02/11/14

Retrato da futura Era Antonina

Durante semanas a fio António Costa atirou à cara de António Seguro esta verdade insofismável: ele, Costa, ao contrário do seu opositor, Seguro, tem anos de provas dadas no exercício do poder, com vasta obra patente na cidade de Lisboa. Esta chamada de atenção, além de justa, habilita os portugueses a saberem com o que hão-de contar, logo que façam o que muito provavelmente farão: colocar António Costa no topo da hierarquia do poder central, administrativo e executivo do país.

A probabilidade de António Costa chegar ao topo é tão confortável e as provas dadas pelo autarca são tão inequívocas, que podemos com moderado risco imaginar o nosso futuro nos seus mais ínfimos pormenores. Para isso não são necessárias premonições nem bolas de cristal – basta um simples exercício de transposição da sua obra em Lisboa para o país inteiro, e zás, eis-nos perante uma imagem bem definida do porvir.


Na Era Antonina haverá estradas privadas, vendidas à vodca Sporrnova, ao longo das quais serão montados pavilhões e quiosques onde os adolescentes poderão à noite beber ininterruptamente até ao coma alcoólico. O poder instituído dará provas da sua humanidade, patrocinando serviços de socorro rápido, equipados com ambulâncias e helicópteros; como quem monda tomates numa estufa, estas equipas passarão a noite a recolher do chão os adolescentes inanimados. Todas as manhãs seguintes, é certo, o alcatrão da estrada terá desaparecido sob um tapete de copos de plástico, cacos de garrafa, preservativos e outros mudos resquícios dos urros imensos com que milhares de adolescentes – muitos deles vestidos de negro e capa, quais burcas cristianizadas – simularam durante a noite conviver, criando uma paisagem sonora dantesca. No entanto, graças à longa experiência adquirida na administração de Lisboa, o poder central reparará com eficiência o caos aparente, transformando-o mesmo num dos motores da economia nacional: criar-se-ão empresas privadas, com lucros garantidos pelo Estado, que todas as manhãs se encarregarão de varrer o tapete de dejectos. Para suportar os custos deste serviço privado, criar-se-ão 5 novas taxas nacionais de saneamento, automaticamente cobradas através da factura de electricidade, sendo que, todas 5 somadas, equivalerão aproximadamente ao triplo do custo da electricidade consumida – isto deverá bastar para cobrir os custos da limpeza matinal diária.

Foto de João Gaspar, jornal Público, 8-06-2014

Por outro lado, além da necessidade de abrir o espaço necessário aos quiosques e abarracamentos ao longo da estrada, será necessário desflorestar as matas, pinhais, sobreirais e campos de trigo, que serão cimentados a fim de criar parques de estacionamento privado cobrados à hora, onde os consumidores irão parquear milhares de viaturas. Ao mesmo tempo que se extingue o perigo de incêndio florestal em vastas áreas, a economia privada floresce à custa de rendas, que são muito mais fáceis de extrair (existem para isso muitos automatismos) e não levantam os problemas e conflitos laborais inerentes ao trabalho produtivo. Acrescente-se a isto o lucro da venda das madeiras abatidas, como certamente tem acontecido nas ruas de Lisboa.

Na Era Antonina, a actual tendência para transformar o país inteiro num Algarve turístico, de lés-a-lés, de norte a sul e da beira-mar à raia espanhola, acelerar-se-á à velocidade da luz. O país tornar-se-á finalmente um imenso parque de diversões para turistas europeus remediados que buscam um lugar económico para passar o fim de semana – o mesmo processo de turistização que Passos Coelho promove agora com tibieza será energicamente acelerado pelo governo antonino. Passaremos todos a ser tratados como servos do turismo, o que permite estender a todo o país o adequado mal-estar que agora se vive em Lisboa, levando finalmente a maioria da população – que não está cá a fazer nada, senão a abichar à porta dos centros de emprego (o que dá péssimo aspecto) ou a fumar cigarros à porta dos call centre (o que dá igualmente mau aspecto e mau cheiro) – a fugir à tremenda pressão a que está sujeita e a emigrar em massa, abrindo assim mais espaço para milhões de visitantes – cujo fluxo muito em breve triplicará o volume da população residente –, deixando finalmente de atrapalhar o passeio e as fotografias dos turistas, e deixando para trás apenas a quantidade de população estritamente necessária para servir à mesa das esplanadas e atrás do balcão.

Graças a este conjunto de medidas, Nuno Crato poderá ser reconduzido no futuro governo antonino, a fim de completar a sua missão destruidora – com ressalva para um reforço das aulas de inglês, única especialização necessária à serventia turística. Criar-se-á também um novo programa de História, rico de mitos e anedotas, recheado de modernos viriatos e gamas, mas com maior leveza de espírito, para que os poucos residentes locais, como bons anfitriões, conheçam matéria bastante para entreter os visitantes, não se limitando a servir à mesa como mudos títeres.

De resto, os poucos postos de trabalho altamente especializado indispensáveis à prossecução daquela nobre actividade económica podem ser preenchidos pelos filhos das famílias suficientemente abastadas para os mandarem estudar nos países evoluídos donde provém o fluxo turístico. Melhor ainda: com esses países poderá o governo antonino usar alguma da prévia experiência lisboeta e celebrar acordos especiais: a troco de facilidades de acesso e bolsas universitárias, os reformados desses países poderão comprar propriedades e habitações em Portugal, onde virão viver os últimos dias das suas vidas, na condição de abdicarem das caixas de pensões dos países de origem, passando a receber a pensão através dos fundos pagos pelos trabalhadores portugueses. Libertam-se assim também as referidas famílias abastadas do ingrato fardo de sustentarem os filhos no estrangeiro.

Nos poucos hospitais que restam instalados em complexos históricos – os que por qualquer motivo obscuro ainda não puderam ser vendidos aos especuladores imobiliários ou à indústria privada da saúde –, os serviços de saúde terão de reduzir a área que aí ocupam, libertando alguns pavilhões e salões nobres para uso comercial das principais marcas de cerveja, que nesses lugares terão especial licença para manterem os balcões abertos 24 horas por dia, à semelhança dos serviços de urgência. Os edifícios da portaria geralmente existentes nesses complexos serão entregues a marcas de prestígio como a Vuitton, emprestando assim algum charme ao local, geralmente caracterizado pelo seu aspecto deprimente e doentio.

Outras lojas de moda dispendiosa e pechisbeque irão polvilhar os edifícios hospitalares, pois, embora não atraiam clientes, são indispensáveis para a lavagem de dinheiro que passará a correr a rodos, em direcção a uma ilha do pacífico não assinalada no mapa-múndi. Esta actividade irá florescer fulgurantemente, pois o país, sob o governo antonino, transformar-se-á a breve trecho num gigantesco aparelho de suborno (mais ainda do que vemos e imaginamos hoje), inerente a qualquer região intensamente turística. A lavagem de dinheiro é um aspecto essencial, em virtude do florescimento do comércio ilegal de todos os tipos de drogas, como convém a lugares onde uma pessoa vai divertir-se no fim de semana (o ideal mesmo seria ilegalizar também o álcool, tornando-o assim um negócio clandestino ainda mais rentável e juntando algum frisson aventureiro a uma visita ao país, mas infelizmente não creio que António Costa possa tomar essa iniciativa isolada num país da União Europeia). Portugal tornar-se-á uma nova Amesterdão, mas muito mais alegre, ao nosso bom estilo bravio, simples e cordial, sem regulamentos e taxas macambúzias.

Graças à barafunda instalada no Norte de África pela intervenção europeia e norte-americana, na Era Antonina toda a Europa remediada terá por opção única acorrer nos fins de semana e feriados a esta boa terra solarenga, com excepção de alguns ingleses que se embebedaram antes de tempo, adormeceram num banco de autocarro londrino e falharam o embarque no aeroporto – despertando contudo a tempo de irem trabalhar segunda-feira de manhã, graças a um relógio biológico bem oleado e apurado ao longo de sucessivas gerações de assalariados alcoólicos.

Existe, claro está, um pequeno senão: os bloqueios causados pelas caravanas de autocarros turísticos, que tão bem untam as mãos das autoridades locais, que conseguem paralisar o trânsito durante horas a fio, sem com isso sofrerem reparos – mas não seria de mais exigir que tudo fosse um mar de rosas para os autóctones, um paraíso privado tanto para quem cá fica, como para quem cá passa?

Na Era Antonina passaremos a ver maratonas e desfiles a toda a hora pelas estradas do país inteiro – concessionados a empresas privadas –, a pé ou de bicicleta, em que participam milhares de veraneantes, acompanhados de guias turísticos que fazem pequenas palestras sobre locais e monumentos e encaminham os participantes, de tantos em tantos metros, para o comércio especializado – enfim, uma espécie de Marrocos civilizado. Pode parecer-vos isto insuportável, quando praticado com assiduidade, mas, como pode testemunhar qualquer lisboeta, não é tanto assim. Alguns aspectos desta actividade, ainda muito recente e pouco testada, terão de ser afinados, mas António Costa tem dado magníficas provas da sua capacidade de resolução de todo e qualquer problema relacionado com a exploração privada dos bens e lugares públicos. Assim, por exemplo, é natural que o inevitável entupimento das artérias rodoviárias resultante das constantes caminhadas, marchas e maratonas, impedindo muitas pessoas de chegarem a horas ao trabalho (ou simplesmente de chegarem onde quer que seja), venha a ser compensado com a eliminação de mais alguns feriados, a liberalização do uso das horas extraordinárias não pagas e irrecusáveis (sob pena de despedimento), e uma lei que permita o despedimento com justa causa em caso de atraso na entrada ao serviço nos estabelecimentos hoteleiros, de restauração e turísticos, com a consequente perda de direito ao fundo de desemprego.

Na Era Antonina, os poucos palácios, conventos, lezírias, castelos e outros monumentos históricos que ainda restam como propriedade do Estado serão finalmente vendidos. Para facilitar a vida aos futuros proprietários e investidores, começarão por ser encerrados e abandonados, deixando-se umas quantas janelas abertas nos andares superiores e destelhando-se uma parte da cobertura, para que apodreçam sem delongas. Uma vez vendidos, poder-se-á manter a fachada (é muito importante, manter a fachada!), que geralmente resiste às intempéries e aos maus tratos, mas de resto estarão criadas as condições para esventrar todos os monumentos por esse país fora e decorá-los à boa moda dos franchising. Os painéis de azulejo lá existentes serão vendidos pelos novos proprietários a coleccionadores estrangeiros da especialidade, de forma a recuperarem em dobro a quantia despendida na aquisição do edifício.
Para simplificar as consequências burocráticas de todos estes negócios, o governo antonino adoptará a estratégia já testada em Lisboa: os contratos e as contas públicas passarão a ser terminantemente secretos; mesmo que os tribunais sentenciem a abertura de toda a documentação, está provado que é possível ao poder executivo recusar o cumprimento das ordens de qualquer tribunal – se se faz isso em Lisboa, com maior força de razão poderá o poder central praticar.

Os painéis de azulejo que por algum motivo não venham a ser comprados por coleccionadores privados ou por Estados estrangeiros para decoração local serão adquiridos pelo Estado português por quantias generosas e instalados num novo edifício (o futuro Museu do Azulejo) desenhado por um arquitecto amigo, inteiramente construído em arquitectura de vidro, por dentro e por fora, paredes, chão e tecto (com jeitinho, talvez possam ser os mesmos arquitectos amigos que desenharam o novo Museu dos Coches em Lisboa, esse magnífico edifício sobrelevado e sem rampa de acesso, onde jamais poderão entrar as viaturas de carga e os coches parqueados no antigo museu), de modo que, embora seja impossível expor painéis de azulejo em paredes de vidro, o edifício fará um vistaço e permitirá espreitar a cueca das meninas que passeiam no piso de cima.

Na Era Antonina o actual vereador Sá Fernandes será o braço direito de António Costa, acumulando as pastas do Ambiente, da Economia e da Administração Interna. Isto é óptimo para a economia portuguesa e implica a substituição generalizada dos tradicionais empedrados (que são de manutenção dispendiosa e incómodos para turistas de salto alto). Passar-se-á a adoptar pavimentos feitos de desperdício industrial pulverizado, como já se faz nos jardins de Lisboa, dando assim uso às poeiras tóxicas de vidro e até, quem sabe, ao amianto que tem de ser desmontado das escolas e edifícios públicos, depois de devidamente moído – elimina-se assim o problema de reciclagem de desperdícios industriais tóxicos, que doutra forma seriam um embaraço para o governo central ou um custo exorbitante para alguns industriais e patos-bravos.

Na Era Antonina as melhores praias e matas serão privatizadas e concessionadas a marcas privadas, a fundos de investimento imobiliário e a clubes europeus de elite. Onde seja possível arrasar uma serra (à semelhança da Arrábida), serão primeiro os montes transformados em cimento para vender à saca; depois de finalmente terraplanados, darão lugar a campos de golfe. Estes campos privados deverão ser rodeados de altos muros e arame farpado, a fim de manter os indígenas à distância.

Na Era Antonina resolver-se-á duma vez por todas o problema do comércio local, esse legado – esteticamente fora da norma e do progresso – que apenas serve para roubar espaço às lojas modernas, ao franchising e às grandes superfícies. A genial solução para este problema já foi encontrada pelo futuro ministro Sá Fernandes, que a testou no Mercado da Ribeira em Lisboa: basta criar uma nova lei que proíbe os pequenos comerciantes de legarem o negócio aos seus familiares; feito isto, a elevada média de idades do pequeno comércio tradicional garante a sua eliminação a médio prazo – de resto, é possível criar diversos mecanismos de pressão, destinados a abreviar a desistência desses comerciantes, como também se tem feito de diversas formas e com grande sucesso em Lisboa, sob a genial batuta de António Costa e Sá Fernandes.

Enfim, de maneira geral, a Era Antonina porá termo definitivo a todos os serviços públicos que ainda restam, entregando-os a fornecedores e concessionários privados. Sabemos que tudo isto – e muito mais que aqui não retrato, por já ir demasiado longo este texto – tudo isto será feito com grande eficiência e mestria, das quais António Costa, como ele próprio fez notar e muito bem, já deu provas mais que suficientes ao longo de muitos anos. E já que, por força da lei, não pode ele alongar-se eternamente no cadeiral autárquico, ao menos que transponha para o governo central a experiência acumulada.

Bem haja.

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