A voz-do-dono volta a fazer das suas!
«Apesar dos apelos de Pedro Passos Coelho para que sejam evitadas convulsões sociais[1], os organizadores do protesto Geração à Rasca já agendaram uma nova manifestação para o dia 15 de outubro[2], data limite de entrega do Orçamento do Estado[3].» [fonte: tvnet; DN]
[1] Convulsão = termo emprestado da medicina, que significa aqui metaforicamente agitação social. Mas o que mais chama a atenção nesta frase é a expressão «apesar». Este singelo «apesar», referido aos apelos dum primeiro-ministro, denuncia uma visão tão próxima do absolutismo monárquico que até causa arrepios. A este «apesar» apenas se pode responder: E pur si muove! [a sociedade].
[2] Os escrevinhadores da voz-do-dono que lavram estas sentenças deviam ser mergulhados preventivamente em pez fervente e cobertos de penas, sendo de seguida obrigados a cacarejar em vários tons e registos para gáudio do público leitor. A questão é esta:
A manifestação de 15 de Outubro não é promovida apenas pelos «organizadores do protesto geração à Rasca», mas também por um vasto conjunto de organizações cívicas.
Ou seja, as principais notícias aqui em causa, que seria crucial destacar (à parte a convocatória da manifestação em si mesma), são:
- o facto inusitado de, ao fim de 40 anos de teimoso sectarismo generalizado, um conjunto alargado de organizações cívicas portuguesas ter finalmente descido da presunção extática e decidido sentar-se à mesma mesa, fazendo frente comum contra todas as ilegitimidades, défices democráticos, injustiças e golpes de Estado em curso; não é coisa pouca este passo cívico – deveria merecer honras de notícia desenvolvida a duas ou mais páginas e registo para a posteridade;
- o facto de um conjunto alargado de organizações cívicas portuguesas não especializadas na cena internacional ter percebido que a ditadura financeira e respectivas medidas de austeridade são um problema internacional, e não apenas um acidente no Portugal dos Pequeninos.
[3] A voz-do-dono, mais uma vez, ecoa a má-fé do mestre. Na verdade, a convocatória desta manifestação não tem relação directa de causa e efeito com o orçamento do Estado português (nem poderia ter, é uma manifestação internacional!); trata-se duma coincidência; como todas as coincidências pode ser levianamente usada por quem estaria melhor a escrever horóscopos do que notícias da actualidade. Aliás, trata-se duma coincidência sem graça nem espírito. Para o caso dos aprendizes de voz-do-dono terem de voltar a mencionar o assunto, aqui sugiro mais umas quantas coincidências a 15 de Outubro:
- Portugal finalmente reconhece a integração dos territórios de Goa, Damão e Diu na União Indiana, pondo fim ao delírio imperialista (1974)
- prisão de Alfred Dreyfus e início de uma saga anti-semita (1894)
- Friedrich Nietzsche vem a este mundo, para grande benefício dos comentadores de rodapé e dos candidatos ao terrorismo niilista de princípio de século, e para grande prejuízo do juízo claro da humanidade em geral (1844)
- Mata Hari é executada por espionagem
- etc.
Só um passinho mais, por favor
Como já disse, a grande novidade é o facto de um número significativo de movimentos cívicos estarem a encontrar meios comuns de acção. É cedo para embandeirar em arco, mas se tudo continuar a correr bem, estaremos a assistir a um momento histórico na vida do movimento social português.Contudo, os movimentos cívicos ainda não conseguiram compreender o papel da voz-do-dono na cena política actual [para quem não leu os meus artigos anteriores: «voz-do-dono» = «comunicação social mainstream»]. O debate que ocorre neste momento em bastidores entre as organizações cívicas envolvidas no processo unitário de convocação da manifestação de 15 de Outubro demonstra que não existe uma noção clara do papel da voz-do-dono na manutenção de um poder antidemocrático e censório. Continuam a acreditar na ficção académica de que a comunicação social actual é um instrumento neutro, universal, à disposição de toda a gente. Julgam que a suposta utilização da voz-do-dono é apenas um problema técnico; que, com aquilo que a própria máquina de construção da voz-do-dono chama «técnica de relações públicas», é possível levar a voz-do-dono a servir de via de comunicação com o público. Em suma: estão completamente às escuras sobre a natureza política actual da voz-do-dono e continuam a acreditar inocentemente nas balelas técnicas que lhes impingem há décadas.
Falta a consciência política de que a voz-do-dono será sempre fiel ao dono, e que a construção de um meio de comunicação social alternativo e independente é uma tarefa indispensável e urgente. Sem isso, todos os activistas permanecerão durante os próximos anos a falar consigo mesmos, dentro duma sala fechada, e a serem toureados por um poder político que faz de conta que os ignora, deixando o encargo de combater a movimentação social aos bandarilheiros da voz-do-dono.
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