18/09/12

O apelo dos movimentos gregos e a situação política na Europa

Rui Viana Pereira e Vítor Lima

Vários movimentos gregos lançaram há dias uma proposta para que se reponha na ordem do dia a luta militante antifascista e antinazi.

Este apelo deve ser lido à luz da situação particular vivida na Grécia, onde o partido neonazi Aurora Dourada cresceu de forma assustadora – é o terceiro partido de âmbito nacional com representação parlamentar e no momento em que escrevemos estas linhas (setembro-2012) as sondagens colocam-no já em segundo lugar (30%). O Aurora Dourada não se limita a fazer propaganda dos seus ideais – em plena luz do dia executa imigrantes, ciganos, minorias (turcos da Trácia), homossexuais e militantes de esquerda.

O posicionamento geográfico periférico e a longa ausência de guerra no território nacional torna os portugueses, incluindo boa parte da esquerda militante, relativamente alheios ao que se passa além de Badajoz e a terem subjacente um nacionalismo serôdio. Mesmo uma unidade de acção ibérica tem sido difícil de implantar. Ora esse pendor nacionalista promove a percepção errónea de que há uma saída localizada para a crise, através de memorandos nacionais gizados pelo capital financeiro global, e dificulta o entendimento do que é o fascismo, visto de forma simplista e caricatural numa visão do passado. Convém por isso fazer algumas chamadas de atenção.

Em primeiro lugar destacamos a questão da solidariedade internacional e a experiência histórica – iremos virar costas ao apelo de camaradas em luta contra tropas de choque nazis bem armadas, à semelhança do desprezo votado no passado aos resistentes espanhóis por uma parte da Europa? Devia ser claro que o crescimento de um movimento de extrema direita num país europeu tende a prenunciar uma vaga de extrema direita em toda a Europa. Neste momento já temos pelo menos dois exemplos extremos à vista: a Grécia e a Hungria.

Tarda em ser entendido que a deriva fascista comporta uma lógica genocida (provavelmente sem Auschwitz) que tende a promover uma condenação em massa de categorias sociais, como os desempregados, os pobres, os reformados; uns vocacionados para uma morte antecipada, outros para a emigração, outros ainda para formas de trabalho degradantes. A esquerda europeia ainda não incorporou que, com a financiarização, a criação de valor é supérflua e o trabalho desvalorizado, tornando-se os potenciais trabalhadores um estorvo, um simples custo social.

Estamos cientes de que o regime de democracia burguesa nunca foi verdadeiramente democrático; sempre serviu para defender os interesses do capital; sempre foi repressivo; nunca foi equitativo – donde, segundo muitos teóricos, tudo estaria a decorrer na normalidade. No entanto não é possível arrumar a questão desta maneira simplista. É preciso verificar se o comportamento «normal» do regime de poder ultrapassou uma determinada fronteira, configurando uma mudança qualitativa do regime. Trocando por miúdos:

  • As empresas e os locais de trabalho nunca foram espaços de democracia mas sim de hierarquias rígidas e de autoritarismo. Porém, a contratualização individualizada, precária, sem horários e com direitos restritos vem-se tornando regra consagrada por lei. Esta entrega ao foro privado da negociação e arbitragem entre partes desiguais, com demissão do papel do Estado e deixando os mais fracos desprotegidos, constitui uma clara regressão a formas de regime totalitárias ou medievais, com extinção de algumas das funções do estado de direito.
  • Já sabíamos que a justiça não é igual para todos, que nenhum trabalhador tem meios e recursos para se defender capazmente em tribunal. O que não era corrente vermos (à parte excepções pontuais) era a aplicação sistemática de dois pesos e duas medidas e até a profusa publicação e aplicação de leis contraditórias entre si. Não era corrente vermos todas as semanas as autoridades centrais e autárquicas actuarem à revelia da lei, sob protecção dos tribunais e das instâncias de fiscalização do regime.
  • Que o exército, os tribunais e as «forças da ordem» servem essencialmente para reprimir os trabalhadores e a contestação, já nós sabíamos. O que é novidade é a perseguição sistemática dos militantes de esquerda, dos subscritores das manifestações, dos imigrantes e militantes nos bairros de lata. Estas acções têm vindo a crescer nos últimos anos e atingiram no último ano um grau iniludível: citação em tribunal de centenas de militantes; execução sumária em bairros de lata da periferia metropolitana, feita pelas «forças da ordem», com exibição de material bélico pesado e leve, criando cenários semelhantes aos de uma zona de guerra; etc.
  • As instâncias do poder político e do poder cultural sempre procuraram manter o controle da população através da vigilância mútua e da pressão social. As minorias culturais, religiosas, étnicas, artísticas e de género são tradicionalmente contidas e reprimidas por esse sistema repressivo, tão barato e eficaz. Os regimes autoritários, porém, vão mais além: instituem a obrigação de cada cidadão ser o bufo do seu vizinho. Embora o convite à denúncia mútua nas sociedades democráticas europeias tenha sido iniciado aparentemente por boas causas (contra os abusos sexuais, a violência doméstica, etc.), está claramente a extravasar para muitos outros aspectos do quotidiano.
  • A autocensura e censura social são um dos mecanismos universais de manutenção do poder. Esta situação «normal» ultrapassa uma certa fronteira de regime quando a censura é institucionalmente instalada. No actual sistema a censura foi entregue à iniciativa privada – a substância é a mesma, apenas a forma é diferente: certos aspectos do estado de direito foram anulados em favor do exercício directo e privado do poder pelas empresas. A breve prazo assistiremos igualmente à privatização na administração da justiça, das polícias, etc. (leiam o Memorando da Troika).
  • Todos os regimes autoritários ambicionam o panóptico – o escrutínio de todos os actos, de todas as pessoas, a todo o instante. Muito antes da invenção da câmara de vídeo foram construídas prisões onde esses princípios foram aplicados. Hoje vivemos num sistema panóptico total, tecnicamente capaz de constituir bases de dados imensas sobre a vida de cada um de nós, de nos vigiar 24 horas por dia através de meios visuais e electrónicos. George Orwell deu-nos o retrato duma sociedade totalitária, policial e panóptica no seu auge. É nessa sociedade panóptica que vivemos actualmente.
  • O facto de não haver brigadas de nazis encarregues de exterminar os idosos, os incapacitados, os indigentes, os homossexuais, as minorias e o pensamento livre não significa que esse massacre não esteja a acontecer. Perguntem, por exemplo, aos doentes em tratamento de hemodiálise, de norte a sul do país e em especial nas aldeias, aos quais foram retirados os meios de acesso aos centros de tratamento. Ah, é verdade, não podem perguntar, porque essa realidade não implica tiros, bombas ou câmaras de gás, e desaparece rapidamente da vista por si mesma (prazo de vida: 3 dias). Também não podem perguntar aos milhares de imigrantes sem documentação legal o que aconteceu aos seus filhos, para onde foram levados e porquê, porque esses imigrantes ou não existem oficialmente, ou não ousam manifestar-se, mesmo quando os filhos lhes são roubados. Muitos outros exemplos de extermínio poderiam ser dados.
Em Portugal a perseguição e execução de militantes e camadas da população marginalizadas já começou. Alguns dos corpos policiais transformaram-se em brigadas de acção nazi. Aqui não há necessidade de brigadas neonazis gregas – o próprio aparelho de Estado se encarrega dos procedimentos neonazis.

Todos os povos da Europa se encontram sujeitos à mesma deriva autoritária. Podemos ainda não estar na posse de uma palavra que exprima sinteticamente esta realidade em curso – mas isso não anula a realidade.

Por tudo isto, o essencial do apelo grego à militância antifascista faz sentido, embora em termos europeus tenha de ser reformulado para se tornar mais abrangente face às circunstâncias particulares de cada país.

Os movimentos políticos que não queiram reconhecer esta realidade assumirão a mesma responsabilidade histórica que lhes coube nos casos da Alemanha e da Espanha, na primeira metade do século XX – já para não falar da Itália, de Portugal, de vários países da América Latina e do Oriente, e da Europa de Leste.

Os regimes autoritários são como a gripe: depois de a apanharmos, ficamos vacinados, acabou-se o problema; mas o problema regressa quando o vírus evolui para uma forma modificada, totalmente nova – o resultado é sempre o mesmo: gripe. Os regimes autoritários e antidemocráticos partilham este efeito surpresa – só damos por eles quando já estamos infectados, a não ser que observemos atentamente os sintomas à nossa volta e tomemos as precauções devidas.

Não devia ser difícil diagnosticar os sintomas do vírus do autoritarismo. Incluem sempre a instituição de novas formas de exploração do trabalho a níveis próximos da escravatura, do trabalho forçado ou da servidão; novas formas de desapropriação massiva; novas formas extremas de desigualdade institucionalmente implementadas; criação de cidadãos de 1ª e de 2ª categoria; silenciamento total da oposição (por meios suaves ou por meios sangrentos, mas em todo o caso eficazes); destruição, numa dada fase do processo, dos meios de produção e das forças produtivas (incluindo o extermínio, por meios directos ou indirectos, de uma parte da força de trabalho), de forma a gerar no momento seguinte uma maior taxa de lucro do capital – a solução clássica, «perfeita», costumava ser a guerra, mas isso não significa que não haja outras. Será o médico de serviço capaz de reconhecer os sintomas ou tornar-se-á co-responsável pela morte do paciente?

Poderá haver quem argumente que tocar a rebate pela luta contra o novo tipo de fascismo que se desenha no horizonte é um passo atrás – que nos faz perder de vista a questão essencial, que é a da contradição entre o capital e o trabalho, o salto para uma sociedade nova e mais justa. Foi por causa dessa ligeireza política que Allende morreu num Chile que muitos consideravam definitivamente democrático. E foi então que o Chile se tornou o primeiro laboratório do neoliberalismo.

15 setembro 2012

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