(Nota: este artigo é um esboço de ideias a
desenvolver.)
Vai para 2400 anos que o pensamento, em especial o
erudito, é espartilhado pela lógica aristotélica. Um desastre. Nada que o
próprio Aristóteles não tenha previsto, como demonstra no Paradoxo
da Batalha Naval, onde coloca de forma muito precoce a questão do
livre arbítrio, ou, para usar uma terminologia mais actual e ligada
às lutas sociais, a capacidade de alterar materialmente a realidade.
Entretanto, sucessivas gerações aceitaram as limitações impostas
por aquilo que passaria a ser designado lógica aristotélica e que,
desgraçadamente, não nos permite ver a realidade inteira – apenas
alguns casos particulares dessa realidade – e portanto nos tolhe,
quando chega o momento de transformar essa mesma realidade.
Logo à partida, a lógica clássica coloca-nos
numa situação problemática, pois na sua essência limita-se a
fazer uma coisa: lida com valores e remete para valores – e quando
dizemos valor, temos de entendê-lo na sua acepção mais prosaica,
para não nos enganarmos a nós mesmos.
Como se construir raciocínios com base em valores
não fosse já de si um grande problema, acontece que a lógica
clássica apenas nos fornece dois valores: verdadeiro e falso; ou, na
versão moderna, bem conhecida de toda a gente graças aos
computadores, 0 e 1.
Ora o universo não funciona assim, a não ser em
certos casos excepcionais, ou casos limite – a lógica aristotélica
não é errada; ela é apenas um caso particular dentro de um sistema
mais geral, e pode ser aplicada com acerto em situações muito
simples e muito limitadas. Entre 0 e 1 pode existir
um número infinito de valores. Logo que a tecnologia aplicada nos
computadores começou a querer aproximá-los das capacidades do
cérebro humano, a necessidade de adoptar uma lógica multivalente
veio ao de cima. Assim, o simples facto de trabalharmos com ecrãs
cromáticos depende da utilização de uma lógica difusa, ou de
conjuntos fracos, ou indeterminada, ou multivalente. A cor amarela
que vejo no meu ecrã contém 3 vectores primários (no sistema RGB:
vermelho, verde, azul). E no entanto a cor amarela não coincide com
nenhum desses vectores – é um conjunto difuso que pode ser
definido como [1 1 0]; ou, melhor ainda, que
pode assumir valores situados algures nos intervalos indeterminados
[0,86..1 0,86..1 0..0,35].
Ao longo de cerca de 2400 anos, os pensadores mais
argutos não puderam deixar de se dar conta das limitações impostas
pela lógica aristotélica e procuraram libertar-se do seu
espartilho. Uma das tentativas mais notáveis – tanto pelo
brilhantismo teórico como pelas consequências práticas – foi a
invenção do materialismo dialéctico, conforme o propuseram Engels
e Marx. Essa foi a solução possível no século XIX; mas, sabemo-lo
agora, não era ainda a solução ideal.
Se os nossos computadores não trabalham já hoje
com base numa memória multivalente (onde cada ponto de memória tem
vários vectores e valores possíveis, não sendo uma coisa estática,
unívoca e portanto antinatura) e numa lógica multivalente e difusa,
isso deve-se apenas aos interesses da indústria – a ciência e a
tecnologia já encontraram os meios adequados para que as nossas
máquinas possam lidar eficazmente com a realidade. Quanto ao
cérebro, funciona, com a maior das naturalidades e sem esforço,
segundo os princípios expostos pelas mais recentes teorias da
lógica, desenvolvidas pela matemática e pela filosofia no século
XX. Se alguma dificuldade se lhe apresenta na utilização de lógicas
avançadas, resulta ela de doses maciças de aculturação
aristotélica.
É preciso sacudir da prática revolucionária uma máquina de raciocínio bacoca
A prevalência do pensamento aristotélico (ou, na
melhor hipótese, materialista dialéctico) continua a fazer-se
sentir em incontáveis áreas do pensamento e da actividade humanas.
Infelizmente, uma dessas áreas é a análise política e social. O
estigma aristotélico impregnou de tal forma o pensamento de toda a
gente, que nem alguns dos teóricos do materialismo dialéctico (como
por exemplo Lenine) conseguiram livrar-se dele.
Uma das hipóteses de estudo que aqui gostaria de
colocar é a de que o conceito de vanguarda, pelo menos no seu
sentido estrito, resulta do vício do pensamento aristotélico. Esta
será apenas porventura uma hipótese de trabalho a estudar e a
testar. Mas não creio que uma lógica de pensamento difuso, de
conjuntos e de incerteza pudesse alguma vez chegar à conclusão de
que uma sociedade se desdobra em dois valores simples: vanguarda e
retaguarda; que porventura exista uma vanguarda delimitada, num certo
lugar, num certo tempo, à espera de cumprir o seu papel histórico.
Não creio que uma pessoa, lá por debitar um acervo de palpites e
acções vanguardistas e ao mesmo tempo rejubilar
com a extinção do único cinema que em Lisboa se dedicava por
inteiro à produção cinematográfica europeia (apelidando-o de
elitista – quererá isto dizer que considera a Europa uma elite?! –
e confundindo elitismo com «cinema de autor»), deva ser inserido ou
retirado dum conceito estrito, por imperativos aristotélicos, de
vanguarda. Creio antes que deva ser analisado à luz de 3 vectores
primários (no sistema RGB: revolucionário, grunho, burguês), dos
quais possuirá, suponhamos, os valores [0,31 0,78 0,88],
enquanto todos os seus camaradas vanguardistas se encontram,
suponhamos, algures no intervalo indeterminado
[0,3..0,9 0..1 0,2..0,9].
À semelhança do conceito político de vanguarda,
muitos outros terão provavelmente de ser repensados – pelo menos
no que respeita à lógica aplicada na sua definição. Aliás, um dos mais
importantes postulados do materialismo dialéctico (formulado pelos
próprios criadores dessa corrente de pensamento) é o de que ele
pode e deve adaptar-se e evoluir de forma a abarcar todos os dados
objectivos da realidade que a ciência e o conhecimento empírico vão
desvendando. Assim sendo, insistir em formas passadistas de construir
o raciocínio mais não será do que defender com unhas e dentes uma
ordem do passado, contrária ao impulso de mudança.
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