18/03/13

Sobre o frentismo (partes 1-4)


Nesta série de artigos tento fazer uma primeira abordagem simplificada à questão do frentismo, criando um modelo teórico provisório de análise dos movimentos sociais e frentistas. Este modelo não terá o rigor e a profundidade desejáveis, mas espera-se que um dia lá cheguemos.

Na sua fase actual, esta série é um work in progress confrontado nas redes sociais – uma prática, pouco comum em Portugal, que pretende tirar partido das redes sociais (confrontando e pondo à prova as ideias ainda numa fase de construção) e que belisca o conceito clássico (isolacionista e burguês) de autoria, repondo a intenção original dos primórdios da rede digital.

[Actualizado em 26/Março/2013.
 A versão anterior continha erros graves
 que são agora corrigidos,
 com reflexos nos textos subsequentes.]


1. O que são os movimentos sociais

Antes de atacarmos o tema do frentismo temos de definir alguns aspectos dos movimentos sociais. Evitamos assim confusões sobre o carácter dos movimentos frentistas, por duas razões: 1) as frentes agregam por vezes movimentos sociais de base e podem confundir-se com eles; 2) embora possuam naturezas distintas, as frentes e os movimentos sociais de base têm pontos comuns.

Os movimentos sociais de base nascem de interesses comuns imediatos1 – caso das associações culturais de bairro, dos movimentos estudantis, dos movimentos feministas; etc. Os interesses em jogo num movimento basista têm um carácter eminentemente material; resultam das condições materiais de vida do grupo social em questão: a repressão exercida sobre minorias étnicas ou de género, os problemas de habitação num bairro, a estrutura e condições do ensino, as relações laborais, etc. O seu objectivo é o de agir sobre essas condições materiais e transformá-las a seu contento – por outras palavras, transformar em certa medida a realidade social; daí a integração genérica na categoria de «movimentos sociais».

A presença de interesses imediatos comuns é um elemento fundamental para definir a natureza do movimento social de base. Assim, por exemplo, uma assembleia de pessoas provenientes de diversos ambientes sociais que se reúne para discutir a situação política, ou os métodos de construção de uma democracia, ou qualquer outro tema superstrutural, não pode ser considerada um movimento basista nesta nossa definição.2

O segundo elemento decisivo na caracterização dos movimentos sociais é a sua capacidade de acção sobre a realidade social e vivencial. É necessário que exista uma práxis centrada nos interesses imediatos comuns, exercida pelas pessoas directamente interessadas e independente da divergência de opiniões e práticas noutros universos.

Um movimento de base dedicado à resolução dos problemas de habitação duma comunidade não exige que todos os seus membros tenham uma visão comum sobre as opções de género. Inversamente, para participar num movimento social dedicado às questões de género não é preciso existir um entendimento comum sobre políticas de habitação. Aliás, a introdução de questões alienígenas num movimento social é a melhor forma de destruir esse movimento.

Por outro lado, sucede que a necessidade de actuar sobre as condições materiais vividas gera um certo grau de reflexão e reforça a consciência de grupo ou de classe. Os movimentos de base garantem a ligação à realidade vivida e a formação da consciência cívica e política. Esta garantia constitui o único lugar de aferição da teoria política – e não é raro vermos, dentro dos movimentos sociais, a arrogância da teoria política ter de lutar contra a demonstração dos seus erros, chegando mesmo ao ponto de desvirtuar o movimento social para se validar a si mesma.

Por vezes os grupos de reflexão e estudo são confundidos com movimentos de base – um erro que os membros desses grupos gostam de cultivar para se atribuírem um alcance que não possuem –, visto que a organização duma práxis – ou seja de acções sobre as condições materiais do grupo envolvido – está ausente. Se assim não fosse, todas as escolas contemporâneas constituiriam movimentos sociais de base.

2. O que são os movimentos frentistas

Não vou ensaiar neste texto uma definição rigorosa de frentismo – seria-me-ia necessário muito mais estudo e reflexão para chegar aí. Mas tenho poucas dúvidas de que os textos clássicos sobre frentismo (onde encontramos, por exemplo, os conceitos de frente unida e de frente popular) são muito datados e limitados pelo contexto político em que foram escritos.3 Entretanto, precisamos de uma definição aproximada de frente.

Os interesses em jogo num movimento frentista já não são materiais e imediatos, como no movimento basista, mas sim superstruturais e mediados (ideológicos, programáticos, etc.). O exemplo clássico é o da frente antifascista, onde diversas sensibilidades políticas concordam nas tréguas da luta ideológica para levarem por diante uma práxis de resistência comum contra algum tipo de ameaça fascista organizada.

3. Frentes comuns e frentes unívocas ou partidárias4

Uma análise séria da movimentação social tem de distinguir entre frente comum e frente unívoca ou partidária. Muitas vezes o que começou por ser construído como frente comum deriva para frente unívoca.
A frente comum (aceito, por agora e com algumas reservas, a designação alternativa de frente unida) envolve a ideia de consenso – ou seja, de uma sensibilidade comum – e implica um entendimento comum. Assim, por exemplo, a indignação contra uma política austeritária pode gerar um sentimento comum – e portanto criar condições frentistas –, ainda que essa indignação encontre diferentes razões ou interesses em diferentes pessoas indignadas. Para saber se a frente comum daí resultante se sustenta ou não, é preciso saber até que ponto os seus membros são capazes de pôr de parte os seus desentendimentos de razão para apostarem nos seus entendimentos de emoção.5 Se for impossível manter este consenso, ou movimento frentista se dissolve, ou é mantido pela força (física, ideológica, burocrática, etc.) e neste caso caminha para a sua fase partidária.

Num movimento frentista a comunhão de interesses não significa necessariamente uma identificação material de interesses. Muitas vezes o que existe é uma coincidência formal de interesses. Por exemplo, uma frente comum em que todos os seus membros coincidem em querer derrubar um governo pode resultar duma coincidência casual e formal de objectivos, encontrando-se por detrás dessa coincidência um conjunto de objectivos finais diversos – uns querendo causar instabilidade governativa e queda do poder instituído, outros querendo partilhar (e portanto manter) o poder instituído.

A primeira condição fundamental para manter uma frente comum é a rigorosa definição dos seus objectivos e da coincidência de interesses. Uma frente comum que não seja capaz de definir explicitamente os pontos comuns nunca chega a existir, do ponto de vista teórico.

A segunda condição fundamental que sustenta a frente comum é a paridade. Este é um dos factores mais difíceis de entender em ambientes politicamente imaturos.6 A única forma de manter a coincidência de interesses consiste em manter a paridade decisória. Foi ela que deu origem à criação da frente, pois todos os seus membros decidiram em pé de igualdade, sem constrangimentos, constituir e participar na frente; é ela que tem de sustentar a manutenção da frente; o acto de eliminação da paridade, a qualquer instante, equivale rigorosamente a passar um atestado de óbito à frente comum ou a transformá-la em frente partidária. A maior ou menor dificuldade em manter o princípio da paridade depende quase exclusivamente da vontade política e da tolerância dos actores presentes na frente comum – não da natureza dos interesses em jogo.

Em contrapartida, é natural que numa frente comum, a cada momento, uma das pessoas ou correntes presentes hegemonize o pensamento e a orientação do colectivo.7 A hegemonia contém em si o conceito de compromisso; não inviabiliza a frente e o mais provável é que o pólo hegemónico vá rodando entre os membros frentistas ao longo do tempo. Esta rotação é, em si mesma, motor da acção e garante de paridade.
Numa frente unívoca ou partidária, pelo contrário, a hegemonia e a paridade já não são possíveis. O entendimento comum é substituído pelo interesse de uma das correntes. A coincidência formal de interesses é substituída pela ditadura de um dos interesses em presença.

As definições genéricas aqui propostas não são inteiramente satisfatórias, mas apesar de tudo já nos permitem focar o olhar sobre a realidade. Muitas situações designadas como frente comum (ou simplesmente frente, no linguarejar corrente) são de facto partidárias ou programáticas. Esta verificação é possível graças a uma lei geral da qual se extrai um instrumento de aferição:

Uma frente comum tende a alargar-se; uma frente partidária tende a estreitar-se.

Embora a análise histórica dos fenómenos frentistas obrigue ao estudo documental, esta lei, ainda que aproximativa, fornece-nos um método muito rápido e expedito de caracterização das frentes.

É certo que o estreitamento de uma frente ou de um movimento social pode resultar também da sua inadequação face às carências e anseios da população envolvida. A ideia de estreitamento deve aqui ser entendida não apenas no sentido de diminuição numérica (até porque um partido com excedentes de quadros e militantes pode sempre insuflar uma frente a seu gosto), mas sim por uma progressiva cesura, um distanciamento entre as estruturas do movimento e a sua potencial base de sustentação, até se chegar ao divórcio total. Quando um movimento social ou frentista falha os seus fins, isso resulta geralmente do desvio forçado dos seus objectivos, em favor de determinados interesses programáticos. O movimento social (ou a frente comum na sua expressão mais simples), ao verificar que a sua práxis não produz os resultados pretendidos, tenderá a corrigi-la. Esta tendência, no caso dos movimentos basistas, resulta dum factor muito poderoso: o conjunto de interesses imediatos da população envolvida é mais forte do que qualquer outra coisa... ou quase, porque de facto encontramos duas excepções disruptivas: 1) a incapacidade de compreender os mecanismos intrínsecos dos seus próprios interesses e os mecanismos das circunstâncias ou dos interesses adversos; 2) a existência de forças internas que conseguem fazer prevalecer interesses programáticos (externos) sobre os interesses imediatos (internos). A exogenia programática é o assassino número um dos movimentos sociais e frentistas.

Para que bem se compreenda o sentido proposto na expressão frente unívoca ou partidária ou programática, não podemos tomá-la no seu sentido literal ou superficial. Pode existir frente unívoca sem manifestação evidente de domínio de um partido – pode acontecer que a formação de uma frente anteceda a formação de um partido correlativo, baralhando as relações de causa e efeito. Recordemos que o termo partidária revela uma intenção de partilha do poder, ou de negociação do poder (toda a organização partidária visa por definição o poder). Daí que, nalguns casos recentes, a expressão (documentalmente confirmada) da intenção renegocial seja essencial para compreender o carácter partidário ou programático de alguns movimentos frentistas. Uma frente deste tipo não se coloca do lado do poder emergente (o das massas trabalhadoras) mais sim do lado do poder instituído, seja para se insinuar ao seu serviço, seja para o regatear.


4. Aspectos peculiares do frentismo

Uma frente consiste na agregação de diferentes grupos de interesse – sejam eles outras frentes, movimentos sociais ou organizações partidárias e políticas. A questão da práxis no movimento frentista coloca-se duma forma diferente da que vimos a propósito dos movimentos basistas. No movimento basista os interesses do grupo social opõem-se dialecticamente aos interesses externos, criando uma tensão que impulsiona todas as formas de acção e a tomada de consciência. Na organização frentista as tensões externas também existem, naturalmente, mas são as tensões internas que desempenham o papel dominante. A necessidade de conciliar diferentes grupos de interesse dentro da frente gera o carácter da práxis frentista, de tal forma que o mecanismo de apuro da consciência de grupo ou de classe, fortemente presente no movimento basista, tende aqui a desaparecer.

No movimento frentista a pressão exercida pela necessidade de conciliação interna constitui uma força dialéctica capaz de produzir saltos qualitativos no combate político e programático. Se assim não fosse, cada membro da frente, por si só, conseguiria realizar esses saltos qualitativos, dispensando o esforço enorme de erguer e manter uma frente.

Se a pressão da conciliação interna numa frente comum não puder ser resolvida num salto qualitativo, apenas restam dois caminhos: a dissolução ou a partidarização. Do ponto de vista prático e histórico, a capacidade de realizar saltos qualitativos na luta política é a característica mais interessante das frentes – pese embora o facto de poucas vezes podermos observar o fenómeno na sua inteireza, o que significa que na maior parte dos casos a frente falha os seus fins e dissolve-se sem deixar rasto na história. De facto, como veremos na análise de casos concretos, a noção exacta do que é o trabalho frentista constitui uma raridade – a maior parte das actuais correntes políticas da esquerda portuguesa (senão todas) não faz ideia do que seja uma frente comum, de como proceder, de como construí-la; não faz ideia da diferença entre frente comum e frente partidária.

Formulámos anteriormente a lei da contracção e expansão dos movimentos sociais e das frentes: uma frente comum tende a alargar-se; uma frente partidária tende a estreitar-se. Esta lei tem ainda outro corolário: a paridade e a comunhão de interesses numa frente comum é não só fonte de alargamento da própria frente, mas também, em muitos casos, uma importante fonte de alargamento partidário (ou seja de arregimentação) e de aferição actual da justeza programática. Por isso o desenvolvimento do trabalho frentista e a capacidade de o levar a bom porto constituem o teste decisivo duma organização política ou partidária.


Na secção seguinte tentaremos um breve teste de análise dos princípios gerais expostos, aplicando-os a alguns casos concretos recentes na cena portuguesa.


Notas:



1 Nestes textos o termo «imediato» significa sempre «sem mediador».

2 A distinção entre base estrutural e superstrutura é decisiva ao longo de toda esta análise. Por falta de espaço não podemos dissecar aqui este tema, deixando-se o seu esclarecimento a cargo do leitor.

3 Encontramos duas das fontes clássicas sobre o frentismo nos textos de Lenine e Trotsky, entre muitos outros. Duvido que esses textos tenham logrado alcançar conclusões universais – o que não significa que as suas conclusões «locais» não tenham sido úteis a seu tempo.

4 Na primeira versão deste trabalho cometi o erro fatal de chamar «frentes unitárias» às frentes comuns. Esse erro repercutiu-se nos textos subsequentes e teve de ser corrigido. Receio, no entanto, que com as designações «frente comum» e «frente partidária ou unívoca» tenhamos chegado já à melhor formulação possível.

5 A palavra emoção contém em si mesma a noção de moção, ou seja de movimento.

6 Ainda há pouco tempo, num debate de militantes, vi defender a tese de que numa frente é irrecusável que cada grupo tenha um peso decisório (uma quota de voto) proporcional ao seu peso no terreno (número de militantes, etc.) – é a tese parlamentar, o status quo; é, aliás, o mesmo método que vemos aplicar nas direcções do FMI e do Banco Mundial: cada membro tem uma quota de voto proporcional ao capital acumulado. Esta tese mata à partida qualquer propósito de frente comum e transforma-a imediatamente em frente partidária ou unívoca.

7 A hegemonia «rotativa» faz parte da natureza frentista desde a Antiguidade Clássica.

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