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(gerado por IA, com vaga inspiração em «O Fado», de José Malhoa) |
Tanto quanto me lembro, havendo embora a hipótese de a minha memória ser meretraizoeira, na década de 1950 um dos ordenados dos meus pais ia para a renda da casa, outro para comida e demais urgências, e o terceiro – porque o meu pai teve dois empregos e 4 horas de sono por dia durante 20 anos – ia para os pequenos extras, como fossem os meus calções, os meus livros de estudo e os didácticos passeios familiares pelo campo e pela praia no fim de semana. Digam-me vossemecês que diferenças notam agora em relação ao grosso das gentes.
Tanto quanto me lembro, desta feita com a lítica memória da minha idade adulta, durante 50 anos trabalhei sem que os meus empregadores – nem eu, por falta de cabedais para as urgências – descontassem para a segurança social. Daí que, ao atingir a idade da reforma, a minha pensão fosse de 300 euros – menos de metade da renda da casa, por essa época. Hoje, 10 anos passados e graças à interesseira generosidade do actual primeiro-ministro (pois não é este um país de secos escrotos, onde os velhos constituem a maioria dos eleitores e as crianças já não brotam?), a minha pensão duplicou – do mesmo passo que as rendas, em Lisboa, triplicavam.
Porque pensam vossas senhorias que até alguns anos atrás havia no centro de Lisboa tantos velhotes e viúvas recebendo pensões de miséria e ainda assim pagando sua renda de casa? Já vos digo: porque as rendas eram muito baixas, pois claro. Pobres senhorios, que recebiam tão pouco!, pobres inquilinos, que recebiam tão pouco!, pobres de todos nós, que todos vivíamos sob a lei do «pobrezinho mas honrado»!
Sucede, porém, que alguma coisa fez adornar a barca de toda esta formidável honradez. Vão lá vossemecês espreitar agora as mesas do Príncipe Real, da Estrela e de outros jardins, e digam-se quantos velhotes vêem por lá a jogar a bisca. Nenhum provavelmente. Pode ser neste caso a percepção tão meretriz como a memória da minha infância, mas à primeira vista encontro duas explicações para tal evasão gerôntica: 1) os gotosos velhos abandonaram os jardins desta vida, como manda a dita; 2) ainda que mancos, gotosos e desgostosos, foram corridos (com ou sem indemnização) para outras paragens mais ou menos longínquas.
Portanto, a razão da soma total de todos estes acontecimentos é tão simples de calcular como a regra dos três: as rendas aumentaram (relativamente) e os salários e pensões diminuíram (relativamente).
De resto, tudo nesta cultura capitalista é relativo, pois não é, minhas lindas mercês? A barbaridade da guerra é relativa (depende sempre do lado em que estás, com excepção daqueles cidadãos do mundo que em lado nenhum criam lastro). A pesporrência da hierarquia militar é relativa, como vos almirantará alguém. O direito inalienável à greve é relativo, como vos zoará cerca de dois terços das cadeiras de São Bento, donde pordesventura algumas poucas do terço restante não quiseram ainda abalar-se. O lucro do capital é também ele relativo, mesmo quando superlativo, como vos explicará qualquer investidor, por mais humilde – sem ofensa para ninguém – que seja.
Tenho 72 anos e sempre cri, asseverei e jurei que nunca na vida, nunca na história, nunca nos meus mais arrepiantes pesadelos, poderiam vir tempos piores que os desse meu alterego que dá pela alcunha de jovem magala, nessa época de campanhas africanas.
Tanto a gente se pode enganar, né? Como pode a gente se enganar tanto?