23/02/13

O grande mito da casa própria

[actualizado em  25-02-2013]

O INE (Instituto Nacional de Estatística) publicou recentemente «Parque Habitacional em Portugal: Evolução na Última Década». Este resumo dos dados recolhidos sobre habitação criou a ideia de que a larga maioria dos portugueses possui casa própria. No nosso entender, trata-se de um mito sustentado numa leitura incorrecta dos dados estatísticos disponíveis. O mito perde a inocência ao ser utilizado como prova da melhoria de vida duma certa camada da população trabalhadora e dos benefícios da concessão alargada de crédito por parte dos bancos.

Comecemos por olhar para a expressão gráfica do mito:



Dum lado teríamos 73% de casas utilizadas pelos proprietários das mesmas; do outro, 27% casas habitadas por famílias que não detêm a propriedade da casa que habitam (somadas a uma série de casos residuais: barracas, habitações em regime cooperativo, etc.). A equação parece simples. No entanto esconde uma série de armadilhas. [1]


Ao olharmos para os dados estatísticos temos de escolher uma perspectiva, um foco, senão tudo não passa de um amontoado sem significado. Onde pretendemos focar o olhar? Interessa-nosa habitação enquanto necessidade básica e prioritária de toda a população. Além disso, a estatística da habitação pode ser um meio para perceber outro eixo fundamental da sociedade: como são repartidos os recursos, a riqueza produzida e as soluções para a resolução das necessidades básicas da população? Esta perspectiva não é facilitada pela forma e pela metodologia do Censo-2011. Apesar desta limitação, vamos tentar formar um retrato da realidade.

Olhando melhor para os dados que sustentam o gráfico, verificamos que nos 73% de casas ocupadas pelos proprietários estão incluídas as casas de habitação principal (o local de residência permanente do utente) e as casas de habitação secundária (casas de férias, casas de campo herdadas dos avós, casas particulares abandonadas, apartamentos no Algarve utilizados um mês por ano, etc.). Por outras palavras, o gráfico acima compara duas categorias distintas: 1) habitações que não produzem um rendimento (n.º); 2) pessoas ou famílias não proprietárias da casa onde habitam (n.º). Esta comparação entre duas categorias qualitativamente diferentes é uma operação proibida pelas leis da lógica. O que o gráfico nos diz de facto não é que 73% dos portugueses possuem casa, mas sim que 73% das casas em nome individual são um capital que não produz renda e é utilizado por um número indeterminado de pessoas.

O gráfico apenas permite conclusões básicas do tipo: se eu tenho 4 casas e tu tens zero, então em média cada português tem 2 casas. Podemos fazer o mesmo exercício estéril com o dinheiro, as fábricas, os carros, o acesso à educação, o acesso à saúde, etc. – e de facto ainda há quem o faça... –, mas isso não nos dá uma imagem da realidade social.

Antes de prosseguirmos temos também de considerar que o que nos interessa (e o pano de fundo da argumentação proposta por quem defende o gráfico inicial) é a relação proprietários/desapossados – ou, se preferem, a capacidade (ou não) de uma certa camada da população aceder à propriedade (neste caso imobiliária). Por consequência temos de notar que:
  1. É altamente improvável que uma família que apenas obtém rendimentos provenientes da venda da sua força de trabalho consiga comprar várias casas. Portanto a primeira coisa a fazer será retirar da equação as habitações secundárias.
  2. Segundo um estudo de Vítor Neves,[2] a maioria das pessoas (64%) que comprou casa não recorreu ao crédito bancário. Então, se a pessoa ou respectiva família tinham rendimentos próprios suficientes (não de trabalho, obviamente) que podiam ser libertados para a aquisição de propriedade, esses casos não podem fazer parte do universo proposto – devem ser retirados da equação.
  3. O prazo típico de amortização dum empréstimo para compra de casa é de 25 anos [3] [Vítor Neves, id.]. Como excluir aproximadamente os restantes? (aqueles que compraram casa sem precisarem de beneficiar do acesso a crédito bancário por via da melhoria de rendimentos do trabalho) – excluindo todos os que não têm actualmente encargos com a compra de casa. Este expediente é grosseiro, mas parece ser o único possível face à carestia de dados estatísticos.

O resultado desta nova equação é surpreendente, pois inverte o gráfico inicial:



Ainda que haja aqui uma grande margem de erro, encontramo-nos muito longe do mito segundo o qual a esmagadora maioria dos portugueses é proprietária da casa onde habita. É claro que esse cenário de casa própria é mais provável fora dos grandes centros urbanos – mas não é aí que encontramos a maioria da população.

O incentivo à aquisição de casa e o abandono duma política social de habitação

Após 1980, a política social de habitação foi abandonada de vez em Portugal. O estado-providência, em vez de gizar um plano de resposta a uma necessidade fundamental das populações – a habitação –, optou por favorecer a banca, as sociedades financeiras e os construtores civis, encorajando os trabalhadores a comprarem casa. Esta opção implicou induzir o hábito da escravidão ao crédito e, mais importante ainda, o hábito de encarar a resolução das necessidades fundamentais da generalidade da população como um problema estritamente individual e não como uma responsabilidade colectiva.



A evolução da relação com/sem encargos resulta mais óbvia nesta versão gráfica:



Parece evidente que o ponto de viragem é o decénio de 1981-1990. A partir de 1991-1995 a maioria dos proprietários passa a ter encargos (dívidas às instituições financeiras).
Para convencer os desapossados a endividar-se, e contrariando uma tradição de muitas gerações de pé-de-meia e casa arrendada, foram necessárias várias condições:
  1. Criar a ilusão momentânea de que saía mais barato comprar casa do que alugar. Para isso os bancos simularam, numa primeira fase, condições óptimas de acesso ao crédito. Em 2011, porém, os escalões de encargos mensais mais frequentes já se situava entre os 400€ e os 650€ [ver Censo-2011, tabela Q3.21]; estes valores são aproximadamente iguais ou superiores aos escalões de renda mais frequentes.[4]
  2. Esconder as casas desocupadas e registadas em regime de arrendamento. Em Lisboa, por exemplo, durante cerca de uma década foi difícil encontrar casas para alugar na cidade; seguiu-se uma debandada para a periferia e a população citadina ficou reduzida a menos de 60% da registada em 1960.[5]
  3. Subir o valor das rendas, de forma a tornar o crédito bancário comparativamente atraente.
  4. Criar o mito de que já «toda a gente» tinha optado pela solução mais «lógica» e «barata» (comprar casa), pressionando assim os resistentes e os hesitantes.
É interessante observar a evolução da construção de casas para alugar, casas para vender e edifícios institucionais.




São evidentes dois grandes pontos de viragem: 1) a partir de 1991-1995 o número de casas para venda ultrapassa o número de casas para arrendamento; no mesmo período a categoria «outros» cai a pique [6]; 2) a partir do período de 2001-2005 (vésperas da crise financeira mundial) as casas construídas para venda ultrapassam tudo e todos, incluindo o património institucional. Não deixa de ser curioso pôr ao lado deste gráfico o seguinte, que nos dá o número de contratos de arrendamento por épocas:




Não sendo possível analisar as épocas de contrato de compra e celebração de contratos de crédito para habitação (o Censo-2011 não fornece esses dados), temos de construir uma ideia grosseira sobre as vagas de compra de casa através dos dados sobre o volume de construção para venda, como mostrámos mais acima, e moldar intuitivamente uma ideia em função do gráfico de arrendamentos. Nada nos garante que haja uma correlação firme entre as variáveis (construção, venda e arrendamento) – mas o gráfico de contratos de arrendamento por épocas parece apontar para a utilização recente das habitações construídas como fonte de renda, e não para usufruto individual.
Para além de todas as dúvidas que nos deixa o vazio na recolha de certo tipo de dados pelo Censo-2011 e a sua estranha metodologia, uma coisa resulta evidente: tarde ou cedo a questão da habitação terá de ser posta no único terreno que faz sentido e da única forma que pode produzir uma solução razoável para as necessidades das populações a longo prazo – a adopção de uma política social de habitação; o abandono das soluções individuais e baseadas no reforço da desigualdade de distribuição da propriedade e dos meios de subsistência.
Não cremos, porém, que seja possível introduzir essa questão nas políticas governativas sem resolver outra: a regulamentação e limitação draconiana do sector financeiro, de preferência com sua sujeição ao controle colectivo – ou seja, com a socialização da banca.



Notas e referências

[1] Os dados fornecidos on-line pelo INE não permitem analisar certos aspectos da realidade. Apenas dispomos da nossa percepção para avaliar esses factores, por isso teremos de ignorar neste artigo o seu peso na realidade social. Assim, por exemplo, não nos parece que estejam contemplados na recolha estatística do INE os milhares de estudantes e emigrantes que nos centros urbanos habitam alojamentos sem contrato; nem os investidores que compram prédios inteiros para alugar apartamentos a essas pessoas; nem uma boa parte das habitações «não clássicas» (barracas e quejandos, que o INE afirma serem apenas cerca de 6500); nem boa parte das gentes sem abrigo (apenas 696, segundo o INE); etc.

[2] Vítor Neves, «O ENDIVIDAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO PRÓPRIA PERMANENTE: uma análise exploratória do Inquérito ao Património e Endividamento das Famílias 1994 - 1998», site do INE, s/d (2012?) – «Dos 5536 a.d.p.s proprietários inquiridos pelo IPEF94 apenas 1982 (35.8%) afirmaram ter recorrido ao crédito para aquisição da sua residência habitual. Trata-se de uma percentagem relativamente baixa tendo em atenção tratar-se de um investimento num bem com grande durabilidade e com um valor geralmente elevado relativamente aos níveis médios de rendimento das famílias. Mas alguma cautela deve ser posta na leitura deste valor já que não é tido em conta o peso da habitação própria acedida por herança ou doação, informação que não foi colhida pelo IPEF94.» «Na impossibilidade de relacionar o recurso ao crédito com o ano de aquisição do alojamento (não inquirido pelo IPEF94), considere-se o período de construção como proxy.».

[3] Vítor Neves, id. – «O prazo de amortização mais frequentemente contratado nos empréstimos contraídos junto das instituições financeiras, de acordo com os dados do inquérito, é de 25 anos, sendo também esse o prazo mediano.»

[5] O relatório do INE permite desfazer outro mito, segundo o qual a maioria dos arrendatários em Portugal beneficiaria de rendas inferiores a 50€. Este mito, tão pouco inocente como o que aqui tratamos, sustentou durante décadas posicionamentos políticos e governativos completamente alheios à realidade.

[5] 1960: 802.230; 2010: 469.509 (58,53%) – consultar Maria João Valente Rosa, «Notas sobre a população – Lisboa: Área Metropolitana e cidade», Análise Social, vol. XXXIV (153), 2000; e: INE, base de dados.

[6] Na ausência de dados cruzados acerca desta queda, pomos a hipótese de estes números reflectirem o período de venda ao desbarato do património institucional e estatal.


Censo-2011, INE, resultados definitivos.

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