18/08/15

Nem sempre basta boa vontade

O fetichismo da mercadoria

Crítica da edição com prefácio de Anselm Jappe, ed. Antígona, 2015


Com o título «O Fetichismo da Mercadoria e o Seu Segredo», a editora Antígona publicou uma colectânea de textos extraídos de O Capital, de Karl Marx. A edição data de 2015, com um artigo introdutório de Anselm Jappe; os textos são traduzidos directamente do alemão por José Miranda Justo.
Infelizmente a edição parece-me um desastre, por razões que explicarei adiante; digo isto com particular desgosto, por ser a Antígona uma editora que muito prezo, exemplo invulgar de resistência contra ventos e marés.

O livro inclui o artigo introdutório de Anselm Jappe, seguido de dois trechos do livro I d'O Capital: capítulo 1, secção 4 («O carácter de fetiche da mercadoria e o seu segredo»), e capítulo 2 («O processo de troca»).

Antes de indicar as fraquezas que encontro nesta edição, tenho de informar o leitor de que nem sou especialista em Marx, nem quero ser – na mesma medida em que não quero ser especialista em coisa alguma em particular, nem fazer uma das figuras que mais detesto na sociedade capitalista: a do perito sem o qual nada seria compreensível, factível ou produtivo –, e portanto não vou entrar em minúcias sobre o trabalho de Marx. Limito-me a levantar questões visíveis ao olho nu de qualquer mortal.

O tema do livro diz respeito a uma das teses de Karl Marx sobre a sociedade capitalista: o mistério da mercadoria e o seu carácter fetichista1. É, julgo eu, uma tese central para uma compreensão alargada e vívida da nossa sociedade.

O editor, consciente da importância do tema, bem como do seu desenvolvimento tardio e escasso no pensamento contemporâneo, encomendou uma introdução a um dos filósofos vivos que mais se tem dedicado ao seu estudo: Anselm Jappe. O artigo de Jappe, com o título «O que é o fetichismo da mercadoria? E pode acabar-se com ele?», ocupa 25 páginas, de modo que o seu peso no total das 83 páginas de texto (quase um terço do livro) é evidente. 
 
O desastre desta edição começa logo . Anselm Jappe parece querer desenvolver um pouco do seu próprio pensamento a propósito do tema introduzido por Karl Marx, mas afinal nem vai longe nem ajuda o leitor a compreender uma só linha dos textos de Marx. O problema de fundo deste prefácio – já para não falar em aspectos marginais, como sejam as abismais elipses lógicas de Jappe – é o seguinte: ou o leitor já conhece de cor e salteado a obra de Marx, e nesse caso entende as constantes referências do prefaciador a conceitos basilares do marxismo; ou o leitor pouco ou nada conhece da crítica marxista, e nesse caso o artigo de Jappe assume a seus olhos um aspecto cabalístico de seita, desmoralizando a inteligência e a curiosidade
 
Para bem medirmos a dimensão do absurdo do artigo introdutório de Jappe, recordemos que os textos de Marx transcritos na edição da Antígona são integralmente colhidos de O Capital. Isto significa que, se o leitor já conhece a obra de Marx, então pode compreender o artigo introdutório, mas em contrapartida não precisa para nada desta edição, porque certamente já tem os respectivos textos na sua estante! Por outro lado, se a ideia da editora era, em atenção aos neófitos, mostrar um aspecto importante das teses de Marx que raramente é mencionado, o caminho mais útil para uma introdução seria a contextualização e a explicação sumária dos conceitos marxistas basilares que sustentam a ideia de «fetichismo da mercadoria». Esta ideia é exposta n’O Capital após uma trintena de páginas onde já foram abordados, discutidos e definidos com rigor os conceitos de mercadoria, de valor de uso, de valor de troca, a noção de trabalho incorporado na mercadoria, de trabalho concreto, de trabalho abstracto, … Em vez de fornecer essa ajuda contextualizadora ao leitor, de lhe mostrar o lugar de cada alicerce, Jappe salta para a pista e atira os malabares ao ar, mostrando-nos que é um ás do circo marxista, sem adiantar explicações sobre a natureza dos malabares. Puro exibicionismo.

Ultrapassado o prefácio, deparamo-nos com o segundo desaire: a tradução. Estamos perante um pequeno livro que, se fosse bem escrito e traduzido, não consumiria mais de uma breve tarde de leitura. As páginas são bastante pequenas (não mais de 1200 caracteres por página). No entanto, cada página pode consumir mais de 20 minutos de leitura, se quisermos autenticamente compreender o que estamos a ler. Cada frase tem de ser lida e relida diversas vezes, e ainda assim sem garantia de bom sucesso. Ao cabo de meia dúzia de páginas laboriosamente lidas e duvidosamente decifradas, a evidência impõe-se: mais vale aceder à Internet e descarregar – ainda por cima à borla! – uma versão decente dos mesmos textos e ler fluentemente, sem grandes dificuldades nem tropeços, o que na tradução publicada pela Antígona parece um indecifrável texto transmitido em código para exclusivo benefício de um espião do outro lado do mundo.

O problema das traduções, de qualquer tradução, é que quando o tradutor não entende o que está a traduzir, o resultado é fatalmente incompreensível para o leitor. Vejamos como e porquê isto sucede.
A escrita é, à partida, um exercício de imaginação: o autor figura mentalmente uma certa coisa, uma res alis, uma imagem da realidade que pretende transmitir ao resto da humanidade, e depois procura a fórmula adequada para codificar essa figura em escrita. O acto da escrita, por seu turno, consiste essencialmente em transpor para uma forma de pensamento linear – obediente a um conjunto de regras e convenções – uma figuração que à partida era mais complexa e multidimensional. O leitor, por sua vez, tem de percorrer o caminho inverso: descodificar a escrita linear, segundo as referidas regras e convenções, de modo a tentar reconstruir a figuração complexa e multidimensional que estava na mente do autor – é uma espécie de exercício de adivinhação a partir de indícios ordenados, sucedendo que nem sempre a imaginação do autor e a do leitor coincidem, embora no caso das artes, que é um caso particular de comunicação, isso não tenha necessariamente grande importância.2

A situação do tradutor eleva ao quadrado este processo, pois a tradução parte de um exercício de leitura, para chegar a um exercício de reescrita. O tradutor, tal como o leitor, tem de decifrar o texto original; tem de reconstituir na sua mente a figuração original. Em certos tipos de texto, a reconstituição fiel da figuração multidimensional inicial toma o nome de «compreensão». A seguir o tradutor tem de reiniciar um processo idêntico ao original: a partir duma figuração inicial (neste caso emprestada pelo autor), retoma o exercício da escrita, mas desta vez numa nova língua. Resumindo: o que está em causa numa tradução são essencialmente duas coisas (ou uma coisa nas suas duas variantes, para ser mais rigoroso): imaginação e compreensão. Depois, acessoriamente, vem o domínio das regras e convenções da escrita linear.

O problema da tradução em análise é que, manifestamente, o tradutor não compreendeu o que estava a ler; não foi capaz de recriar na sua imaginação o que Karl Marx figurava ao escrever; de modo que, jogando pelo seguro dentro dos limites do seu desnorte, o tradutor procurou talvez transpor para a língua portuguesa, com grande zelo, as palavras alemãs que encontrou no original (suponho eu, que não sei uma palavra de alemão). Este procedimento não oferece quaisquer garantias de reprodução da intenção do autor, porque falha o elemento fundamental de toda a tradução: imaginação e compreensão. 
 
Ora a ausência de imaginação num texto só pode ter dois resultados: ou o lugar-comum ou o vazio. No caso vertente, encontramos um vazio: as palavras soltas, organizadas em fila unidimensional mas desligadas de um processo compreensivo, resultam num objecto vago. Daí que o leitor seja obrigado a reler uma, duas, três, n vezes cada frase, à procura do significado supostamente escondido por detrás de um lugar vazio.

Exemplo 1 (ligeiro):
Trad. JMJ (José Miranda Justo):
«O carácter místico da mercadoria não nasce, portanto, do respectivo valor de uso. E tão-pouco nasce do conteúdo das determinações do valor. Pois que, em primeiro lugar, por diversos que possam ser os trabalhos proveitosos ou as actividades produtivas, é uma verdade fisiológica que são funções do organismo humano e que cada uma de tais funções, seja qual for o seu conteúdo e a sua forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, de nervos, de músculos, de órgãos sensoriais, etc., humanos.»
Trad. minha ad hoc, a partir do inglês e do francês3:
«O carácter místico das mercadorias não resulta, portanto, do seu valor de uso. Tão-pouco resulta dos factores que determinam o valor [de troca]. Com efeito, em primeiro lugar, por mais variados que sejam os trabalhos úteis ou as actividades produtivas, é um facto fisiológico que todos eles são uma função do organismo humano, e que esse tipo de função, seja qual for a sua natureza e a sua forma, consiste essencialmente num dispêndio [de energia] do cérebro, dos nervos, dos músculos, dos órgãos sensoriais, etc.»

Exemplo 2 (pesado):
Trad. JMJ:
«[…] A igualdade dos trabalhos humanos obtém a forma objectiva da igual objectividade de valor dos produtos do trabalho, a medida do dispêndio de força humana de trabalho obtém, pela sua duração, a forma da magnitude de valor dos produtos do trabalho, e, por último, as relações dos produtores, nas quais são postas em prática aquelas determinações sociais dos trabalhos deles, obtêm a forma de uma relação social dos produtos do trabalho.
O misterioso da forma de mercadoria consiste, pois, simplesmente em que ela reflecte para os homens os caracteres sociais do próprio trabalho deles enquanto caracteres objectivos dos próprios produtos do trabalho, enquanto propriedades naturais sociais destas coisas, e, por isso, também a relação social dos produtores com o trabalho total enquanto relação social existente fora deles enquanto objectos.»
Trad. minha ad hoc, a partir de id. ibid.:
«[…] A equivalência de todos os tipos de labor humano assume a forma de valor do produto do trabalho; a medição da duração da força de trabalho despendida assume a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; e por fim as relações mútuas entre produtores, através das quais se afirma o carácter social do seu trabalho, assumem a forma de relação social entre produtos do trabalho.
A mercadoria torna-se por isso uma coisa misteriosa, simplesmente porque na mercadoria o carácter social do labor humano manifesta-se a quem a produz como um dado objectivo que reveste o produto do seu labor; a relação dos produtores com o somatório total do seu labor é-lhes apresentada como uma relação social entre os produtos do seu trabalho, e não como uma relação entre os próprios produtores.»

[Nota 1: A dificuldade generalizada de entender e traduzir os escritos alemães de Karl Marx é evidente nas múltiplas traduções e versões que consultei, cujas diferenças chegam a fazer duvidar que todas provenham de fonte comum. Eu tão-pouco ponho as mãos no fogo pela minha tradução apressada, apesar de estar a usar uma versão inglesa revista por Frederick Engels.
Nota 2: A tradução de JMJ replica em abundância os mesmos erros duma tradução brasileira colectiva não assinada, disponível nos arquivos marxistas on-line.
Nota 3: Por regra, as traduções em línguas portuguesas disponíveis na rede digital são tão disparatadas, que dá vontade de chorar.]

Para não cortar a meio o raciocínio de Marx, deixando o meu leitor em suspenso, acrescento o seguinte esclarecimento fornecido por Marx no mesmo texto: «É por isso que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais cujas qualidades são ao mesmo tempo perceptíveis e imperceptíveis. Da mesma forma, a luz de um objecto é percebida por nós não como uma excitação subjectiva do nervo óptico, mas sim como a forma perceptível de um objecto externo. Existe aí uma relação física entre duas coisas. Com as mercadorias passa-se algo diferente. Aí, a forma de valor e a relação de valor entre produtos do trabalho, graças à qual adquirem a qualidade de mercadorias, não tem qualquer relação com as suas propriedades físicas nem com as relações materiais que delas resultam» [trad. minha ad hoc, a partir de id. ibid.]. Esta passagem4 ajuda a esclarecer o pensamento de Marx, mas ao mesmo tempo denuncia a época histórica e filosófica em que foi concebida: a «forma objectiva de um objecto externo», neste contexto, significa hoje para nós a «representação mental de um objecto externo», tornando-se assim claros os mecanismos graças aos quais pode instalar-se, de forma aparentemente tão fácil, a alienação entre os produtores, o produto do seu trabalho e o valor mercantil. De facto, no exemplo dado por Marx, a natureza da luz, das células fotossensíveis e do nervo óptico nada tem a ver quer com a natureza do objecto exterior quer com a natureza da representação mnemónica e conceptual desse objecto; a representação mental da mesa não é uma réplica, não é uma mesinha em miniatura, e tanto a luz como os aparelhos perceptivos funcionam como instrumentos intermediários, favorecendo por isso mesmo, em certos casos, a alienação entre os objectos e a sua representação mental.

Regressando ao livro e resumindo: estamos perante uma tradução desastrosa. Se somarmos a isto o facto de Marx (na minha humilde opinião), quando escreve em alemão, se exprimir amiúde de forma desnecessariamente retorcida – e até, não poucas vezes, algo trapalhona, como se pode notar nalguns dos originais aqui traduzidos –, temos um prato de esparguete em que dificilmente se encontra a ponta da meada. 
 
Esta edição é um passo infeliz, em que a Antígona, apesar das suas evidentes boas intenções, presta um mau serviço, pois o livro não só não seduz nem é inteligível, como assusta a curiosidade do leitor sobre o trabalho teórico de uma das mentes mais brilhantes dos últimos dois séculos.


Notas:

1Uma breve nota sobre fetichismo, para ajudar o leitor desprevenido. O termo fetichismo é uma corruptela da palavra portuguesa «feitiço» e foi adoptado pela Europa erudita a partir do século XVIII. Etimologicamente, remete para algo fictício → artificial → sortilégio. Na sua acepção actual designa uma espécie de animismo: a sobreposição de um espírito fictício, com poderes ou carácter sobrenaturais, à natureza intrínseca dum objecto (caso duma máscara «contendo» a alma dum antepassado, e que por isso deixa de ser vista como máscara), ou a substituição duma pessoa por um objecto (caso do fetichismo sexual e da cruz católica, e neste caso os objectos inanimados passam a representar pessoas e relações sociais e a ser vistos como seres providos de ânimo). Marx serve-se deste conceito para designar a substituição das relações entre produtores pelas relações entre mercadorias, imbuídas duma natureza pseudo-anímica, chamada «valor», que aparece como se fosse uma relação social autónoma e com vida própria.

2Esta explicação é uma versão condensada e simplificada do problema das linguagens dimensionalmente reduzidas. Explicação mais clara (mas muito mais longa e detalhada) é-nos dada por Vilém Flusser em grande parte da sua obra.

3Versão inglesa de O Capital, livro I, tradução de Samuel Moore e Edward Eveling, editada por Frederick Engels; 1ª ed. 1887 (publicada por Progress Publishers, Moscovo, URSS, s/d). Cotejada com a versão francesa de O Capital, I, tradução de J. Roy, revista por Karl Marx, ed. 1875.

4Edição após edição, Marx procurou melhorar a argumentação e a exposição, torná-la mais compreensível, por vezes tirando partido das soluções encontradas pelos tradutores, em especial na primeira edição francesa. Encontramos diferenças muito consideráveis de uma edição a outra (chegando ao ponto de períodos inteiros aparecerem e desaparecerem). Suponho que a urgência de concluir o seu trabalho e a luta constante, nessa fase da sua vida, contra os problemas de saúde impediram o autor de alcançar o apuro definitivo no texto d'O Capital. Nas presentes traduções baseei-me na versão inglesa revista por Engels, temperando-a nalguns passos à luz da versão francesa revista pelo autor, mas fi-lo com bastante ligeireza, não me esmerando por alcançar a síntese ideal – daí chamar-lhes ad hoc.

Imagem: peça de Nataliya Slinko

Versões: este artigo foi editado e corrigido em 19/08/2015.

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