26/09/15

A insustentável cretinice eleitoral

Os comentadores e políticos de serviço continuam a confundir a publicidade com a realidade. É triste. Ainda não compreenderam o significado da representação imagética. Vejamos como isto afecta a campanha eleitoral.
[Este estudo é patrocinado pelo Observatório para os Actos Eleitorais e Outros Que Tais]


 

Há aqui gente a mais

O BE (Bloco de Esquerda) abriu a campanha com um daqueles belos lemas publicitários de nenhuma valia política: «Gente de verdade». Só passadas várias semanas de andar eu a tentar adivinhar o que quereria isto dizer (stupid me), percebi que o slogan do BE respondia ao famoso cartaz do PS (Partido Socialista) com caras de desempregados que afinal não eram desempregados porque bem vistas as coisas eram figurantes pagos, como é normal na publicidade – ou vocês, inocentes criaturas, julgam que aquelas pessoas que aparecem nos anúncios a comer fatias de pão barradas com sucedâneos de manteiga quimicamente processados comem mesmo aquela porcaria?


O PC (Partido Comunista Português) não quis ficar atrás e avançou com «Gente séria». Deduz-se que os outros todos são uns palhaços, excepto os que são atestadamente aldrabões de alto calibre

Tudo isto vem comprovar a tese de que os publicitários de topo há muito tempo deixaram de conceber anúncios a pensar no público, limitando-se a fazer citações recíprocas ou respostas contundentes a outros publicitários – um sistema endógeno que se alimenta de si mesmo, até acabar por parir um montão de abortolinos carregados de degenerescências genéticas e com seis dedos em cada mão.
 
Mas isto não fica por aqui. Comprovada a eficácia do mote (do ponto de vista dos publicitários, entenda-se), vemos surgir «Gente que não se vende / tem de agir», da coligação Agir (PTP+MAS) – um lema que não só rima com o do BE e o do PC, mas também rima consigo mesmo, numa espécie de hermafroditismo. Gera um poucochinho de confusão, porque «tem de agir» baralha-se mnemonicamente com «tempo de avançar», mas cá por mim tudo bem, força aí.

Existem aqui eixos políticos a menos e gente a mais. Ainda por cima, o lema do Agir é incoerente com uma besteira ecoada por todos os macacos com acesso ao microfone, à direita e à esquerda, incluindo o programa político do MAS: o défice demográfico. Confusos? Eu explico: em 1960, ou mesmo antes, tínhamos 10 milhões de habitantes, mais coisa menos coisa; ao passo que agora só temos cerca de 10 milhões de habitantes. Por isso temos agora um défice demográfico. Esclarecidos?




No centrão, pelo contrário, há tempo a mais e excesso de confiança

O centrão contra-ataca com «Tempo de confiança» (PS). É uma coisa indefinida, não sabemos se significa chuva ou sol, provavelmente tudo depende de sermos nós eira ou nabal, sabe-se lá se havemos de levar chapéu-de-chuva ou fato de banho, que raio de indumentária havemos de levar quando faz tempo de confiança?, mas pelos vistos o PS tem muito mais confiança na força publicitária desta frase do que no cartaz dos desempregados.


E de facto encontramos a par e passo o princípio da confiança no programa do PS: por exemplo, depois de propor incentivos ao arrendamento como solução para efectivar o direito à habitação (!!), o PS propõe que o erário público pague um seguro aos senhorios, não vá dar-se o caso de os inquilinos não pagarem a renda. Aí está: no sistema de confiança do PS, os inquilinos são uma gente que não merece confiança – e ainda por cima estão na eira, que é o sítio onde se desgranam legumes e cereais, e portanto se calhar já não lhes sobra grana para pagar a renda –, ao passo que os senhorios são uma gente de altíssima confiança e só por isso merecem um prémio em dinheiro – estão no nabal, onde nunca pára de chover dinheiro, mesmo que faça um estio do camandro.


Quanto ao lema «Portugal à frente», do PSD/CDS, é um estouro. Foi inspirado quando o/a autor/a (mantenhamos o anonimato), fazendo o seu jogging matinal no paredão do Tamariz, no encalço de uns shorts azul-escuro bem recheados, teve uma iluminação. A frase original rezava «Portugal à frente e aquele senhor mais escuro do FMI atrás» ou, como alternativa menos iluminada, «Portugal à frente do burro», mas na reunião de apresentação de propostas para a campanha o Paulo Portas atalhou bem, dizendo que para bom entendedor meia frase basta. [Nota: não faço ideia de quem é esse ou essa tal de Portugal (eu não sou, isso posso garantir), mas imagino que seja bom/boa como o milho, para conseguir inspirar a campanha eleitoral de gente tão ilustre.]


Abençoados sejam os partidos que resolvem o problema de haver gente a mais, confiança a mais e tempo a mais

O PNR, de forma muito cordata, lança o lema «Refugiados aqui não». É uma espécie de lego, de permuta fácil (refugiados / imigrantes / homossexuais / pretos / comunistas / pessoas com 2 dedos de testa, aqui não), na boa tradição de dizer brandamente o que de mais horrendo já se tenha feito ou se pretenda vir a repetir (matar, mutilar e torturar imigrantes, gente de esquerda, homossexuais, etc.). Podiam ter dito «morte aos refugiados» (ou imigrantes, ou panilas, ou comunistas), mas não, senhor, dizem-no de uma forma tão bem-composta que até o Dr. António de Oliveira Salazar, pessoa de bons costumes (tirando aquela coisita de nada com a criada de fora), poderia ecoá-lo aos microfones da rádio nacional.


Entretanto o MRPP, único partido declaradamente estalinista sobrevivente em Portugal, quis ser mais honesto e avançou com um «Morte aos traidores» que levou um cartão amarelo da CNE (Comissão Nacional de Eleições). Acho esta atitude da CNE de muito mau tom. A mim parece-me bem dizer-se exactamente o que se pensa e ao que se vem. Não é para isso que serve uma campanha eleitoral? Enfim, a CNE parece estar apostada no boicote activo à campanha eleitoral.

É claro que a categoria moral de «traidor» (de tradere = dar ao outro lado, entregar) invocada pelo MRPP é um mimo de imprecisão, mas, convenhamos, não só a campanha eleitoral não serve para tratar de política nem de rigores científicos, como é precisamente essa imprecisão que define a pureza da estética e do suspense estalinista: jamais se saberá quem são os fiéis e quem são os traidores até ao instante do corte de cabeças; e mesmo nesse último minuto elas podem trocar de lugar.


Ao PNR e ao MRPP devemos agradecer o combate ao referido excesso de gente – um confessando, outro sugerindo, um matando, outro contratando gorilas para pôr à porta da discoteca, não vá entrar alguém de sapatilhas.

Eu diria mesmo, retomando o mote do MRPP: morte aos publicitários [se isto vos ofender, por favor substituam por «Não queremos aqui publicitários»; se mesmo assim for demasiado forte para vocês, queiram substituir por «São publicitários de confiança»]. Também tenho esperança de que aquelas pessoas que estão muito preocupadas com o défice demográfico vão para trás de uns outdoors continuar o seu combate ao défice demográfico, com Portugal à frente e o burro atrás, e nos desamparem a loja duma vez por todas.

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