17/11/12

Sobre a violência – divagações de um homem revoltado


Existe na minha mesa de cabeceira um pequeno templo sagrado onde reside há 30 anos «O Homem Revoltado», de Albert Camus.
Essa obra – com a qual, de resto, não me sinto obrigado a concordar na totalidade para garantir o seu lugar sagrado na minha mesa de cabeceira – define com rigor os conceitos de revolta e violência.


[Nota: na obra de Camus e neste artigo «homem» não é um substantivo de género, mas sim de espécie. Perdoem-me esta nota todos aqueles para quem o óbvio possa ser repugnantemente desnecessário.]



Pensamento e acção

Desde há milhares de anos, desde o tempo de Diógenes e até ao tempo de António Damásio, uma das coisas que distingue filósofos como Camus é o facto de eles não estabelerem fronteiras entre pensamento e acção. Pensamento e acção formam uma unidade, seja ela dialéctica ou material.
Derrubada a barreira entre pensamento e acção, torna-se finalmente possível compreender o materialismo histórico, por exemplo. Em compensação, torna-se impossível escrever um ensaio sobre o imperialismo apenas para ganhar pontos académicos e depois ir jantar a uma cadeia da MacDonalds.



A revolta

Camus dá-se ao trabalho (num discurso talvez um pouco enfadonho para os dias de hoje) de nos demonstrar a diferença entre revolta e várias outras coisas que com ela andam confundidas – a ira, o despeito, a raiva, a fúria, etc.
Passadas muitas páginas de fundamentação, o autor exemplifica a revolta com maior simplicidade ao dizer que revoltado não é o escravo que se vira contra o seu dono pela forma como é tratado, mas sim pela forma como vê serem tratados os seus companheiros.
Quer isto dizer que uma pessoa que atira uma pedra ao patrão pode até ser um defensor extreme do sistema, estando apenas enfurecido por injúrias pessoais e não sendo necessariamente um revoltado.
Resulta daqui, em termos práticos, que não sei que hei-de pensar de quem nas recentes manifestações atirou pedras à polícia, com o claro intuito ou de desopilar o fígado, ou de provocar uma reacção. [Estou a dar de barato que pelo menos alguns deles não fossem provocadores infiltrados pela polícia.] Não falei com eles (nem eles parecem interessados em falar comigo), por isso não sei o que lhes passa pela cabeça. Objectivamente, porém, sei que os velhos, crianças, pessoas frágeis, doentes, inválidos, etc., presentes na manifestação sofrerão os efeitos resultantes dessa atitude. Toda a discussão especulativa pára, deixa de fazer sentido dentro dos limites da sanidade mental, à porta dos efeitos objectivos da acção. Materialmente, a cada acção objectiva corresponde forçosamente um pensamento... Neste caso particular, resulta que não voltarei a convidar a minha velha mãe para me acompanhar em manifestações enquanto o campo dos oprimidos não debater e esclarecer sem qualquer réstea de dúvidas (no pensamento e na acção) a forma como a violência deve ser exercida nas manifestações, a forma como devem ser os próprios manifestantes a tomar a iniciativa para controlar a sua natureza e o seu exercício. Se esta futura ausência da minha mãe (e de muitas outras mães, segundo tenho ouvido dizer) corresponde a uma perda maior ou menor, é coisa que não sei avaliar. Mas que é uma perda, lá isso é.



A violência

Uma das coisas que mais profunda impressão me deixou para o resto da vida foram os textos angustiados patentes nos diários dos primeiros «terroristas». Primeiro, ficamos a saber que a génese desses militantes solitários, nessa época remota de finais do século XIX, não eram a tasca com barris de tinto nem as claques de futebol, mas sim as tertúlias de pensadores e filósofos da Rússia, onde o pensamento niilista germânico desgraçadamente fez algum furor. Depois descobrimos que, antes de passarem à acção (quando passavam, porque muitas vezes reconsideravam), esses homens revoltados sofriam uma luta interior horrenda, que geralmente durava muitas semanas ou meses. Muitos deles acabaram por ser apanhados, presos ou mortos devido a essa longa hesitação (pouco propícia às normas de segurança e clandestinidade) que, no recolhimento solitário do seu quarto clandestino, os fazia interrogar e rever um milhão de vezes o pensamento que os levaria à acção – fosse ela atirar uma pedra, uma bomba ou uma bala – e respectivas consequências materiais.
Daí para cá, o mundo deu muitas voltas – e uma delas foi o facto de os filósofos terem sido escorraçados do pensamento e da acção política na segunda metade do século XX.
Por isso, ao ver as pedras atiradas em manifestações – e refiro-me apenas àquelas manifestações em que centenas ou milhares de pessoas de todos os feitios, tamanhos e idades estão presentes, não a iniciativas realizadas por grupos de acção restritos –, a primeira pergunta que se me coloca é esta: existe alguma espécie de pensamento por detrás dessa acção? Ou será apenas um impulso individualista, quase animal, desprovido de qualquer pensamento consciente e elaborado? Gostaria de acreditar que esse pensamento existe. Mas então, se existe, alguém faça o favor de o partilhar comigo.
As actuais políticas do Governo já causaram mais mortos e desgraças do que alguma vez poderão causar uma dúzia de lançadores de pedras. Que a violência do poder instituído existe, que ela não pode ser ignorada, que causa mortos, feridos, infelicidade e sofrimento, ninguém pode duvidar. Creio, de resto, que já quase ninguém duvida.
O que me interessa saber é se essa violência exercida pelos poderes públicos tem como efeito um acréscimo da revolta verdadeira (tal como Camus a definiu) ou um atrofiamento da consciência política e de classe – e portanto uma diminuição dos actos de revolta efectiva.
O campo dos oprimidos tem de, uma vez por todas, deixar de fugir cobardemente a esta discussão e encontrar uma resposta para as suas acções colectivas de resposta à violência dos opressores. Não uma resposta decalcada das velhas fórmulas de pensamento provenientes do século XIX, que é de prever sejam inaptas às condições materiais e culturais da actualidade, mas sim uma resposta eficaz e adequada às condições de opressão actuais.

1 comentário:

  1. Só uma desobediência civil poderá alterar algo.
    Se alterar.
    Atacar os que roubam impunemente naquilo que lhes doi e interessa....O LUCRO
    Ao atacarmos os bancos com medidas indolores infligiremos mais dano que morrendo pela mudança do sistema,porque ao fazer tremer a Banca estaremos a reformular o País.
    Pense por exemplo no msm dia e em todo o País centenas de pessoas em cada agência de cada Banco,levantar na ATM de outro Banco 5 ou 10 euros e ir depositar ao balcão do seu Banco....isto ininterruptamente o dia todo,dias a fio.
    Acabar com os débitos diretos na conta e obrigar os que nos exploram a ter de mandar cartas com o pagamento para casa e depois ir nos serviços respectivos pagar.
    Não utilizar bombas de gasolina sem empregado físico para nos abastecer a viatura,ainda há algumas que os têm.
    Entupir os tribunais com queixas contra o Estado.
    Mais ideias haverá que provoquem prejuizo.
    Nas grandes superficies encher carrinhos de compras e ao chegar à caixa...oooops esqueci-me da carteira,desculpe e deixar td para arrumar,ene pessoas,ene vezes,dias a fio.

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