Existem em Portugal cerca de 3,6 milhões de
pensionistas. É um exército.
A dimensão deste exército é suficiente para
provocar a queda de um governo, uma mudança de hábitos na
participação cívica, ou mesmo uma revolução.
Quando se formou o movimento de reformados APRE, o
meu coração encheu-se de esperança. É claro que eu não estava à
espera que o exército dos reformados fizesse uma revolução, nem
coisa que se pareça.
E no entanto, sim, esperava que dali viesse uma
revolução – não institucional ou regimental, mas antes nos
hábitos de participação e acção cívica. Esperava que a
experiência encanecida nos desse a todos uma respeitável lição
de organização e acção cívica directa; que o colectivo de
cidadãos reunidos na APRE fosse capaz de pôr em marcha uma
autêntica locomotiva, que atafulhasse as repartições,
direcções-gerais e ministérios de reclamações, protestos, filas
de espera, manifestações, que moesse o juízo aos governantes de
todas as formas possíveis e imagináveis (um trabalhador reformado
tem muito tempo para pensar e imaginar artimanhas), e que essa
locomotiva, mais tarde ou mais cedo, graças ao seu bom exemplo e aos
seus bons resultados, arrastasse consigo a demais população para a
terra da democracia participada, e não apenas delegada.
As tarefas centrais da APRE eram simples:
- mostrar os dados e os factos tal qual eles são; desautorizar as mentiras dos governantes e a charlatanice dos falsos «técnicos» que pretendem encenar a insustentabilidade da segurança social;
- criar uma campanha mediática permanente, teimosa, enervante; não dar tréguas à opinião pública nem às campanhas de contra-informação do Governo;
- realizar acções colectivas visando travar o desmantelamento da Segurança Social e afirmar a vontade de garantir a solidariedade com os mais desprotegidos.
O que a APRE não precisava nem devia fazer, era meter-se em cavalgadas de política institucional, andar na marmelada com os partidos no poder, transmitir recados dos poderes públicos. Quanto menos o fizesse, mais razão teria e mais unidade produziria entre vastas camadas da população, algumas delas sujeitas a um autêntico genocídio.
É por isso uma enorme desilusão ver o descaminho
impresso à APRE pela sua figura de proa, Maria do Rosário Gama, que
mais uma vez (é já a terceira, se não estou em erro) vem a público
zurrar coisas que uma representante da APRE devia recatar-se de
dizer, para não comprometer os objectivos e interesses da associação
cívica que representa. Vemo-la ao longo desta semana a fazer uma
sistemática campanha mediática pelo voto nos candidatos ao
parlamento europeu – segundo as suas palavras, o que é
preciso é votar; vota!, nem que seja naqueles mesmos que estão
agora mesmo a cortar tua pensão –, chegando ao ponto de
afirmar que «é criminosa a campanha em curso nas redes sociais
apelando à abstenção ou ao voto em branco ou nulo» [cito de
memória e desconhecendo as campanhas em questão]. Se alguma coisa de
criminoso houvesse a apontar, seria a campanha de Rosário Gama pelo
voto nos partidos instalados no poder (com indisfarçável recado de
voto no PS, diga-se de passagem), esvaziando a acção cívica
directa da APRE e dividindo o campo dos pensionistas em dois. Não é
preciso ser bruxo para adivinhar o futuro da APRE a partir de agora:
uma aglomeração simbólica de cidadãos, pronta a ser usada como
força de pressão ao serviço de interesses partidários duvidosos;
uma tropa arregimentada para as urnas e completamente arredada da
acção cívica directa.
Aí está como se bloqueia primeiro e mata depois
um magnífico sonho.
Os factos
Existem cerca de 3,6 milhões de pensionistas
(números de 2012). Destes, quase 3 milhões recebem pensões de
velhice, invalidez, sobrevivência ou reforma antecipada (ou seja, uma miséria na maior parte dos casos); os
restantes 0,6 milhões recebem pensões da CGA (Caixa Geral de
Aposentações).
A título de exemplo, olhemos para a CGA, donde
saíam em 2013 as pensões de cerca de 471 mil reformados e
aposentados. Destes, 50% recebiam pensões inferiores a 1000 €.
Fazendo as contas por alto e por excesso, estes pensionistas, contra
os quais tanto berra Medina Carreira, recebem o equivalente a 0,36%
do PIB. Isto significa que para sustentar essas pensões eu tenho de
desembolsar, na pior das hipóteses, 2 € por semana – isto
na hipótese de toda a gente estar a trabalhar em Portugal; mas como o desemprego está muito alto e
nem todos os empregados arranjam trabalho a tempo completo, a factura
sobe para 3 € por semana (na pior das hipóteses). Olhem para a minha cara de preocupado (peço
desculpa se não for capaz de fazer umas caretas à Medina Carreira).
Entretanto, estes números escondem um facto
dramático: 21% dos pensionistas da CGA recebem menos de 500 €
por mês, ou seja, encontram-se na sua maioria abaixo do limiar de
pobreza.
A charlatanice demográfica
Continua na moda os poderes públicos e os
Medina Carreira deste mundo promoverem a burla de que cada
vez haveria menos população activa, cada vez mais velhos, e
portanto tornar-se-ia impossível sustentar a segurança social. Esta
propaganda é reforçada com «projecções» muito imaginativas, que
nos apresentam um cenário recheado de matusaléns com mais de 100 anos, cheios de saúde, a correrem na praia em fato de treino,
a viverem à conta de meia dúzia
de trabalhadores e incapazes de fazerem mais bebés. Perante este cenário de ficção científica, o que aflige os «especialistas» e os projeccionistas do filme não é a extinção da raça humana mas sim a «necessidade» urgente de acabar com o estado social e enfiar toda a gente num pacote das seguradoras, que depois é vendido na Bolsa em Hong Kong e por fim faz uma linda bolha furta-cores e explode, derramando salpicos para cima de toda a gente. Os matusaléns constipam-se então com os salpicos da bolha, apanham uma pneumonia e morrem finalmente. Problema resolvido.
Olhemos para a realidade, embora eu já esteja a
ficar farto de repetir estes números ao longo dos meses.
População residente e em idade activa:
1983: 62% do total da
população residente
2012: 65% do total da
população residente.
Façamos o jeito a «técnicos» e olhemos antes
para o número oficial de activos:
1983: 47% da população
residente – ou seja, menos de metade da população
2012: 52% da população
residente – ou seja, mais de metade da população.
Moral da história: ao contrário do que nos é
dito pelos «especialistas», a situação não piorou; muito pelo
contrário, melhorou. Por outras palavras, apesar do facto
indesmentível de a população ter envelhecido, há hoje mais
gente disponível para trabalhar e contribuir para a Segurança
Social, a Caixa Geral de Aposentações, etc.
É claro que se o desemprego aumentar e os
salários baixarem, se houver uma dívida pública gigantesca
contraída para recapitalizar os bancos (os mesmos bancos que andam
entretidos a fazer despedimentos colectivos), se os bens e
equipamentos da saúde e ensino públicos forem pilhados em benefício
de entidades privadas, … – bom, então é natural que a situação
fique preta. Não porque existam idosos a mais, mas sim porque existe
demasiado roubo e desvio de dinheiros públicos em benefício de
sociedades privadas, com a bênção dos poderes públicos.
E o que faz a Exma. Sra. Dona Maria do Rosário
Gama? Em vez de combater pelos pensionistas e moer o juízo aos
poderes públicos que nos trouxeram à presente situação de
descalabro, aproveita o pouco tempo de antena que lhe é concedido
para chamar criminoso a quem acha que é altura de manifestar o
desagrado com os poderes públicos, retirando-lhes o voto!
Sem dúvida algumas consciências encontram-se
mortas e enterradas, e outras carecem de QI (Quociente de
Independência?) suficiente para se manterem em funcionamento.
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