12/08/11

Golpe de Estado

É necessário ler o texto completo do Memorando de acordo entre a Troika e o Governo português para compreender até que ponto a soberania nacional é trucidada. A finança privada, através do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE), leva a cabo um ataque cerrado contra a soberania nacional e o funcionamento democrático das instituições.

Eu sei que o Memorando é um documento longo, de leitura penosa; mas os seus itens são de tal forma explícitos, o descaramento das medidas impostas é de tal ordem, que não posso deixar de incitar veementemente à sua leitura, para que tudo se torne claro aos olhos do leitor e este meu resumo da situação não lhe pareça um artigo de opinião arbitrária. Após a leitura do Memorando, e passada a surpresa inicial de quem porventura ainda tivesse ilusões sobre a natureza do acordo, nenhuma dúvida pode restar sobre o que está em causa.

Ora o que está em causa no Memorando da Troika é um golpe de Estado palaciano, por via executiva. O conjunto de golpes contra a legitimidade democrática escritos preto no branco no Memorando constituirá certamente um espantoso caso de estudo nas aulas de História dos nossos netos. Estão em causa:
  • o preceito constitucional de que a economia deve subordinar-se aos interesses gerais da sociedade – o Memorando justifica a imposição de medidas de austeridade, a perda de direitos laborais, o desmantelamento da saúde, do ensino e da cultura com argumentos estritamente económicos;
  • o preceito internacional de que um Estado só deve endividar-se quando os montantes emprestados sirvam directamente os interesses da população, o seu bem-estar, o pleno emprego e a melhoria dos meios de produção, logo, dos meios de pagamento – o Memorando impõe medidas que subtraem o bem-estar das populações, aumentam o desemprego, servem a banca privada em prejuízo do público e acarretam uma quebra do produto interno (incluindo a cessação de crédito à produção);
  • o preceito de que a celebração de um acordo de empréstimo pressupõe liberdade de decisão do devedor – o acordo com a Troika foi feito sob chantagem de corte de crédito e de escalada dos juros;
  • o preceito constitucional que estabelece o Estado social, tendo este aspecto total prevalência sobre considerações estritamente económicas, em especial os interesses económicos privados– o Memorando prevê o desmantelamento do Estado social e a utilização das tributações sociais para salvar a banca privada;
  • o preceito (constitucional e internacional) do Estado de direito, segundo o qual um Estado deve decidir sobre as suas leis e tribunais de forma soberana, não podendo os seus tribunais ser preteridos ou de alguma forma forçados por potências estrangeiras ou privadas – ora o Memorando força a alteração do funcionamento dos tribunais portugueses e a alteração da legislação nacional;
  • o preceito (constitucional e internacional) de que um país apenas pode abdicar de uma parte da sua soberania se a instituição que representa directa e democraticamente a população (ou seja a Assembleia da República, por maioria de dois terços) assim o votar expressamente, e ainda assim apenas na condição, prevista nos tratados da ONU e nas convenções de Viena, de essa decisão não implicar perda de independência política – o Memorando prevê a venda ao estrangeiro de partes do território nacional (incluindo zonas protegidas nacional e internacionalmente); partes do acordo prevêem a subordinação do Governo e dos resultados eleitorais a poderes estrangeiros públicos ou privados;
  • o preceito constitucional de que os recursos naturais (por exemplo a água nas suas diversas formas de proveniência natural) são inalienáveis, não podendo ser cedidos, concedidos ou vendidos – o Memorando impõe a privatização (para empresas estrangeiras) de vários recursos naturais, incluindo a água;
  • o preceito de que os sectores estratégicos (por exemplo a energia, as comunicações e correios) não podem ser alienados e devem permanecer sob controle soberano do Estado – o Memorando impõe a extinção das golden shares do Estado em empresas estratégicas, a privatização dos correios, da produção de energia, das cadeias de televisão estatais, das empresas que garantem a transmissão de dados, a distribuição de água, de gás, de electricidade, além de outros mecanismos de perda de soberania, planeamento e redistribuição dos rendimentos;
  • o preceito de que o Governo português deve manter-se independente, tomando as suas decisões executivas em plena liberdade soberana – o Memorando impõe que o executivo português governe sob tutela de representantes externos ou da finança privada;
  • o preceito de que a tributação deve ser um instrumento de redistribuição dos rendimentos – o Memorando impõe alterações à política fiscal, com vista a um agravamento da má redistribuição dos rendimentos e portanto das desigualdades sociais;
  • etc.

Face a esta situação, torna-se evidente, à luz dos convénios internacionais, que o acordo com a Troika é ilegítimo e deve ser denunciado e anulado por um futuro Governo que não seja conivente com os interesses representados pela Troika.

Um autêntico saque medieval, autorizado por um governo usurpador

O resultado imediato do conjunto de medidas do Memorando é o de um autêntico saque, na melhor tradição medieval das incursões armadas:
  • transferência maciça dos capitais nacionais para o estrangeiro;
  • transferência dos recursos nacionais e naturais para o estrangeiro;
  • transferência do controle dos sectores estratégicos da economia e do bem-estar social para o estrangeiro e para a finança privada;
  • transferência dos custos das aventuras desastrosas da finança privada para os contribuintes;
  • transferência dos poderes legislativo, executivo e judicial para o estrangeiro.
Um governo que pratica este tipo de actos, que atenta desta forma contra o interesse da população, contra o Estado de direito, contra a Constituição, não pode deixar de ser considerado usurpador. Talvez a figura do usurpador já não pertença à lista de figuras de direito actual (os juristas que me esclareçam, por favor); mas, do ponto de vista político, bem como do ponto de vista moral, um governo que atenta desta forma contra o interesse dos cidadãos, num Estado supostamente democrático e de direito, deve ser considerado usurpador, à semelhança dos governos ditatoriais.

A perda de soberania institucional vem somar-se a outras perdas de soberania há tempos em curso

Às transferências anteriormente referidas acrescem:
  • perda de soberania alimentar, em resultado de políticas anteriores ao longo de décadas, agora cumuladas pela nova legislação internacional e europeia – que dá às multinacionais direitos de propriedade sobre elementos da Natureza e o monopólio das sementes;
  • transferência da propriedade da terra e da água para os bancos privados e os investidores estrangeiros, por efeito combinado dos pontos anteriores e de numerosas outras medidas políticas e económicas (um pouco à semelhança do que se passou nos EUA durante a crise de 1929).
Esta e outras perdas de soberania são desde longa data arquitectadas por interesses privados, multinacionais e financeiros, e postas em prática com a conivência de sucessivos governos.

O Memorando é apenas o culminar duma política de longo curso

Não nos iludamos quanto à intervenção súbita da Troika em Portugal. A actual situação, embora acelerada e levada ao extremo pelos efeitos da crise financeira mundial de 2007-2008, foi minuciosamente preparada por sucessivas políticas neoliberais (ora por governos do PS ora do PSD), durante cerca de 30 anos.

Puxemos pela memória e recordemos os sucessivos discursos do poder, na última década, sobre a «insustentabilidade» do Estado social – sempre seguidos de cortes no Estado social e medidas de austeridade. Graças a uma campanha cerrada de comunicação social e marketing, o povo português acabou por aceitar a ideia falsa de que os impostos que paga não chegam para sustentar a segurança social... embora cheguem para salvar e recapitalizar, com centenas de milhões de euros, os bancos privados, as empresas socializadas que vão ser privatizadas ao desbarato, os prejuízos das PPP, etc.

A privatização de sectores estratégicos não é uma moda inaugurada pela Troika – é apenas a recta final duma tendência neoliberal posta em marcha por sucessivos governos neoliberais PS-PSD.

Aliás, o problema da economia portuguesa (independentemente do seu estado anterior) começa com as negociações para a adesão à União Europeia. Recordemos que se hoje temos o sector produtivo primário e secundário moribundo e uma pronunciada falta de auto-suficiência alimentar, a situação era bem diferente no início da década de 1980. A UE pagou indemnizações ridículas para que a frota de pesca fosse queimada, para que as águas territoriais portuguesas fossem exauridas pela pesca de arrasto estrangeira, para que a agricultura e a agropecuária fossem queimadas, deitadas ao mar, suspensas e substituídas por culturas que não servem a auto-sustentabilidade alimentar mas dão proveito à indústria de transformação multinacional. A entrada de Portugal para a UE está na origem da crise económica e do endividamento; a circunstância da crise económica mundial apenas vem agravar uma situação que já existia.

A UE, desde o início, é responsável pela má redistribuição dos rendimentos, pela transferência de recursos e capitais da Periferia para o Centro, e pela protecção neoliberal da finança à custa dos trabalhadores.

As falsas soluções para a crise da dívida

Vários sectores políticos portugueses, alguns deles ditos de oposição parlamentar e governativa, advogam a reestruturação da dívida, ou a renegociação da dívida, ou a realização de um referendo popular para a realização de uma auditoria institucional. Todas estas propostas constituem falsas alternativas à crise da dívida.

Em primeiro lugar, pedir aos actuais poderes políticos que renegoceiem, reestruturem ou auditem a dívida actual e os acordos com a Troika é o mesmo que pedir a um juiz que julgue em causa própria – foram eles que puseram em marcha todas as políticas neoliberais agora reforçadas e aceleradas pela Troika; foram eles que negociaram e assinaram os acordos de endividamento; estariam a condenar-se a si mesmos ao calaboiço, se expusessem a ilegitimidade da dívida e a incapacidade óbvia de a reembolsar.

Em segundo lugar, é preciso termos presente que a reestruturação ou renegociação da dívida por governos submissos acarretou sempre, em todos os países do Mundo, um reforço da espiral de endividamento e um agravamento das condições de vida da população.

Por fim, é preciso ter presente que a médio e longo prazo o problema não se resolve alterando prazos de pagamento ou taxas de juro – é necessária uma política totalmente diferente, que ponha o interesse das populações, a justiça fiscal e participação democrática dos cidadãos acima das considerações de ordem económica. Caso contrário, o problema repete-se, com uma crise da dívida a seguir a outra crise da dívida.

A necessidade de investigar a dívida

A única proposta que pode ajudar a inverter a espiral de endividamento é uma investigação da dívida levada a cabo pelos cidadãos (também chamada auditoria cidadã). Esta solução, se for baseada numa ampla movimentação social, é a única forma de obrigar os poderes públicos a arrepiarem o caminho que vêm seguindo desde a década de 1980.

A auditoria cidadã consiste basicamente em fazer três perguntas que irão nortear uma investigação da dívida e do processo de endividamento:
  • quanto devemos?
  • a quem devemos?
  • porque devemos?
As duas primeiras perguntas são eminentemente técnicas, mas a terceira (a mais importante no presente e na prevenção do futuro) tem consequências políticas; implica, nomeadamente, investigar onde foram aplicados os montantes dos empréstimos. A investigação não deve pressupor conclusões de qualquer espécie – esta é uma condição necessária para que a auditoria cidadã se torne um instrumento agregador de todos os movimentos e forças sociais indignados com a situação actual, independentemente dos seus interesses sectoriais ou da sua agenda política.

O processo de endividamento ao longo dos anos tem-se mantido numa obscuridade antidemocrática. A auditoria cidadã torna-se por isso um instrumento privilegiado de reposição da vida democrática. Em última análise, o défice financeiro resulta do défice democrático. Só a participação dos cidadãos na investigação do processo de endividamento pode garantir boas soluções futuras.
Mas mesmo isto não basta para garantir soluções que não nos remetam ao ponto de partida. É necessário reivindicar uma Europa diferente – equitativa, democrática, transparente, solidária. A manutenção de uma Europa a dois tempos, com um Centro que domina e explora de forma bárbara os países da Periferia, não constitui qualquer espécie de progresso, mas sim uma escravatura.


[Nota 1: Na página electrónica do Rossio Contra a Dívida pode ser descarregado um manual para a investigação da dívida. À data de publicação deste texto o manual encontra-se ainda em fase de rascunho, aguardando a colaboração de especialistas das diversas áreas para se tornar um instrumento de trabalho completo e acabado. No entanto encontra-se desde já à disposição do público e aberto a comentários e colaborações.]

[Nota 2: na realidade existem dois documentos assinados pelo Governo português, correspondentes aos acordos com o FMI e a Troika:


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