foi com sofismas de palavra que os «pequenos» passaram a ser acusados pelos «grandes» de «infantilismo», e foi assim que o imaginário popular aceitou facilmente representá-los em ideia.
 
É claro que à época, num país de tão baixo nível de formação escolar e de tão débil formação de consciência política, uma acorrência tão súbita e avultada às portas dos partidos, descontados uns quantos entusiastas de boa-fé, apenas poderia ter uma razão de ser: oportunismo. Os partidos (isto é, «os grandes»), à direita e à esquerda, encheram-se de militantes com uma fragilidade ideológica fatal. Passado pouco tempo, a discussão política interna ou era inexistente ou tendia para a nulidade.
 
A força de choque do oportunismo iria assenhorear-se paulatinamente dos aparelhos dos «grandes», numa descida infernal em direcção a um arrivismo feroz, absoluto, generalizado, que, geração em cima de geração, se completa vitorioso nos dias de hoje. E até no PCP – partido que não conheço por dentro e portanto apenas posso analisar pelos sintomas externos visíveis –, apesar da blindagem das estruturas directivas herdada dos hábitos de clandestinidade, a coisa teve os seus efeitos imediatos – hoje gravíssimos, já que os novos meios de comunicação fornecem mais visibilidade aos arrivistas de base do que à casamata do Comité Central.
 
Mas voltemos ao PREC. Um dos primeiros sintomas da entrada rompante do arrivismo sem escrúpulos reflectiu-se em forma de bastão nos locais de trabalho, em especial nos meios operários e nos jornais – formaram-se tropas de choque de trauliteiros, semeando não poucas vezes o terror e o sangue. Como os opositores a estas tropas de choque ou não estavam organizados ou pertenciam aos tais «pequenos», os «grandes» não demoraram a tomar conta do terreno e a esmagar a oposição, ainda que não constituíssem a maioria absoluta. Quando calhava as hostes não alinhadas estarem em maioria tão esmagadora que já não podiam ser domesticadas à bastonada, eram desmobilizadas por meio do boato, da calúnia e do logro. Dois exemplos esclarecedores: o Cerco a São Bento e o 25 de Novembro de 1975.
  


No Cerco a São Bento, perante a incapacidade de controlar o curso dos acontecimentos, o PCP, ao fim de vários dias de espantosa determinação daquela multidão indiferente às patacoadas das direcções partidárias, teve de recorrer a um logro: um dos seus quadros apareceu a correr pela Av. Dom Carlos acima, esbaforido, aos berros, dizendo que brigadas de extrema direita estavam a assaltar um dos sindicatos mais activos (não recordo já qual, mas seria o dos metalúrgicos ou o da construção civil), acudam!, acudam! O efeito foi imediato: toda a gente desatou a correr em direcção ao dito sindicato e o cerco, como por milagre, desfez-se em poucos minutos. Do alto do prédio onde vigiava os acontecimentos, mesmo em frente do Parlamento, eu, à escuta das comunicações de rádio dos militares, tomo conhecimento imediato de que não havia incêndio nenhum, nem assalto coisa nenhuma, era um logro. Bem podia eu gritar lá do quarto andar e acusar a mentira, que no meio da vozearia histérica de todo aquele operariado ninguém me ouvia. E lá se foram eles; e assim se acabou o famoso cerco em coisa de 5 minutos; e com ele foi-se a esperança de um poder popular que pusesse fim aos modelos burgueses de poder. Foi uma derrota de arrepelar os cabelos. E foi uma derrota planeada e executada pelos «grandes».
 
Mais aflitiva ainda foi a manha usada no 25 de Novembro. Dessa vez, aos primeiros sinais do golpe militar, fui enviado para uma casa clandestina onde me encarregaram de destruir documentos que pudessem identificar militantes e centralizar uma parte das comunicações. Comecei a receber telefonemas de minuto a minuto, vindos de soldados que pediam auxílio de fora, pois queriam acorrer a combater o golpe mas tinham sido fechados à chave dentro dos quartéis pelos respectivos controleiros, ou estes tinham resguardado a cadeado as armas, e outras manhas que tais. Passado pouco tempo, a única coisa que eu queria era que alguém viesse substituir-me ao telefone, porque já não me era possível conter as lágrimas de raiva e impotência.
 
Talvez nestes dois exemplos não pareça muito evidente a influência do arrivismo militante e consequente ausência de debate ideológico. Mas nas fábricas, nos jornais, na escola, em toda a parte onde era preciso estruturar e organizar a luta – mas onde os quadros formados ao longo de laboriosos anos não chegavam para as encomendas – os arrivistas tomaram conta do recado; constituíram ilhéus de poder, aquartelaram-se nas hierarquias – e de repente, um belo dia, eram eles quem dominava as estruturas partidárias de base. A única estrutura partidária que consegue resistir parcialmente a uma tal avalanche é aquela que já antes estava organizada e blindada de forma mais ou menos estalinista – o que, convenhamos, como solução não é o ideal.
 
A vaga esmagadora de arrivismo e carreirismo que hoje avassala os partidos, do CDS/PP ao BE, essa vaga de que se queixam alguns militantes e a generalidade da população, é em grande parte resultado directo de uma política de arregimentação gulosa, de perna aberta, iniciada em 1974. Apenas do lado do PCP não se ouvem muitas queixas, mas isso deve-se sobretudo, julgo eu, ao hábito arreigado, desde a greve geral de 1934, de negar a situação subjectiva.
 
É hoje moda clamar contra a corrupção geral nas instituições do poder económico, político e ideológico. Não me interessa muito essa. Isso são coisas do poder instituído. Não me compete a mim curar e sarar esse poder. Amanhem-se. O que me rala, verdadeiramente, é a corrupção (intelectual e não só) e o arrivismo que entranharam as organizações de esquerda – porque nestas residiria a principal esperança de alternativa ao poder instituído, seja ele poluto ou cristalino. O arrivismo e a desonestidade intelectual são o beco sem saída da situação política em que nos achamos.

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