O partido Chunga apresentou um projecto-lei que estabelece normas de vestuário para certos segmentos da sociedade.
Como sabemos, os partidos existem para promover os interesses de classe de determinados grupos sociais e propor um projecto de sociedade concordante com esses interesses.
No que diz respeito aos interesses de classe, a natureza do Chunga é bem conhecida e muito clara: defende os interesses de toda a espécie de meliantes – gatunos, burlões, mercenários, carteiristas, carroceiros, caceteiros, assassinos.
Já quanto ao projecto de sociedade, o Chunga emite sinais contraditórios – uns legítimos, outros de duvidosa legitimidade – que desorientam o debate político e deixam os tribunais à toa quanto à sua legalidade/legitimidade.
A nova proposta do Chunga visa completar a já aprovada lei que proíbe o uso de burcas e niqabs. Essa lei, segundo o Chunga, é muito incompleta e falha parcialmente os objectivos propostos. Entre outras normas de vestuário, o projecto-lei proíbe o uso, em lugares públicos, de:
- óculos escuros, que impedem a identificação automatizada (além de serem muito desconfortáveis para os interlocutores, pois quando falamos com uma pessoa de óculos escuros, em vez de lhe vermos os olhos, vemos a nossa própria imagem);
- véus, lenços de cabeça e outros adereços que tapem as orelhas, também estas usadas para identificar roboticamente as pessoas;
- calças justas nos quadris, por destacarem os glúteos das mulheres e o pacote dos homens, o que é atentatório da moral e dos bons costumes propugnados pelo Chunga;
- várias outras normas de indumentária derivadas do «princípio da igualdade e da laicidade do Estado», da «igualdade entre homens e mulheres», dos «princípios de liberdade, igualdade e dignidade humana» e do «respeito pela dignidade das mulheres»; neste sentido, por exemplo, os homens passarão a ser obrigados a usar saias, pelo menos duas vezes por semana, devendo para o efeito picar o ponto, por assim dizer, exibindo-se diante de uma câmara de vigilância em lugar público e levantando a saia para provar que são homens.
De início, esta aparente teima do Chunga em impor normas de vestuário deixou-me perplexo. O que teria isso a ver com os interesses chunguistas? Além disso, aparentemente, as novas normas legais seriam discriminatórias, o que é contrário à lei geral.
A minha perplexidade desfez-se casualmente, ao viajar na carreira do eléctrico 28, em Lisboa, onde pude observar a extraordinária técnica coordenada de dois carteiristas que, recorrendo a apertos e empurrões, conseguiram separar os homens das mulheres, os portadores de câmaras fotográficas, os portadores de mochilas, os portadores de bolsas de mão, etc., facilitando assim o trabalho do elemento da equipa encarregado de surripiar os haveres dos turistas. É, de facto, uma magnífica demonstração de mestria técnica que me fez compreender a necessidade imperiosa (do ponto de vista chunguista, entenda-se) de separar a população em grupos, de forma a melhor ser surripiada.
Como toda a gente sabe, um véu que cubra a cara pode ser substituído por uma máscara higiénica, com boa justificação profiláctica. Por conseguinte, é fácil deduzir que o que está em causa no projecto de lei chunguista não é a segurança pública, mas sim a divisão da população em grupos estanques, mesmo quando não existe oposição de interesses entre esses grupos, facilitando assim a defesa dos interesses das classes representadas pelo Chunga.
Desse ponto de vista, as propostas do Chunga são perfeitamente legítimas, pois correspondem à defesa dos interesses de classe dos meliantes. A proposta inicial contemplava uma excepção para os chungas, que poderiam usar máscara quando se encontrassem em serviço. Contudo, por imposição dos constitucionalistas e sob o argumento de que até os chungas têm de cumprir a lei, o partido teve eliminar essa excepção.
