Depois de estabelecermos um
quadro teórico provisório sobre frentismo e movimentos sociais,
vamos testá-lo em 3 casos concretos. A escolha desses casos não
obedece a outro critério além do razoável conhecimento do autor
deste texto sobre o que lá se passou.
[actualizado em 26/03/2013.
Depois da correcção de alguns erros graves nas secções 1-4,
esta secção teve de ser corrigida em conformidade.]
Depois da correcção de alguns erros graves nas secções 1-4,
esta secção teve de ser corrigida em conformidade.]
5. Aplicação do quadro teórico proposto a 3 casos passados
Tentemos testar o nosso quadro teórico em 3 casos
concretos. A escolha desses casos não obedece a outro critério
senão o meu razoável conhecimento sobre eles.
Uma análise rigorosa necessitaria de uma extensa
documentação, resultando em dezenas ou centenas de páginas – é
um trabalho que não cabe aqui, por isso opto por apresentar uma
sinopse pessoal dos acontecimentos. Ganha-se assim em síntese e
espaço, mas também em subjectividade. Espero que o resultado possa
ser útil, apesar de tudo.
As assembleias populares do Rossio de Lisboa
Após a manifestação de 12/Março/2011,
multiplicaram-se em Lisboa as tentativas de formar grupos de debate
político. As assembleias populares do Rossio de Lisboa surgem nessa
sequência, ao fim de algumas semanas, com uma característica que
marca a diferença: realizavam-se numa praça pública, de forma
totalmente aberta, e eram acompanhadas de uma atitude de ocupação
do espaço público, com um acampamento (ou acampada, para
usar o termo castelhano em voga).
A composição das assembleias variava de dia para
dia e não se baseava em nenhum interesse imediato1
comum (laboral, local ou outro) – quem chegasse e se sentasse era
bem-vindo, podendo tomar a palavra e propor os temas que lhe desse na
real gana. A proveniência social, regional e profissional dos
elementos presentes em cada dia era heterogénea.2
O objectivo central da assembleia nunca foi
fixado. Debatia-se livremente tudo o que viesse à baila, sem ordem
nem estratégia. Por outro lado a assembleia tornou-se o lugar
privilegiado de expressão duma corrente que pretendia apurar métodos
de debate e decisão democrática (o método do consenso, importado
de Espanha). Organizaram-se algumas acções (manifestações sempre
circunscritas ao círculo de pessoas presentes nas assembleias),
aprovou-se uma ou outra declaração política a propósito de
assuntos políticos correntes, escolhidos ao gosto do grupo dominante
em cada dia.
Na prática, esta assembleia tornou-se uma valiosa
escola para muitos participantes que nunca na vida tinham aprendido a
trabalhar em assembleia, que não faziam a ideia do que fosse um
«ponto de ordem à mesa», nem sequer como deve funcionar a mesa, a
assembleia e a ordem de trabalhos.
Feitas as contas, verificamos que o nosso modelo
teórico falha na classificação deste fenómeno – não se trata
de um movimento basista, por não ter objectivos imediatos nem uma
composição homogénea; não se trata de uma frente, por não haver
um entendimento comum nem objectivos mediados, nem um entendimento
entre grupos ou correntes (que nunca se quiseram assumir como tal,
sentindo que reinava um clima hostil às organizações políticas).
Seja o que for que lhe queiramos chamar, temos de reconhecer que o
nosso modelo teórico é omisso na integração deste fenómeno.3
A plataforma 15 de Outubro (15O)
Esvaída a assembleia popular do Rossio, poucas
semanas depois foi necessário criar um organismo capaz de dar
resposta a um apelo para uma manifestação internacional. Nasceu
assim o 15O. Desta vez, tudo parecia apontar para a constituição de
uma frente. Estavam presentes algumas organizações e associações
preexistentes – associações de género, os Precários Inflexíveis
(PI), etc. –, representantes de assembleias de rua como a do Rossio
e a dos Indignados, uma boa quantidade de independentes provenientes
da assembleia do Rossio agora sem pouso, etc. Por junto, todos
abarcavam várias partes da região da Grande Lisboa. Os partidos e
organizações políticas continuavam timoratas em assumir-se
claramente como tal, mas começavam a dar mostras de querer controlar
o processo – com destaque para o Bloco de Esquerda (BE) e o futuro
Movimento Alternativa Socialista (MAS).
Passada a manifestação, este germe de frente
unida teimou em manter-se activa. O problema, porém, é que mais uma
vez a comunhão de interesses e o objectivo eram indefinidos. Havia,
no entanto, algumas agendas partidárias escondidas (por exemplo, a
criação da futura IAC, a iniciativa para uma auditoria cidadã) que
justificavam o empenho dos partidos presentes, à pesca de
«independentes» cooptáveis e de chapéus unitários que
legitimassem a iniciativa. Fizeram-se umas purgas (a começar pelos
que demonstravam um pensamento independente e aguerrido),
desgastaram-se uns quantos activistas que deixaram de aparecer (a
começar pelos de fora de Lisboa), algumas franjas próximas do PC
desiludiram-se de poder ali fazer alguma coisa e debandaram. Assim se
iniciava o estreitamento, sem que isso incomodasse ninguém nem
fizesse arrepiar caminho. Por fim, tornou-se evidente que a frente
estava morta, faltava apenas enterrá-la.
Apesar de o processo não ter sido muito linear
(sim, a realidade política e social é sempre bem mais complexa do
que a abstracção simples dos modelos teóricos), parece
razoavelmente claro que se tratou de uma iniciativa nascida com
intenções frentistas (fracassadas, devido à falta de objectivos
claros) que rapidamente descambou numa frente partidária.
No que se refere ao nosso modelo teórico,
confirma-se uma regra proposta: uma frente comum que não nasce de
(ou com) um objectivo claro está destinada a morrer à nascença.
O CADPP
Da assembleia do Rossio nasceram vários grupos de
trabalho. Nalguns deles a existência de um interesse específico e
comum produziu frutos. Um desses casos foi o tema da dívida pública,
do qual viria a nascer o Comité para a Anulação da Dívida Pública
Portuguesa (CADPP), no fim do Verão de 2011.
Este grupo logrou estabelecer objectivos claros:
estudar o problema da dívida; divulgar as suas conclusões;
mobilizar sectores da população à volta do tema; pugnar pela
anulação da dívida; manter ligações a outros movimentos afins na
Europa. Para mobilizar e alargar em torno destes objectivos era
necessário um instrumento adequado, sob pena de o grupo continuar
eternamente a estudar o problema mas nunca mobilizar a população
nem criar nela uma consciência política. O instrumento escolhido
foi a auditoria cidadã – a intenção inicial consistia em criar
núcleos de auditoria cidadã em todo o país, de tal forma que,
partindo de um trabalho local de auditoria, o movimento fosse
crescendo e ganhando capacidade técnica para fazer uma auditoria
cidadã nacional (forçosamente parcial, porque jamais seria viável
ir mais além), mas isso não tinha importância na visão do CADPP,
visto que se tratava sobretudo de criar um instrumento de
consciencialização e mobilização.
Não creio que haja grandes dúvidas, perante este
cenário, de que se tratava de uma frente comum, de acordo com a
definição que propusemos anteriormente: tinha objectivos precisos e
explicitamente declarados; mantinha diversidade de opiniões em
relação a outros universos e até em relação a aspectos
correlativos aos objectivos propostos; definia um rumo de acção e
uma práxis coerentes com os objectivos; constantemente encontrava
formas de conciliar divergências menores, num ambiente de grande
tolerância e camaradagem, daí resultando regulares avanços
teóricos e práticos.
Dois acontecimentos vieram perturbar este cenário.
Primeiro, o aparecimento da IAC, uma outra iniciativa que também
reivindicava a auditoria cidadã, embora com perspectivas totalmente
diferentes sobre a dívida: o objectivo declarado da IAC desde o
início era a renegociação da dívida. Além disso, ao contrário
do CADPP, era um grupo fechado, elitista (no sentido de se considerar
tecnicamente competente, com exclusão do resto da população) e
avesso à mobilização e organização de massas. Estava no entanto
em melhores condições de crescer e avançar rapidamente;
apropriou-se do processo de auditoria (mais técnica que cidadã...)
e subtraiu estrategicamente o terreno de acção ao CADPP, que assim
ficou como que a flutuar no vazio duma abstracção – embora os
objectivos do CADPP fossem claros, estavam praticamente
inviabilizados. 4
Segundo, graças à atitude de tolerância e
abertura, deu-se a certa altura a entrada no CADPP de elementos do
MRPP e outros menos identificáveis que iriam causar uma convulsão
interna. Estes elementos, tipicamente, não tinham qualquer noção
do que seja um movimento frentista (nos moldes em que o definimos
aqui) e tentaram ao longo de várias semanas forçar o CADPP a uma
tomada de posições ideológicas que causou um enorme desgaste
interno e o afastamento de numerosos membros – cansados,
desgostosos e por vezes até ofendidos com o curso dos
acontecimentos. Mais tarde a situação viria a ser resolvida com a
saída daqueles elementos de pendor partidarizante.
Temos aqui uma amostra empírica de outro aspecto
do modelo teórico proposto: a imposição programática exógena
provoca fatalmente um estreitamento do movimento frentista.
Na terceira secção desta série, aborda-se o caso particular dos sindicatos.
Notas:
1 Nesta secção, como na anterior, «imediato» significa sempre «sem mediador», e é correlativo da noção de estrutura de base e superstrutura.
3 Esta falha era bastante mais grave na primeira versão do texto, quando ainda não se tinha separado o conceito genérico de movimento social da sua variante específica movimento basista.
4 Mais tarde o CADPP viria a encontrar uma solução para se subtrair a esse vazio de abstracção e regressar ao trabalho de mobilização, mas essa fase não interessa a esta análise.
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