Apoiar ou não o Syriza na etapa actual da luta dos povos europeus contra a dívida e a austeridade é uma decisão que pode traçar o destino de toda a Europa por muitas décadas. É uma decisão que, conforme o sentido, pode levar a um enfrentamento decisivo de classe ou, inversamente, a uma derrota tão duradoura como foi a da guerra civil de Espanha.
A confiança abstracta e de longo prazo que se possa ter ou não no Syriza não é para aqui chamada. Chamá-la-ão à baila aqueles que, acobardando-se perante o enfrentamento e o risco, necessitem de desculpas.
Vem aqui a propósito a história rocambolesca do meu vizinho.
O meu vizinho é desconfiado por natureza, booleano no pensamento
e mesquinho de carácter. Necessitando ele de duas coisas distintas
ao mesmo tempo – arranjar os sapatos rotos e encontrar forma de
guardar as suas economias algures – e chegando à conclusão de que
não confia no sapateiro do bairro quanto baste para lhe depositar
nas mãos as suas economias, numa cabriola elíptica concluiu que
também não deveria entregar-lhe os sapatos para conserto.
Tenho-o visto andar por aí de sapato roto. Tudo leva a crer que
muito em breve os buracos das solas lhe deixarão os pés em sangue,
reduzindo-o à imobilidade definitiva. Acabará certamente por morrer
de inanição e aborrecimento, de forma lenta e triste de se ver.
A atitude de variadíssimos sectores da esquerda europeia em
relação ao Syriza na conjuntura actual assemelha-se bastante à
triste história do sapato roto. Prevê-se, ao menos metaforicamente,
a sua morte iminente e entediada.
Sendo certo que o Syriza é de momento o porta-estandarte dos
anseios da maioria dos gregos (suspensão da dívida, revogação das
medidas de austeridade, das leis eleitorais iníquas, da
inimputabilidade dos cargos políticos; refundação duma Europa
democrática, instauração duma justiça fiscal europeia, etc.),
razão pela qual segundo as últimas sondagens colhe a maioria das
intenções de voto; sendo certo que não existe de momento nenhuma
outra força política grega que coincida em todos esses anseios;
sendo certo que a história do Syriza é única como experiência de
unidade na acção política, reunindo mais de uma dúzia de
organizações da fragmentária esquerda grega – sendo certo e
factual tudo isto, uma parte da esquerda europeia recusa o apoio ao
Syriza porque: 1) sendo uma coligação instável de variadíssimas
tendências, nada nos garante que mantenha amanhã as mesmas posições
de hoje; 2) nada nos garante que o Syriza não seja «comprável»
num futuro próximo, passando então a fazer o jogo dos actuais
poderes dominantes.
Eu, pelo contrário, embora certamente não confie no sapateiro
para depositar as economias (que aliás, honestamente e aqui
para nós que ninguém nos ouve, nem sequer existem, tratando-se
portanto de uma questão descaradamente falsa), não hesito em
entregar-lhe os sapatos. E com isso garanto a minha caminhada.
A confiança não é uma condição booleana; não se reduz à
mesquinha alternativa entre zero e um, verdade ou falsidade. Muito
pelo contrário, é um processo dialéctico. Acumula-se por graus. E
o somatório quantitativo de sucessivos graus de confiança pode (ou
não) produzir um dia um salto qualitativo. Adivinhar o futuro é
tolice sem valia, mas as leis da dialéctica garantem uma coisa: o
salto qualitativo só não acontecerá de certeza absoluta,
se não assumirmos qualquer espécie de risco; se não estivermos
dispostos a oferecer e acumular
sucessivos graus de confiança. Esta oferta de pequenos e sucessivos
graus de confiança deve ser avaliada passo a passo, caso a caso, e
não com base num suposto título de garantia futura. De títulos de
garantia estamos nós fartos e endividados até ao pescoço.
Quando um dia, finalmente, as
contas da história forem feitas, veremos quem foram os cobardes
(essa estirpe de colaboracionistas envergonhados) e os valentes
(esses tais de que reza a história); quem assumiu riscos e quem
ficou sentadinho no recato do sofá.
Entretanto, a história está
razoavelmente recheada de momentos cruciais da luta de classes,
momentos de tendência claramente revolucionária, em que a
mesquinhez política levou muitas organizações a retraírem o seu
apoio a quem lutava de armas na mão. Essa mesquinhez política não
é coisa pouca – condenou à morte física e à derrota política
milhares de revolucionários e resistentes em diversos momentos da
história. E tudo isto porquê? Porque os ditos combatentes não
apresentaram previamente título de garantia e não prometeram juros
políticos a quem os apoiasse.
Quereremos uma nova derrota à
espanhola? Uma revanche franquista? Com todos os povos europeus de
costas voltadas para a luta do povo grego?
Estamos a viver um momento histórico de enfrentamento decisivo. E se calhar é isso que uma certa esquerda ainda não percebeu.
Talvez o Syriza não seja de
inteira confiança – dou de barato; aliás: estou-me nas tintas. O
que está em curso é uma guerra de vida ou morte – dos gregos, dos
portugueses, dos espanhóis, de todas as populações europeias,
contra o capital e os ditames da finança, contra o endividamento dos
povos, a austeridade, a miséria e a barbárie. Estamos todos na
mesma trincheira. E eu considerar-me-ia o maior tolo do mundo se,
preocupado com saber se daqui a 5 horas o meu companheiro de
trincheira irá ou não desmaiar de medo, se irá acobardar-se e
desertar para o inimigo daqui a 2 dias, e ainda que qualquer das duas
coisas seja muito provável, me pusesse a cismar e, traindo esse
companheiro que neste preciso momento se bate ombro a ombro comigo,
baixasse a guarda e deixasse assaltar a trincheira. Não há-de ser
por cobardia minha que esta trincheira será vencida. Façam vocês
como entenderem.
Uma organização de esquerda que
não apoia um processo potencialmente revolucionário por não
pertencer à mesma tendência, ao mesmo congresso internacional ou ao
mesmo clube de futebol, ou por não poder obter garantias em proveito
próprio, é tão de esquerda como o meu leitor é uma minhoca
trapezista. Não passa de uma empresa de interesses privados que
procura ter por capital a garantia das acções alheias, sem com isso
gastar um tostão nem assumir qualquer risco. É um parasita
perfeitamente equiparável ao capital financeiro.
Por fim, para completar a
colecção, temos aqueles que dizem apoiar o Syriza, mas depois
atacam as propostas de pôr fim ao endividamento e suspender a
dívida, militando pela renegociação. Renegociação de quê? Que
pretendem ao certo? Um bocadinho menos de dívida? Uma austeridade
mais redondinha e menos bicuda? Uma exaustão dos recursos públicos
pintada com cores mais alegres? Estarão eles honestamente
convencidos de que podem renegociar o inferno? Ou andarão
simplesmente a gozar-nos na cara?
Feitas as contas finais, estes
«apoiantes» dúplices do Syriza e da renegociação acabarão por
ser tão perigosos como os banqueiros. As suas doces canções,
iludindo a inevitabilidade do enfrentamento contra a ditadura
financeira, servem essencialmente para embalar e adormecer as
populações europeias – e, sorrateiramente, para isolar e derrotar
as propostas que o Syriza agora subscreve. «Apoiantes» destes são
«amigos de Peniche». Passamos melhor sem eles.
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