O ex-primeiro-ministro José Sócrates afirmou, numa conversa informal, que as dívidas soberanas são eternas; que o seu pagamento integral será sempre impossível; e que apenas resta geri-las.
Quase todos os responsáveis e comentadores políticos entraram em histeria com estas afirmações, o que não deixa de ser significativo e até divertido.
A comoção das reacções causadas pela afirmação desta verdade elementar procura justificar-se nas responsabilidades de José Sócrates na gestão da dívida durante cerca de 6 anos de governo. Esta desculpa esfarrapada e despropositada não chega para disfarçar um facto: a tirada de Sócrates abala uma estratégia política (sobejamente usada pelo próprio Sócrates) que consiste em induzir na população um medo-pânico perante as consequências do eventual não pagamento total ou parcial da dívida externa. Se esta estratégia de medo fosse anulada, provavelmente assistiríamos à revolta de largos sectores da população que de momento aceitam submeter-se a terríveis medidas de austeridade em nome... do pagamento da dívida!
A rematar as suas declarações, Sócrates afirmou: «foi isto que eu estudei em economia». Se ele estudou ou não, não sei dizer, mas lá que tem razão, não restam dúvidas - os fundadores da economia como ciência (se é que tal coisa pode existir) bem o afirmaram há mais de um século. Daí para cá, a criação de dívida soberana como processo apropriação dos recursos colectivos por parte do capital privado tornou-se uma arte sofisticada.
Depois de, ao longo dos séculos, terem sido apropriadas todas as terras comunais, todos os meios de produção individuais e comunais, e toda a força de trabalho, onde hão-de ir os grandes interesses privados sacar novos capitais? Já nada mais resta para saquear, senão os recursos colectivos elementares (a água, o ar, o sol, etc.) e os recursos colectivos construídos (a segurança social, as pensões de reforma, os meios e vias de comunicação, saneamento, etc.).
O sistema de crédito obedece a uma regra básica e incontornável: para que o credor conceda um crédito, o devedor deve oferecer alguma garantia em troca - no caso do consumidor comum pode ser o seu salário ou a sua casa; no caso duma população inteira, a única garantia possível consiste nos recursos colectivos.
Quando uma dívida é integralmente reembolsada, as garantias oferecidas regressam ao seu dono original. Ora, se o credor pretende apropriar-se precisamente dessas garantias, então estaria trabalhando contra si próprio ao permitir a criação duma dívida passível de ser integralmente reembolsada. A única forma de o credor se apropriar da garantia que pretende adquirir (por exemplo, as pensões de reforma) consiste em fornecer um crédito em espiral, impossível de reembolsar. Se o credor não encontrar forma de gerar uma dívida impossível de pagar, então desiste do negócio - não fornecerá mais crédito, porque o interesse que o movia já não pode ser alcançado. Curiosamente, esta realidade é totalmente inversa daquilo que nos é explicado pelos responsáveis políticos e pela comunicação social, que passam a vida a ameaçar-nos de que deixaremos de ter crédito se deixarmos a dívida soberana entrar numa espiral imparável.
José Sócrates tem toda a razão no que disse. Fugiu-lhe a boca para a verdade, ao menos uma vez na vida. A única coisa que lhe faltou dizer foi que existem alternativas à gestão da dívida infinita - essas alternativas passam pelo repúdio do processo de endividamento.
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