30/01/13

Tirem-me desta Europa decadente!

Venho por este meio solicitar o vosso contributo benemérito numa subscrição destinada a recolher a maquia suficiente para a comprar um bilhete de ida sem volta e arranjar um meio de subsistência numa parte qualquer do mundo que seja tudo menos ocidental – sei lá, Chiapas, Goa, Samoa, seja o que for fora daqui. Por «ocidental» refere-se aqui, por facilidade de expressão, essa zona de apropriação geográfica e cultural que o centrismo europeu e norte-americano costuma referir como sua.


Alguns dos grupos de pensamento e acção de que faço parte abriram uma guerra declarada contra o fachinho da CGTP, por conta duma graçola simplória que ele disse numa missa de sábado perante milhares de crentes. Abriram, portanto, uma caixa de pandora que o Bilioso Incondescendente está disposto a usar à exaustão, de hoje em diante.

Já de alguns anos para cá qualquer político que tenha a infeliz ideia de dizer uma graçola é crucificado no dia seguinte. Todos os clientes do Fuckbook irão dedicar incontáveis horas (por desemprego?) à lapidação, os comentadores de TV receberão mais 25.000 euros por sessão para comentarem o assunto, os blogueiros entupirão o tráfego da rede digital com retóricas putativas travestidas de sagacidade, as instituições abrirão inquéritos, enfim...

O único, talvez, personagem, que consegue dizer piadas todos os dias sem ser crucificado, lapidado e fervido em óleo de palma é o semiescurinho António da CM Lisboa, não apenas por ter a habilidosa capacidade de as pronunciar dentro dos trâmites aparentes da correcção política, mas sobretudo porque são, justiça lhe seja feita, de tão fino recorte, que 99,99% dos portugueses nem chegam a perceber que ele disse uma piadola, tal é o nível de embrutecimento reinante.

Um porco alto dá um simbólico pontapé dissuasor num porco baixo e logo milhares de fuckbookianos protestam veementemente em favor dos direitos dos porcos, ainda que não tenham sequer aberto o bico quando os utentes da Via do Infante levam um pontapé do mesmo tipo de porcos altos. Logo se apressa a pressurosa chefia da vara dos porcos bípedes a vir a público pedindo desculpas pela atitude pontapeante do seu subordinado (atitude em relação aos porcos baixos, entenda-se, não em relação aos utentes da Via do Infante e doutras vias deste país que foram menos simbolicamente pontapeados), e fica no ar o cheirinho a processo disciplinar, ou será o cheiro a merda de porco? É difícil distinguir.

Um cão mata uma criança (segundo as notícias; declaro solenemente que eu não estava lá para confirmar o facto; mas, para que não restem mal-entendidos entre nós, se o facto foi facto e o filho fosse meu, o cão teria deixado de constituir qualquer espécie de problema 0,5 segundos depois de cometido o dito facto) e logo se juntam 11.000 assinaturas para salvar o cão da medida de prevenção punitiva prevista, e nas mesmas assinaturas vamos encontrar o cara-de-pau do BE, aquele que parece que engoliu um pau de vassoura, que no entanto não me consta que tenha tomado a iniciativa de recolher 1.111.000 de assinaturas, por exemplo, para salvar os doentes de hemodiálise e outras doenças terminais que foram silenciosamente chacinados no interior deste belo país de cínicos corruptos a fingirem que lutam contra a corrupção – sendo certo que no minuto seguinte os encontraremos a telefonar para meter uma cunha, para eles, para o filho ou para o raio que os parta; ou a aceitar (sem jamais pensar na demissão) condições e regulamentos de trabalho que constituem paradigmas de degradação, como por exemplo trabalhar numa universidade cuja porta de entrada e cartão de acesso são controlados por uma institutição bancária; ou a desclassificar todo e qualquer um que não tenha pelo menos um diploma emitido (por meios legais ou ilegais, é-me absolutamente indiferente) pela clique instalada no poder ideológico e cultural.

Uma realizadora apresenta um filme sobre duas mulheres (leia-se, portanto: lésbicas) que vivem juntas e são discriminadas, perseguidas e ostracizadas por esse país fora, de norte a sul, por mais que mudem de casa e procurem um paraíso na Terra, e os clubes de pedantes possidónios armados em defensores das minorias sentem-se ofendidos com o filme, pelo simples facto de as duas mulheres, em vez de se exprimirem de forma grandiloquentemente pedante e possidónia como eles, serem mulheres do povo que se exprimem como os camionistas e os carroceiros: de forma singela, sincera e brutal – em suma, exprimem-se como a maioria dos ditos pedantes quando estes se julgam no recato da sua intimidade, esses mesmos cruzados cuja boçalidade verborreica estou eu farto de ouvir há décadas na intimidade dos seus lares, essas mesmas cruzadas do pseudofeminismo cujas tiradas de sexismo gongórico estou eu farto de ouvir à socapa nas conversas de casa de banho dos bares. (A propósito, tenho a certeza de que há por aí mais sonoplastas que, como eu, gostam de usar gravadores de bolso.)

Os sacristas da revolução de marca, os das votação por consenso e os doutras doutrinas cotadas na bolsa intelectual são outros tantos pseudocruzados da luta pelas minorias que, quando lhes explico o que faço com o som, a música e a sonoplastia (que eles, coitados, confundem com operação técnica, exclamando na sua inocência abimbalhada: «ah, estou a ver, és técnico de som»), têm um arrepio sincero e visível a olho nu perante aquilo que consideram «ruído», ou cinema «sonífero», ou qualquer outro petisco verbal igualmente adequado a pontapear para a valeta da sociedade essa coisa incomodativa das minorias culturais, artísticas ou vanguardistas. Trata-se de um método muito eficaz para manter no poder as correntes dominantes de pensamento e comércio, ou seja, da maioria, com esmagamento natural, imediato e impiedoso de tudo o que seja minoritário, alienígena ou exógeno à excelente pessoa de quem produziu o petisco, e que, se houvesse um mínimo de justiça à face da terra, lhes devia render dividendos anuais nos lucros das grandes sociedades produtoras e distribuidoras da cultura dominante. No momento seguinte, para fazermos as pazes, irão convidar-me para irmos a um bar onde se pode ouvir música brasileira (ou americana, já agora) daquela que a gente, se perceber alguma coisa de música, só precisa de ouvir o primeiro acorde para adivinhar o resto (o que nos levará a correr urgentemente para a casa de banho, a fim de não vomitar no colo dos nossos «amigos»), ou outros lugares comuns da cultura dominante que também costumam ficar bem nos corredores dos centros comerciais para aguçar o apetite às compras ou nos elevadores para aguçar o apetite à peida ou à pita.

Não é possível viver no meio de tanto cinismo militante sem ter um ataque de esquizofrenia. Tirem-me daqui, urgentemente!

1 comentário:

  1. um mundo em que as pessoas não sejam chamadas de escurinhas ou semiescurinhas é um mundo melhor, no qual, julgo, também gostaria de viver a apreciar pelo conjunto de queixas que apresenta. Vá lá, esforce-se um pouco, faça a sua parte. Não se referem a si como semibranquinho ou branquinho... para quê a cor da pele para adjectivar alguém de quem estamos ou queremos dizer mal? Faz sentido? Como pejorativo, só pode assim pode fazer sentido. O tom da pele de alguém constitui um pejorativo? sim, mas num mundo do qual não quero fazer parte. Ainda por cima esse mundo existe e está à nossa volta (o racismo)




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