A memória colectiva é a alma mater
da acção eficaz.
Sem memória colectiva não existe resistência. Pode haver fúria
momentânea, actos de raiva
ou qualquer outra expressão
emocional da frustração e da dor, mas não existe revolta (no
sentido camusiano) nem resistência. A memória colectiva não se
confunde com a memória individual nem pode ser substituída por
esta; tem uma vida própria, um corpo próprio, métodos específicos
de construção e conservação. O corpo da memória colectiva são
os movimentos sociais: os sindicatos, as associações de bairro, as
comissões de trabalhadores, as bibliotecas, tertúlias e escolas
populares, etc. Mortos estes corpos, morre a memória.
Dito de outro
modo: não existe memória
colectiva sem organização. A memória desorganizada é uma falsa
memória; é um conjunto caótico de dados fortuitos, que remetem
para manifestações meramente
emocionais, quando
não para a inanição, sem
conseguirem
gerar resistência e revolta. A
evidente incapacidade das populações, em Portugal, para fazerem
frente aos
abusos
de poder de que estão a ser vítimas radica precisamente aí: na
morte clínica da organização
autónoma e de classe – logo, no estertor da memória
colectiva.
É a memória
colectiva que nos diz como proceder, como preparar as hostes para a
luta. É a memória colectiva que nos permite
distinguir se o momento é
de reunir com o patrão à mesa de negociações ou de lhe dar um
tiro na cabeça.
Entendamo-nos: a
escola oficial, a academia e os grémios intelectuais são também
formas de organizar (preservar) uma
memória colectiva.
Mas a sua natureza anda
longe dos interesses dos
oprimidos. A academia é por
definição o território da
memória organizada
dos
vencedores, dos poderosos; e ainda que em determinados momentos
(alguns dos quais ficaram famosos na História) ela possa alinhar com
os oprimidos, é bom não esquecermos que, por natureza, ela haverá
de regressar a qualquer instante ao seio e
aos interesses dos opressores
que a promovem e tutelam.
A prova acabada de que assim é está no facto de, em Portugal,
quanto mais gente prolonga a escolaridade até ao ensino superior,
mais definha a memória colectiva de luta e resistência contra a
opressão. Notem bem: não quero com isto dizer que a escolaridade
seja adversa da
memória colectiva de resistência, que
provoque
a sua perda; pretendo
simplesmente afirmar que uma não tem correlação com a outra –
formam-se e organizam-se com
fins diferentes, por métodos
diferentes, em territórios
diferentes.
A direita,
ou se preferem todo e qualquer tipo de regime opressor, tem uma noção
perfeitamente clara da importância da memória colectiva. Foi assim
que a placa, onde estava escrito que o Aqueduto das Águas Livres foi
construído por vontade do
povo, à custa do povo e com
o esforço do povo de Lisboa, foi picada para que não mais
ocupasse lugar na memória colectiva;
em seu lugar foi colocada
outra, remetendo os méritos da edificação
para os poderosos. O Aqueduto é um símbolo histórico do quanto
pode a vontade de um povo, contra tudo e contra todos, à
revelia de Filipes e Pombais, e
por isso mesmo se chama «das águas livres». O perigo que esse testemunho representa para a direita no
poder justifica a recusa
da actual Câmara de Lisboa
em
colaborar na elevação do aqueduto a património mundial – apesar
da sua traça espantosa, dos seus 48 km de extensão, das suas
cerca de 40
fontes ligadas em rede, da sua capacidade para satisfazer a sede duma
cidade inteira, dos seus 64
chafarizes e lavadouros
espalhados por toda a cidade,
da sua misteriosa engenharia
que lhe permitiu resistir sem uma única racha aos terramotos
que arrasaram Lisboa,
dos seus 109 arcos em ogiva,
um dos quais com
60 metros de
altura e 33 de largura, dos
inigualáveis efeitos de sombra, luz e cor dos seus túneis, do
carácter encantatório dos seus reservatórios, entre os quais o da
Patriarcal, no subsolo
do Jardim do Príncipe Real, que o presidente «socialista»
de Lisboa pretende arrasar para dar lugar a um parque de
estacionamento posto a render para um banco.
Face ao estado
actual da memória colectiva
e dos movimentos sociais, que
é pouco mais ou menos cadavérico,
temos de perguntar quem foi o assassino. Em condições normais, os
inquéritos
aos
crimes
são tidos
por coisa boa, pois
respondem
à nossa reclamação por
justiça. Por vezes, contudo,
acontece o assassino ser nosso amigo, familiar, namorado, e então
podemos ter a tentação de olhar para ele com abusiva complacência, e até considerá-lo «vítima» da inquirição. É
precisamente este o caso, no que respeita à morte da memória
colectiva dos oprimidos – os assassinos pertencem à família
política da esquerda e daí a tentação da
condescendência.
Há que perguntar
quem matou as bibliotecas operárias, as clínicas mutualistas, as
tertúlias e escolas populares, … Não pode, em caso algum, ter
sido a direita, porque as instituições populares
situam-se num território ao
qual o poder
instalado não
tem
acesso. Se nem o Estado Novo conseguiu destruí-las definitivamente,
fica bem claro que a sua independência e autonomia podem
ser eficazes. Essa
independência e autonomia radicam no facto de serem custeadas pela
população (e não por dinheiros do Estado) e de serem alimentadas e
geridas pela militância dos próprios interessados (e não por
comissários políticos).
Podemos sacar responsabilidades ao actual governo sobre o
encerramento de escolas,
universidades, equipas académicas de
investigação, bibliotecas municipais, porque esse é o seu
território, é matéria da sua tutela.
Mas tentar sacar-lhe responsabilidades sobre a extinção das
organizações autónomas dos trabalhadores, a falta de democracia,
militância e activismo nos sindicatos, o desaparecimento dos clubes
de bairro, isso é,
acima de estúpido, perverso, pois sugere que nenhuma autonomia é
realmente possível, que estamos condenados à escravidão eterna.
Não, a
extinção
dessas instituições (e com
ela, a da memória colectiva) apenas
pode ter um autor:
os movimentos políticos daquilo que ainda hoje insistimos em chamar esquerda.
Ao longo da
campanha eleitoral para o parlamento europeu, ouvi não poucas
pessoas dizerem expressamente «não
ataquem o PS, porque
ele não é o inimigo
principal». Espantosa
afirmação; mas
compreensível precisamente em função da morte da memória
colectiva. O
PS, desde as suas arruadas em 1974 até aos
dias de hoje, tem-se comportado regularmente como um inimigo feroz das
populações; sempre e por
diversas vezes tomou a iniciativa de negociar com o FMI a opressão
dos portugueses; é useiro e
vezeiro em mandar despejar pessoas das suas casas (como ainda agora
está a acontecer na Amadora, sob
a tutela do PS); propõe-se
«varrer» (desculpem, não sei como se diz isto em húngaro) os
sem-abrigo para fora da cidade; dá abrigo a gangsters
profissionais, uns individuais, outros organizados, geralmente
mascarados de empresários...
enfim, não é flor que se
cheire. E no entanto, mais à sua esquerda, umas quantas amantes cheias de cio (ou, como diz Vítor Lima, «Em Busca do Tacho Perdido»), querem levar-nos à complacência.
Esta politiquice de
alcova é revoltante.
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