Nesta série de artigos tento fazer uma primeira
abordagem simplificada à questão do frentismo, criando um modelo
teórico provisório de análise dos movimentos sociais e frentistas.
Este modelo não terá o rigor e a profundidade desejáveis, mas
espera-se que um dia lá cheguemos.
Na sua fase actual, esta série é um work in
progress confrontado nas redes sociais – uma prática, pouco comum em Portugal, que
pretende tirar partido das redes sociais (confrontando
e pondo à prova as ideias
ainda numa
fase de construção)
e que belisca o conceito clássico
(isolacionista e burguês) de
autoria, repondo a
intenção original dos primórdios da rede digital.
[Actualizado em 26/Março/2013.
A versão anterior continha erros graves
que são agora corrigidos,
com reflexos nos textos subsequentes.]
A versão anterior continha erros graves
que são agora corrigidos,
com reflexos nos textos subsequentes.]
1. O que são os movimentos sociais
Antes de atacarmos o tema do frentismo temos de
definir alguns aspectos dos movimentos sociais. Evitamos assim
confusões sobre o carácter dos movimentos frentistas, por duas
razões: 1) as frentes agregam por vezes movimentos sociais
de base e podem confundir-se com eles; 2) embora possuam
naturezas distintas, as frentes e os movimentos sociais de base têm
pontos comuns.
Os movimentos
sociais de
base nascem
de interesses
comuns imediatos1
– caso
das associações culturais
de bairro,
dos
movimentos estudantis, dos
movimentos feministas; etc. Os
interesses em jogo num
movimento basista
têm um carácter
eminentemente material;
resultam
das
condições materiais de vida do grupo social em questão: a
repressão exercida sobre minorias étnicas ou de género, os
problemas de habitação
num bairro,
a estrutura e condições do ensino, as relações laborais, etc.
O seu
objectivo é o de agir sobre
essas condições materiais e transformá-las a seu contento – por
outras palavras, transformar em certa medida a realidade social; daí
a integração genérica na categoria de «movimentos sociais».
A presença
de interesses imediatos comuns
é um
elemento fundamental para
definir a natureza do
movimento social de base.
Assim, por exemplo,
uma assembleia de pessoas provenientes de diversos ambientes sociais
que se reúne para discutir a situação política, ou os métodos de
construção de uma democracia, ou qualquer outro tema
superstrutural, não pode ser considerada um movimento
basista nesta
nossa definição.2
O segundo
elemento decisivo na caracterização dos movimentos sociais é a sua
capacidade de acção sobre a realidade social e vivencial.
É necessário que exista uma
práxis centrada
nos interesses
imediatos comuns,
exercida pelas pessoas directamente interessadas
e independente da divergência
de opiniões e práticas
noutros universos.
Um
movimento de base
dedicado à resolução dos
problemas
de habitação duma comunidade não exige
que todos os seus membros
tenham
uma visão comum sobre as opções de género. Inversamente, para
participar num movimento social dedicado às questões de género não
é preciso existir um entendimento
comum sobre políticas
de habitação. Aliás,
a introdução de questões
alienígenas num
movimento social é a melhor forma de destruir esse movimento.
Por outro lado,
sucede que a necessidade de actuar sobre as condições materiais
vividas gera um certo grau de reflexão e reforça
a consciência de grupo ou de
classe. Os
movimentos de base
garantem
a ligação
à realidade vivida e a
formação da consciência cívica e política. Esta
garantia constitui o único lugar de aferição da teoria política –
e não é raro vermos, dentro
dos movimentos sociais, a
arrogância da teoria política ter de lutar contra a demonstração
dos seus erros,
chegando mesmo ao ponto de desvirtuar o
movimento social para se
validar a si mesma.
Por
vezes os grupos de reflexão e estudo são confundidos com movimentos
de base
– um erro que
os membros desses grupos gostam de cultivar para se atribuírem
um alcance
que não possuem –,
visto que a
organização duma práxis –
ou seja de
acções sobre as condições
materiais do grupo envolvido – está
ausente. Se assim não fosse,
todas as escolas contemporâneas constituiriam movimentos sociais de
base.
2. O que são os movimentos frentistas
Não vou ensaiar neste texto uma definição
rigorosa de frentismo – seria-me-ia necessário muito mais
estudo e reflexão para chegar aí. Mas tenho
poucas dúvidas de que os
textos clássicos
sobre frentismo (onde
encontramos, por exemplo, os
conceitos de frente unida
e de frente popular)
são muito datados
e limitados
pelo contexto político em que foram escritos.3
Entretanto, precisamos de uma
definição aproximada de frente.
Os interesses em
jogo num movimento frentista
já não são materiais e
imediatos, como no movimento basista,
mas sim superstruturais e mediados (ideológicos, programáticos,
etc.). O exemplo clássico é
o da frente antifascista, onde diversas sensibilidades políticas
concordam nas tréguas da luta ideológica para levarem por diante
uma práxis de resistência comum contra
algum tipo de ameaça fascista organizada.
3. Frentes comuns e frentes unívocas ou partidárias4
Uma
análise séria
da movimentação social tem
de distinguir
entre frente comum
e frente unívoca ou partidária.
Muitas vezes
o que começou
por ser construído como frente comum
deriva para
frente unívoca.
A
frente comum (aceito, por agora e com algumas
reservas, a designação alternativa de frente unida) envolve
a ideia de consenso
– ou seja, de uma
sensibilidade comum –
e implica um entendimento
comum. Assim, por exemplo, a indignação contra uma
política austeritária pode
gerar um sentimento comum – e portanto criar condições
frentistas –, ainda que essa indignação encontre diferentes
razões ou interesses em
diferentes pessoas indignadas. Para saber se a frente comum
daí resultante se sustenta ou não, é preciso saber até que ponto
os seus membros são capazes de pôr de parte os seus
desentendimentos de razão
para apostarem nos seus entendimentos de
emoção.5
Se for impossível manter
este consenso, ou
movimento frentista se dissolve, ou é mantido pela força (física,
ideológica, burocrática, etc.) e
neste caso caminha para a sua
fase partidária.
Num movimento
frentista a comunhão de interesses não significa necessariamente
uma identificação material de interesses. Muitas vezes o que existe
é uma coincidência
formal de interesses. Por
exemplo, uma frente comum em que todos os seus membros
coincidem em querer derrubar um governo pode resultar duma
coincidência casual e formal de objectivos, encontrando-se
por detrás dessa coincidência um
conjunto de objectivos finais
diversos – uns querendo causar instabilidade governativa e queda do
poder instituído, outros querendo partilhar (e portanto manter) o
poder instituído.
A primeira
condição
fundamental para manter uma frente comum é a rigorosa definição
dos seus objectivos e da coincidência de interesses. Uma frente
comum que não seja capaz de definir explicitamente os
pontos comuns nunca
chega a existir, do ponto de vista teórico.
A segunda
condição
fundamental que sustenta a frente comum é a paridade. Este
é um dos factores mais difíceis de entender em
ambientes
politicamente imaturos.6
A única forma de manter a coincidência de interesses consiste em
manter a paridade decisória. Foi ela que deu origem à criação da
frente, pois todos os seus
membros decidiram em pé de igualdade, sem constrangimentos,
constituir e participar na frente;
é ela que tem de sustentar a manutenção da frente; o acto de
eliminação da paridade, a qualquer instante, equivale
rigorosamente a passar um
atestado de óbito à frente
comum ou a transformá-la em
frente partidária. A maior
ou menor dificuldade em manter
o princípio da
paridade depende quase
exclusivamente da vontade política
e da tolerância dos
actores presentes na frente comum – não da natureza dos interesses
em jogo.
Em contrapartida,
é natural que numa frente
comum, a cada momento,
uma das pessoas ou correntes presentes hegemonize o pensamento e a
orientação do colectivo.7
A hegemonia contém
em si o conceito de compromisso; não
inviabiliza a frente e o mais
provável é que o pólo hegemónico vá rodando entre os membros
frentistas ao longo do tempo.
Esta rotação é, em si mesma, motor da acção e garante de
paridade.
Numa frente
unívoca ou partidária, pelo contrário, a hegemonia e a paridade já
não são possíveis. O entendimento comum é substituído pelo
interesse de uma das correntes. A
coincidência formal de
interesses é substituída pela ditadura de
um dos interesses em
presença.
As
definições genéricas aqui
propostas não são
inteiramente satisfatórias, mas apesar
de tudo já nos permitem
focar o
olhar sobre a realidade. Muitas
situações designadas como
frente comum
(ou simplesmente frente,
no linguarejar corrente) são
de facto partidárias ou
programáticas. Esta
verificação é possível graças a uma lei geral
da qual se extrai
um instrumento de aferição:
Uma
frente comum
tende a alargar-se; uma frente partidária
tende a estreitar-se.
Embora a
análise
histórica dos fenómenos frentistas
obrigue
ao estudo documental, esta lei, ainda
que aproximativa, fornece-nos
um método muito rápido e expedito de caracterização das frentes.
É certo que o
estreitamento de uma frente ou de um movimento social
pode resultar também da
sua inadequação
face às
carências e anseios da população envolvida. A
ideia de estreitamento deve
aqui ser entendida não
apenas no sentido de
diminuição numérica (até
porque um partido com excedentes de quadros e militantes pode sempre
insuflar
uma frente a seu gosto), mas sim por
uma progressiva cesura, um distanciamento entre as estruturas do
movimento e a sua potencial
base de sustentação, até se chegar ao divórcio total. Quando
um movimento social ou
frentista falha os seus fins,
isso resulta geralmente do
desvio forçado dos seus objectivos, em favor de determinados
interesses programáticos. O
movimento social (ou
a frente comum
na sua expressão mais simples), ao verificar que a sua práxis não
produz os resultados pretendidos, tenderá a corrigi-la.
Esta tendência, no
caso dos movimentos basistas,
resulta dum factor muito poderoso: o conjunto de interesses imediatos
da população envolvida
é
mais forte
do que qualquer outra coisa... ou quase, porque
de facto encontramos duas excepções disruptivas:
1) a incapacidade de compreender os mecanismos intrínsecos dos seus
próprios interesses e os mecanismos
das circunstâncias ou
dos interesses adversos;
2) a existência de forças internas que conseguem fazer prevalecer
interesses programáticos (externos) sobre os interesses imediatos
(internos). A exogenia
programática é o assassino número um dos movimentos sociais e
frentistas.
Para que
bem se compreenda o sentido proposto
na expressão frente
unívoca ou partidária ou programática,
não podemos tomá-la
no seu sentido literal ou
superficial. Pode
existir frente unívoca
sem manifestação evidente de
domínio de um partido –
pode acontecer
que a formação de uma frente anteceda
a formação de um partido correlativo,
baralhando as relações de causa e efeito. Recordemos
que o termo partidária
revela
uma intenção de
partilha do poder, ou de negociação do poder (toda
a organização partidária visa por definição o poder).
Daí que, nalguns casos
recentes, a expressão
(documentalmente confirmada) da intenção renegocial
seja essencial para compreender o carácter partidário ou
programático de alguns
movimentos frentistas.
Uma frente deste tipo
não se coloca
do lado do poder emergente
(o das massas trabalhadoras) mais sim do lado do poder instituído,
seja para se insinuar
ao seu serviço, seja para o regatear.
4. Aspectos peculiares do frentismo
Uma
frente consiste na agregação de diferentes grupos de interesse –
sejam eles outras frentes, movimentos sociais ou organizações
partidárias e políticas. A
questão da práxis no movimento frentista coloca-se duma forma
diferente da que vimos a propósito dos movimentos basistas.
No movimento basista
os interesses do grupo social opõem-se dialecticamente aos
interesses externos, criando uma tensão que impulsiona todas
as formas de acção e
a tomada
de consciência.
Na organização frentista as
tensões externas também existem, naturalmente, mas são
as tensões internas que desempenham o
papel dominante.
A necessidade de conciliar
diferentes grupos de interesse dentro
da frente gera
o carácter da práxis
frentista,
de tal forma que
o mecanismo de apuro
da
consciência de grupo ou de
classe, fortemente
presente no movimento basista,
tende aqui a
desaparecer.
No movimento
frentista a pressão exercida
pela necessidade
de conciliação interna
constitui
uma força dialéctica
capaz de produzir saltos qualitativos no
combate político e programático.
Se
assim não fosse, cada membro da frente, por si só, conseguiria
realizar esses saltos qualitativos, dispensando
o esforço enorme de erguer e manter uma frente.
Se a pressão da
conciliação interna numa
frente comum
não puder ser resolvida num
salto qualitativo, apenas
restam dois caminhos: a dissolução ou a partidarização. Do ponto
de vista prático e histórico, a capacidade de realizar saltos
qualitativos na luta política
é a característica mais
interessante das frentes – pese embora o facto de poucas vezes
podermos observar o fenómeno na
sua inteireza, o que
significa que na maior parte dos casos a frente falha os seus fins e
dissolve-se sem deixar rasto na história. De
facto, como veremos na análise de casos concretos, a noção exacta
do que é o trabalho frentista constitui uma raridade – a maior
parte das actuais correntes políticas da esquerda portuguesa (senão
todas) não faz ideia do que seja uma frente comum,
de como proceder, de como construí-la; não faz ideia da diferença
entre frente comum
e frente partidária.
Formulámos
anteriormente a lei da contracção e expansão dos movimentos
sociais e das frentes: uma
frente comum
tende a alargar-se; uma frente
partidária
tende a estreitar-se.
Esta lei tem ainda outro
corolário: a
paridade e a comunhão
de interesses numa frente
comum é
não só fonte de alargamento da própria frente, mas também, em
muitos casos, uma importante
fonte de
alargamento partidário (ou
seja de arregimentação)
e de aferição actual
da justeza programática.
Por isso o
desenvolvimento do trabalho frentista e a capacidade de o levar a bom
porto constituem
o teste decisivo duma organização
política ou
partidária.
Na secção seguinte tentaremos um breve teste de análise dos princípios gerais
expostos, aplicando-os a alguns casos concretos recentes na cena
portuguesa.
Notas:
1 Nestes textos o termo «imediato» significa sempre «sem mediador».
2 A distinção entre base estrutural e superstrutura é decisiva ao longo de toda esta análise. Por falta de espaço não podemos dissecar aqui este tema, deixando-se o seu esclarecimento a cargo do leitor.
3 Encontramos duas das fontes clássicas sobre o frentismo nos textos de Lenine e Trotsky, entre muitos outros. Duvido que esses textos tenham logrado alcançar conclusões universais – o que não significa que as suas conclusões «locais» não tenham sido úteis a seu tempo.
4 Na primeira versão deste trabalho cometi o erro fatal de chamar «frentes unitárias» às frentes comuns. Esse erro repercutiu-se nos textos subsequentes e teve de ser corrigido. Receio, no entanto, que com as designações «frente comum» e «frente partidária ou unívoca» tenhamos chegado já à melhor formulação possível.
5 A palavra emoção contém em si mesma a noção de moção, ou seja de movimento.
6 Ainda há pouco tempo, num debate de militantes, vi defender a tese de que numa frente é irrecusável que cada grupo tenha um peso decisório (uma quota de voto) proporcional ao seu peso no terreno (número de militantes, etc.) – é a tese parlamentar, o status quo; é, aliás, o mesmo método que vemos aplicar nas direcções do FMI e do Banco Mundial: cada membro tem uma quota de voto proporcional ao capital acumulado. Esta tese mata à partida qualquer propósito de frente comum e transforma-a imediatamente em frente partidária ou unívoca.
7 A hegemonia «rotativa» faz parte da natureza frentista desde a Antiguidade Clássica.
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