06/12/13

O espartilho aristotélico

(Nota: este artigo é um esboço de ideias a desenvolver.)
Vai para 2400 anos que o pensamento, em especial o erudito, é espartilhado pela lógica aristotélica. Um desastre. Nada que o próprio Aristóteles não tenha previsto, como demonstra no Paradoxo da Batalha Naval, onde coloca de forma muito precoce a questão do livre arbítrio, ou, para usar uma terminologia mais actual e ligada às lutas sociais, a capacidade de alterar materialmente a realidade. Entretanto, sucessivas gerações aceitaram as limitações impostas por aquilo que passaria a ser designado lógica aristotélica e que, desgraçadamente, não nos permite ver a realidade inteira – apenas alguns casos particulares dessa realidade – e portanto nos tolhe, quando chega o momento de transformar essa mesma realidade.

Logo à partida, a lógica clássica coloca-nos numa situação problemática, pois na sua essência limita-se a fazer uma coisa: lida com valores e remete para valores – e quando dizemos valor, temos de entendê-lo na sua acepção mais prosaica, para não nos enganarmos a nós mesmos. 

Como se construir raciocínios com base em valores não fosse já de si um grande problema, acontece que a lógica clássica apenas nos fornece dois valores: verdadeiro e falso; ou, na versão moderna, bem conhecida de toda a gente graças aos computadores, 0 e 1.

Ora o universo não funciona assim, a não ser em certos casos excepcionais, ou casos limite – a lógica aristotélica não é errada; ela é apenas um caso particular dentro de um sistema mais geral, e pode ser aplicada com acerto em situações muito simples e muito limitadas. Entre 0 e 1 pode existir um número infinito de valores. Logo que a tecnologia aplicada nos computadores começou a querer aproximá-los das capacidades do cérebro humano, a necessidade de adoptar uma lógica multivalente veio ao de cima. Assim, o simples facto de trabalharmos com ecrãs cromáticos depende da utilização de uma lógica difusa, ou de conjuntos fracos, ou indeterminada, ou multivalente. A cor amarela que vejo no meu ecrã contém 3 vectores primários (no sistema RGB: vermelho, verde, azul). E no entanto a cor amarela não coincide com nenhum desses vectores – é um conjunto difuso que pode ser definido como [1  1  0]; ou, melhor ainda, que pode assumir valores situados algures nos intervalos indeterminados [0,86..1  0,86..1  0..0,35]. 

Ao longo de cerca de 2400 anos, os pensadores mais argutos não puderam deixar de se dar conta das limitações impostas pela lógica aristotélica e procuraram libertar-se do seu espartilho. Uma das tentativas mais notáveis – tanto pelo brilhantismo teórico como pelas consequências práticas – foi a invenção do materialismo dialéctico, conforme o propuseram Engels e Marx. Essa foi a solução possível no século XIX; mas, sabemo-lo agora, não era ainda a solução ideal. 

Se os nossos computadores não trabalham já hoje com base numa memória multivalente (onde cada ponto de memória tem vários vectores e valores possíveis, não sendo uma coisa estática, unívoca e portanto antinatura) e numa lógica multivalente e difusa, isso deve-se apenas aos interesses da indústria – a ciência e a tecnologia já encontraram os meios adequados para que as nossas máquinas possam lidar eficazmente com a realidade. Quanto ao cérebro, funciona, com a maior das naturalidades e sem esforço, segundo os princípios expostos pelas mais recentes teorias da lógica, desenvolvidas pela matemática e pela filosofia no século XX. Se alguma dificuldade se lhe apresenta na utilização de lógicas avançadas, resulta ela de doses maciças de aculturação aristotélica.

É preciso sacudir da prática revolucionária uma máquina de raciocínio bacoca

A prevalência do pensamento aristotélico (ou, na melhor hipótese, materialista dialéctico) continua a fazer-se sentir em incontáveis áreas do pensamento e da actividade humanas. Infelizmente, uma dessas áreas é a análise política e social. O estigma aristotélico impregnou de tal forma o pensamento de toda a gente, que nem alguns dos teóricos do materialismo dialéctico (como por exemplo Lenine) conseguiram livrar-se dele.

Uma das hipóteses de estudo que aqui gostaria de colocar é a de que o conceito de vanguarda, pelo menos no seu sentido estrito, resulta do vício do pensamento aristotélico. Esta será apenas porventura uma hipótese de trabalho a estudar e a testar. Mas não creio que uma lógica de pensamento difuso, de conjuntos e de incerteza pudesse alguma vez chegar à conclusão de que uma sociedade se desdobra em dois valores simples: vanguarda e retaguarda; que porventura exista uma vanguarda delimitada, num certo lugar, num certo tempo, à espera de cumprir o seu papel histórico. Não creio que uma pessoa, lá por debitar um acervo de palpites e acções vanguardistas e ao mesmo tempo rejubilar com a extinção do único cinema que em Lisboa se dedicava por inteiro à produção cinematográfica europeia (apelidando-o de elitista – quererá isto dizer que considera a Europa uma elite?! – e confundindo elitismo com «cinema de autor»), deva ser inserido ou retirado dum conceito estrito, por imperativos aristotélicos, de vanguarda. Creio antes que deva ser analisado à luz de 3 vectores primários (no sistema RGB: revolucionário, grunho, burguês), dos quais possuirá, suponhamos, os valores [0,31  0,78  0,88], enquanto todos os seus camaradas vanguardistas se encontram, suponhamos, algures no intervalo indeterminado [0,3..0,9  0..1  0,2..0,9].

À semelhança do conceito político de vanguarda, muitos outros terão provavelmente de ser repensados – pelo menos no que respeita à lógica aplicada na sua definição. Aliás, um dos mais importantes postulados do materialismo dialéctico (formulado pelos próprios criadores dessa corrente de pensamento) é o de que ele pode e deve adaptar-se e evoluir de forma a abarcar todos os dados objectivos da realidade que a ciência e o conhecimento empírico vão desvendando. Assim sendo, insistir em formas passadistas de construir o raciocínio mais não será do que defender com unhas e dentes uma ordem do passado, contrária ao impulso de mudança.

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