05/03/13

Ofensiva e defensiva - o lugar do poder


Uma esforçada tentativa de apontar o essencial e descartar o acessório na intervenção militante. Uma demanda da fonte de todo o poder, do ponto de vista revolucionário. Um texto afável dedicado aos companheiros de estrada obcecados pelo determinismo e pela compreensão cartesiana das coisas.

[actualizado em 9/3/2013]

Ainda que seja recuada e defensiva do ponto de vista das classes trabalhadoras, a situação política actual reflecte uma acção ofensiva, até agora vitoriosa, das classes dominantes. É uma situação radical – embora em sentido oposto àquele que gostaríamos de ver.

Saímos de uma situação morna, estagnada, de entendimento ou consentimento mútuo entre classes oponentes, para uma situação de guerra aberta de classes. A situação anterior, vulgarmente designada «concertação social», foi sustentável durante várias décadas graças a um relativo conforto (face às condições anteriores) de largos sectores da classe trabalhadora.

Do ponto de vista de vários sectores dos trabalhadores (pouco visíveis para quem não gosta de se passear ao domingo nos «feios» bairros suburbanos de Lisboa, por exemplo), pouco mudou. A fome continua a ser uma sensação tão desagradável como dantes; o desempregado continua deprimido, revoltado e marginal como dantes; a cultura nas suas mais variadas e refinadas expressões continua a ser uma ficção tão longínqua como dantes; o apoio social aos mais desfavorecidos continua tão minguado como sempre, ou quase. O que mais mudou, de facto, foi a circunstância de muitos sectores das classes trabalhadoras terciárias e duas das suas gerações começarem a aprender o que é tudo isso na vida real. Daí algum protesto, algum desconforto, alguma indignação.

Quando o óbvio salta à vista

Numa situação radical de guerra de classes, algumas coisas que não eram óbvias começam a vir ao lume da inteligência – a má distribuição dos rendimentos começa a adquirir contornos claros; a divisão da sociedade entre classes dominantes e dominadas começa a saltar à vista; a incapacidade dos partidos reformistas para defenderem os interesses dos trabalhadores começa a tornar-se obscena aos olhos dos observadores mais atentos. Por fim, a questão da construção do poder e da direcção revolucionária coloca-se com uma premência inusitada e irrompe no seio dos meios militantes com pretensões revolucionárias.

Graças à radicalização da luta de classes, os parcos instrumentos de luta política preexistentes começam a revelar a sua inadequação a uma luta que envolve agora a generalidade das classes trabalhadoras. Os sindicatos mostram-se insuficientes para dar resposta ao conjunto de problemas laborais. Os partidos da esquerda mostram-se desorientados perante a diversidade de solicitações e frentes de luta, bem como perante o facto, agora tornado evidente, de os seus posicionamentos institucionais serem totalmente inadequados à fase actual da luta de classes e apenas poderem subsistir bloqueando as novas frentes de acção.

A dificuldade destes partidos e sindicatos em encontrarem uma resposta adequada é reforçada pelo facto de ambos se terem desligado de um certo tipo de trabalho e de acção sem os quais a questão do poder não pode ser colocada.

A questão do poder e da direcção

A questão do poder e da direcção é perfeitamente ilustrada através da imagem do veículo móvel, quer ele caminhe por terra, água ou ar. Nele encontramos dois mecanismos essenciais ao seu funcionamento: o motor e o sistema de direcção. Tudo o resto, por mais interessante e confortável que possa ser (os bancos, a carroçaria, a suspensão, etc.), é secundário.

A forma como os militantes e as organizações partidárias olham para esta dualidade (direcção-motor) depende inteiramente das suas raízes ideológicas e organizativas. Alguns (a maioria) tendem a achar que a questão fundamental é a direcção. Não estranha por isso que na maioria dos casos os vejamos agarrados ao volante, girando-o freneticamente para um lado e para o outro, sem no entanto saírem do mesmo lugar, porque ninguém se lembrou de pôr o motor em marcha.

Inversamente, escusado seria dizê-lo, um motor a funcionar a todo o gás mas sem direcção pode muito bem acabar correndo na direcção oposta à que seria desejável. Igualmente evidente é que alguém tem de pôr o motor em andamento – e geralmente (embora não forçosamente) haverá de ser quem esteja ao volante.

A maioria dos militantes políticos tende a entroncar numa tradição que os leva a pôr constantemente uma série de perguntas (que eles julgam essenciais) acerca da maneira como se constrói a direcção, o motor, e muitas outras miudezas analíticas e cartesianas – esquecendo-se (ou até tendo um medo pânico) de pôr o motor em marcha.

É claro que esta imagem, como todas, pode ser muito útil para ajudar a compreender a realidade posta diante dos nossos olhos, mas não deve jamais ser confundida com a realidade propriamente dita.

A maioria dos militantes de raiz marxista detesta a política explicada por imagens. De facto, as imagens exigem uma imaginação fértil e bem treinada, coisa pouco comum entre eles. Mas, por ironia do destino, actuam precisamente como alguém que se tivesse agarrado com unhas e dentes à imagem das coisas, virando as costas à realidade e perguntando-se a todo o instante – com uma obsessão patologicamente analítica, cartesiana, determinista – como é construída a direcção, como funcionam as peças do motor, pondo toda a espécie de dúvidas paralisantes e recusando fazer a coisa mais razoável, a única que permite compreender tudo: ligar a máquina.


Something old, something new: the power engine

Mas o que é esta máquina, na vida real? Aqui, mais uma vez, a resposta depende inteiramente não só das origens de classe de cada um, mas sobretudo das suas origens organizativas e ideológicas.

Para os militantes nascidos de uma longa estirpe marxista, ou leninista, ou maoista, ou trotskista, ou de qualquer outra disponível nas vastas prateleiras do supermercado ideológico, pronta a ser metida no microondas e mastigada, para estes a máquina (the power engine, expressão inglesa que revela de forma certeira o fundo do problema, por pôr em jogo precisamente a questão do poder) confunde-se com as instituições – sejam elas estatais, políticas, organizativas, etc. Ora as instituições não passam duma manifestação superstrutural das condições materiais em que vivemos. Aparentemente não deveria ser difícil deduzir que quem quer construir uma sociedade nova (materialmente nova) não pode confiar nas instituições existentes, porque elas, a mais de serem uma manifestação superstrutural, são também um mecanismo de perpetuação ideológica (um conceito bastante esquivo ao entendimento dos militantes tradicionais de esquerda e que talvez possa ser debatido noutro passo). Confiar nas instituições existentes torna-se um berbicacho impossível de resolver, porque elas revertem para o status quo. Quando examinamos a questão dos órgãos do poder vigente (governo, parlamento, tribunais, etc.), esta realidade pode começar a tornar-se evidente mesmo para alguns dos militantes mais conservadores ou reformistas. Mas quando se trata de outros campos (incluindo o da própria organização revolucionária), a teimosia nas velhas fórmulas é extremamente difícil de vencer – a velha máquina do poder ideológico sabe muito bem como autoperpetuar-se.

Para os militantes que não entroncam nessa tradição organizativa, pelo contrário, a localização da power engine, ou seja do novo poder que se quer construir, é clara como água e fora de qualquer dúvida: o poder são as classes trabalhadoras – não em abstracto, não por intermediação orgânica, não por extrapolação conceptual, mas na carne e no osso dos próprios trabalhadores, no seu dia-a-dia, nos seus locais de trabalho, nos bairros onde habitam, nos quartéis onde prestam serviço militar, nas escolas onde estudam, nos hospitais onde atendem os doentes. Para estes militantes não restam quaisquer dúvidas sobre o lugar onde se situa a máquina que tudo faz mover, onde reside a semente do novo poder, a quem irá ele servir. O problema de alguns destes militantes, porém, está em não atenderem por vezes à importância da direcção; nem à necessidade de que alguém ponha o motor em marcha.

A carne e o osso dos trabalhadores, dizia eu. E o que é isso? São os próprios trabalhadores, em pessoa, sem intermediários, a tomarem conta do banco onde servem ao balcão, da organização do bairro onde habitam, dos espaços públicos, dos métodos de recolha do lixo, da fábrica abandonada pelo patrão que deixou de achar interessante a taxa de lucro que de lá extraía, da escola pública onde ensinam e aprendem, essa escola onde ainda há bem pouco tempo as decisões eram tomadas por mútua deliberação dos seus utentes e funcionários. Que as decisões aí tomadas o sejam por braço no ar ou de mãos nos bolsos, por maioria simples, absoluta ou consenso, é absolutamente irrelevante, ao contrário do que pregam certos puristas da democracia. Aliás, quando entregues a si mesmas, as pessoas encontram sempre os métodos mais eficazes para defenderem os seus próprios interesses, em conformidade com as circunstâncias. Isso mesmo se provou durante a brevíssima experiência de 1975, imediatamente antes do golpe militar de 25 de Novembro que nos levaria ao estado sedado da democracia formal e da concertação social, quando algumas assembleias populares (chamem-lhes sovietes, se quiserem) na região da Grande Lisboa deitaram mãos à resolução dos seus próprios problemas. A rapidez e eficácia com que conseguiram fazê-lo nalguns casos (sobretudo nos casos em que os controleiros partidários não tiveram força para interferir demasiado no processo) foi absolutamente estonteante. O que parecia difícil de executar tornou-se desconcertantemente fácil; o que parecia tecnicamente insolúvel adquiriu uma simplicidade ao alcance dos numerosos analfabetos então ainda existentes; o que parecia apenas acessível aos poderosos revelou-se penetrável por todas as pessoas no exercício directo do seu poder; o que pareciam antagonismos impossíveis de consensualizar revelou-se de um bizantinismo insignificante, dirimido na resolução elementar das necessidades básicas. Durante essa brevíssima experiência terminada pela força das armas e da traição reformista, vi muitas vezes os operários da construção civil, depois de construírem o seu próprio bairro, abrirem a boca de espanto: «Afinal nós somos capazes!». O mais belo desta frase atónita está na etimologia da palavra «capaz» – o potencial (a capacidade, o cabaz) de um corpo por ora vazio que é o poder popular, esse motor à espera de ser alimentado e posto em marcha.

O lugar da criatividade política

Para um artista de vanguarda, algumas coisas são tão evidentes, que acabam por nunca ser mencionadas – ninguém precisa de recapitular em voz alta toda a tabuada dos 9 para fazer uma simples conta de somar. Entre essas coisas essenciais e evidentes, encontra-se a necessidade de correr riscos e fazer experiências.

Para o cidadão comum, ambas as coisas tendem a ser repelentes. O risco é atemorizante. A experimentação anula todas as garantias estabelecidas. O cidadão comum é, por natureza e por muito que nos custe dizê-lo, a matriz de todo o conservadorismo. O conservadorismo não é um comportamento compulsivamente imposto pela força da lei e das armas, nem depende da condição ou da origem de classe. A máquina do poder ideológico é universal e transversal a toda a sociedade; todo o cidadão moderno, antes mesmo de aspirar a um upgrade de classe, já aspira participar na instituição do poder ideológico (através da escola e de outros mecanismos afins).

É aqui que entra em jogo a direcção. Se não for a direcção a arriscar novos caminhos, the power engine optará pelo traçado mais conhecido, aquele em que as rodas de todos os veículos anteriores já cavaram um sulco tão fundo no terreno de luta, que podemos tirar as mãos do volante e deixar a viatura correr seu caminho. Por isso, de vez em quando, alguém tem de agarrar com força o volante e impelir alguma reorientação experimental à revelia dos percursos tradicionais.

Uma direcção sem imaginação e sem o sentido do risco não é uma direcção – é um sulco profundamente cavado em velhos caminhos. Muitas vezes, evidentemente, os riscos e a experimentação dão para o torto. A maioria das pessoas ficaria chocada se fosse espreitar no caixote do lixo dos artistas de vanguarda, daqueles que nos espantam pela genialidade da sua obra, e visse o que está lá dentro – não só encontraria uma quantidade de porcarias, mas até a maior parte do trabalho. Mas a questão essencial é esta: se não estiver disposta a propor riscos e experiências, então a direcção não tem qualquer sentido, não faz falta nenhuma – a viatura segue o seu curso miraculosamente na ausência de toda e qualquer direcção.

Um acontecimento inesperado

A actual era política contém um montão de acontecimentos inesperados aos quais devemos prestar toda a atenção. E quando digo toda a atenção, digo-o solenemente, sob pena de passarmos ao lado de tudo o que de fundamental pudesse vir a acontecer.

Um dos primeiros acontecimentos inesperados, suscitados pela confluência dos mais diversos acontecimentos dispersos (desde as revoltas no Norte de África até às manifestações de Lisboa), foi a constituição de acampamentos e assembleias populares em Espanha e noutros lugares do mundo. As pessoas descobriram que podiam juntar-se, discutir ideias e partir para a acção conjunta, mesmo quando … não está em curso uma revolução! – um facto elementar que os partidos ditos «revolucionários» tinham esquecido. Na sua inocência política, estas pessoas acreditam mesmo que inventaram a roda e que puseram em marcha um veículo nunca visto. A esta hora Bertold Brecht deve estar a rir-se a bandeiras despregadas na tumba e a dizer: «Estes tipos são tolos, mas deixá-los, ainda bem que acordaram».

Chama-se a isto pôr o motor em marcha. Aparentemente corre sem direcção, à toa, por vezes às voltas sobre si mesmo. Mas corre. O passo seguinte foram as acções solidárias contra os despejos, o grito contra a dívida, a ocupação de hospitais, clínicas e escolas, os ataques físicos e organizados contra os bancos…
Nada disto constitui ainda uma vitória definitiva e mensurável pelas estatísticas da ONU, do Eurostat e da OCDE... Mas de facto já é uma vitória – pôr um motor em marcha, para quem não percebe nada de mecânica, é uma conquista do outro mundo. Nada disto é ainda um contrapoder. Não estamos ainda em período pré-revolucionário. Mas não será já um germe de duplicidade de poder? – sê-lo-á precisamente no momento em que as massas envolvidas se derem conta de que podem constituir um poder alternativo em disputa com o poder instituído – nunca antes disso.

Mas o que eu realmente considero inesperado não são estes actos em si mesmos (que alguém obsessivamente determinista poderia argumentar serem o resultado natural de um conjunto de circunstâncias políticas como as referidas acima), mas sim o facto de, numa época de recuo defensivo em que não se registam vitórias notáveis e permanentes das classes trabalhadoras, alguém ter inventado ou posto em marcha um método que acrescenta a uma posição recuada um conjunto de atributos potencialmente avançados – a construção de novas formas de poder em gérmen. O tipo de germe ofensivo contido na actual posição defensiva é o grande dado novo sem o qual não conseguiremos perceber patavina do que se está a passar.


A posição das direcções sindicais perante as novas formas de luta

As direcções das correntes sindicais dominantes, com toda a sua carga burocrática, hierárquica e divórcio das bases, começaram por fugir das novas formas de luta popular como o diabo da cruz. Esperavam – aliás à semelhança dos partidos reformistas – poder aguardar calmamente que a coisa morresse por si. A questão, porém, é que os movimentos sociais não só não morreram por si mesmos, como cresceram, encontraram novas formas de acção mais adequadas aos problemas da população e por fim começaram a roubar, pelo menos em parte, as bases de sustentação dos sindicatos e partidos – não só a base potencial, mas até uma pequena fracção da base efectiva.

Perante esta ameaça, as direcções sindicais começaram timidamente a aproximar-se dos movimentos sociais. É certo que a sua intenção passa mais pelo controle e bloqueio do que por «alinharem» na movimentação social. Mas o simples facto de terem sido obrigados a aproximar-se constitui em si mesmo uma vitória das classes trabalhadoras contra os seus próprios dirigentes reformistas ou traidores.

Em Portugal, no entanto, o movimento encontra-se numa fase muito mais recuada do que em Espanha, por exemplo. Os sindicatos e os partidos da esquerda portuguesa continuam a conseguir impor parcialmente a sua estratégia de bloqueio das novas formas de luta efectiva. O derrube desta muralha apenas depende duma coisa: a dinâmica das forças populares e dos movimentos cívicos – the power engine.

Portugal é também um dos poucos países onde não existem correntes sindicais «independentes» (leia-se: livres do controle partidário estrito). Ao contrário da Espanha, da França, da Grécia e de outros países europeus, não encontramos aqui aglomerados sindicais independentes – apenas um ou outro sindicato independente, estritamente local ou sectorial. Esta ausência torna mais lenta a agudização das contradições internas e o avanço para novas formas de luta. Esta é talvez a característica mais marcante da situação das classes trabalhadores portuguesas, quando comparada com a de outros países.

A propósito da posição dos sindicatos face aos movimentos sociais, convém recordar que os sindicatos estão em grande parte desadaptados das presentes condições sociais, políticas e económicas. Por outras palavras, não souberam: 1) alimentar a fonte da sua força inicial; 2) adaptar-se às mudanças contemporâneas.

Em certos sectores, o sindicato organizado à moda antiga ainda funciona. Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que a maioria dos trabalhadores do sector tenha garantias contratuais, não seja precária, não seja móvel (nem geograficamente nem profissionalmente), não trabalhe por subcontrato (trabalhadores independentes, subcontratados, obrigados a trabalhar como empresários em nome individual, etc.) e herde de uma tradição sindicalista que, embora possa estar reduzida a zero na prática concreta, ainda subsiste ideologicamente. Os sindicatos assistiram de braços cruzados a mudanças sociais, políticas e económicas gigantescas. Estas mudanças, paulatinamente instaladas ao longo de várias décadas, exigem novas formas de organização e luta. Creio, e não tenho receio de dizê-lo, que o imobilismo sindical resulta mais duma estupidez militante do que da vontade de manter um status de poder e hierárquico – as direcções dos sindicatos apenas teriam ganho em evoluir com as mudanças materiais da sociedade.

Nas áreas de trabalho em que estas condições não se verificam, os sindicatos constituem hoje meros espantalhos de palha. Carecem de uma massa de associados (qual é o trabalhador precário que se arrisca a sindicalizar-se?), já mataram o trabalho de base há 4 décadas, provavelmente estão à rasca de fundos, têm nas suas direcções um parque de dinossauros que anda a apanhar bonés e não consegue perceber nada do que se passa à sua volta. Adivinha-se que até os representantes do capital já perceberam que os sindicatos nada representam há muito tempo – e portanto não têm qualquer poder negocial. A única razão de subsistirem no seu estado actual deve-se a uma pequena subtileza política: se as classes dominantes fingirem que ainda acreditam no poder negocial dos sindicatos, conseguirão perpetuar por mais algum tempo o seu efeito dissuasor e pacificador. Assim que as classes dominantes concluírem que os movimentos sociais passaram a certidão de óbito aos sindicatos, e que estes já nem um efeito pacificador representam, esmagarão os sindicatos e a liberdade sindical com uma brutalidade comparável à dos progrom.

Os sindicatos continuam a fazer todo o sentido em diversos sectores de actividade. A sua destruição nesses sectores acarretaria importantes reveses no movimento popular. O problema precisamente é que em muitos casos eles já não existem a não ser ao nível simbólico e institucional – daí algumas das derrotas recentes das classes trabalhadoras.

Os Indignados – a bela e o monstro

A natureza do movimento dos Indignados (ou seus equivalentes) não é comparável em Portugal e noutros países. Em Espanha e noutras partes do mundo o movimento tem evoluído na natureza e na forma, dando origem a movimentos politicamente profícuos. Teve o mérito em muitos lugares de ajudar a pôr o «motor» em marcha. Directa ou indirectamente, daí nasceram os movimentos de ocupação de hospitais e escolas, os movimentos de solidariedade contra os despejos, etc.

Em Portugal o carácter do movimento não parece ter evoluído significativamente desde a primeira assembleia popular em meados de 2011. Produz pequenas acções pontuais, sobretudo de agitação e propaganda, mas não grandes movimentos de acção e luta, como em Espanha. Alguns dos seus sectores têm dado provas de um carácter sectário – como se verificou recentemente, a propósito da manifestação 2 de Março (2013), mantendo-se à parte (mas aproveitando a boleia para fazer a sua própria manifestação) e atacando na rede digital e nos meios de comunicação social os outros movimentos sociais, sindicais e partidários.

O que melhor caracteriza alguns sectores do movimento português dos Indignados é a origem de classe e o rol de prioridades políticas.

Quanto à origem de classe, sucede-lhes uma coisa semelhante aos demais movimentos sociais e partidários: o movimento tende a ser hegemonizado por pessoas provenientes da fábrica ideológica do sistema – professores, doutores, estudantes de cursos superiores, etc. Esta composição de classe é natural, inevitável – corresponde à actual composição de uma grande parte das classes trabalhadoras e estranho seria que não estivesse presente. Como produtos que são da máquina ideológica e institucional dominante, não só tendem a dominar as assembleias e os grupos de acção, como acham que devem fazê-lo qual cruzados, por vezes com considerável arrogância. Quando assim acontece, tendem a tornar-se uma força de bloqueio à acção.

Quanto ao rol de prioridades políticas, desde o início que elegeram como tarefa prioritária ensinar aos burros portugueses como fazer assembleias, construir os métodos democráticos e tomar decisões por consenso – é a negação da confiança na capacidade inventiva e de acção dos trabalhadores. Esta atitude resulta um pouco estranha, porque opondo-se tenazmente aos grupos que se auto-intitulam de vanguarda, ao mesmo tempo arrogam-se como vanguarda da metodologia democrática.

Condição material, condição de classe e condição ideológica

O aspecto da composição de classe, referido acima, é um dos factores de monta ignorados pelos sindicatos e organizações de esquerda tradicional. Após décadas de analfabetismo e falta de instrução (durante o Estado Novo), a população portuguesa marchou aceleradamente para as escolas e universidades. Os níveis médios de instrução, formação e especialidade são hoje bastante consideráveis em Portugal.

Acontece, porém, que este movimento ascensional da escolarização sucedeu a um período em que se extinguiram as formas alternativas de instrução, tradicionalmente criadas pelas massas trabalhadoras nas suas associações cívicas de bairro e de local de trabalho (locais que hoje, de resto, muitas vezes nem sequer existem, são lugares vazios, em consequência das novas formas de organização do trabalho). De modo que a influência das ideias e opções alternativas não pôde exercer-se nem compensar a acção esmagadora da máquina do poder ideológico perpetuado através da máquina do ensino. Daí resulta que a acção dos elementos supostamente de vanguarda, salvo raras excepções, tende a ser paternalista, ideologicamente autoritária, manipuladora (a vocação principal da máquina ideológica da escola) e conservadora.

Outro factor importante, conforme já foi referido, é a mobilidade profissional – os trabalhadores encontram-se muitas vezes em constante movimento, não só de uma actividade para outra, como de uma região para outra. Os velhos esquemas alternativos de organização e formação tornam-se ineficazes – é preciso inventar outros.

À mobilidade profissional soma-se a incerteza laboral – o estabelecimento de vínculos laborais estáveis ou permanentes é hoje uma raridade; a regra é a precariedade. Este factor introduz vários elementos perversos do ponto de vista da organização sindical, laboral, solidária. O trabalhador médio tem terror de que lhe seja tirado o «retrato» político e ideológico e por isso veste-se de uma neutralidade militante. O hábito tende a fazer o monge – a «neutralidade» aprende-se logo nos bancos de escola e torna-se uma segunda natureza. Para dois trabalhadores separados por centenas de quilómetros de distância e ligados por via duma rede digital, a camaradagem solidária forjada no ombro-a-ombro da cadeia de montagem e na coordenação material do trabalho é uma história de antanho – há que inventar novas formas de solidariedade e coordenação.

Nestas condições, é urgente que os sindicatos e outras formas de organização social repensem o seu papel e inventem novos esquemas. Que criem máquinas de informação e educação alternativas. É isso ou desistir da luta. Nalguns casos é mesmo de considerar a necessidade de recriar uma cultura de clandestinidade, à semelhança dos tempos do fascismo – as motivações são exactamente as mesmas, porque também nesse tempo qualquer erro na manutenção da máscara de neutralidade podia dar origem à impossibilidade permanente de encontrar trabalho (impossibilidade essa por vezes extensível a toda a família). A grande diferença entre as duas épocas reside nos formidáveis meios panópticos à disposição do actual poder político, económico e ideológico, infinitamente superiores aos dos inspectores da polícia política de Salazar.

Mas, como a história demonstra, para todas as capacidades e truques do poder existe sempre uma resposta possível, capaz de contornar as dificuldades, ou de as anular. É desse tipo de criatividade que as organizações revolucionárias têm de dar provas – ou serem varridas da cena política, esperando que de forma espontânea as massas trabalhadoras inventem esses recursos.

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