10/05/11

Da natureza da dívida e da natureza da política

Da natureza da política

Tenho constatado que existe uma enorme confusão acerca da natureza da política.

O que distingue a política de todas as outras disciplinas é que para ela a pergunta «isto é bom ou mau?» não faz sentido nem pode jamais ter lugar. Talvez o filósofo, o profeta, o sacerdote possam fazer essa pergunta; mas o político lúcido jamais poderá fazê-la, sob pena de se desencaminhar imediatamente. Em vez disso, o político faz duas perguntas concretas: «Isto é bom para quem? Isto é mau para quem

Sem esta pergunta fundamental não é possível pôr em marcha qualquer acção política.

Assim, por exemplo, em filosofia a tributação (impostos, taxas, etc.) poderá ser considerada uma coisa justa ou injusta em si mesma. Em política esta questão não faz o mínimo sentido. A única coisa que interessa ao político é saber para quem será justa uma determinada tributação, ou para quem será ela injusta. Há sempre duas faces antagónicas, de modo que o que é justo para uns será injusto para outros.
Por exemplo: será justo permitir a livre flutuação dos juros de empréstimo, em vez da sua fixação inicial definitiva? É claro que os juros flutuantes são justos para o agiota, sendo injustos para quem tem de pagá-los.

À política não compete encontrar verdades absolutas e abstractas. O político é alguém encarregado de encontrar propostas concretas e linhas de acção em benefício de outrem (ou de si próprio...). É por isso que existem diferentes campos, diferentes partidos – porque existem diferentes interesses opostos entre si. Expressões como a «luta de classes» podem não estar hoje na moda, ou não fazer o mesmo sentido que faziam nas sociedades de há um século; podem até causar repugnância a muito boa gente. Mas o que não se pode ignorar é a existência constante, omnipresente, de interesses antagónicos que atravessam toda a sociedade e até a sociedade das nações, isto é, todo o mundo.

Da natureza da dívida

Antes de saber para quem é justa ou injusta uma determinada coisa, obviamente é necessário saber que coisa é essa. Exemplo: antes de saber se uma determinada tributação camarária é boa ou má para os habitantes desse lugar, é preciso saber sobre que objecto incide a tributação, a quanto monta, quem a paga, para que fim se destina, etc.
Conhecida a coisa, é então necessário perguntar: mas isso é bom (ou mau) para quem?
Se a pergunta não for feita, não há política.

O problema com que nos debatemos a propósito da dívida nacional, e dos meios para lidar com ela, é que não sabemos claramente do que se trata, a quanto monta, como se constituiu, a quem aproveita; aliás, nem sequer sabemos com clareza a quem estamos a pagar, nem sequer o que estamos a pagar.

Por outras palavras: sejam quais forem as medidas propostas para solver a dívida, já há muito tempo que não se está a fazer política democrática. Assim se compreende a tirada da senhora Merkel, quando desclassificou com um puxão de orelhas as decisões da assembleia soberana portuguesa, a propósito do chumbo do PEC IV; e a negação em pânico do senhor Presidente da República quando lhe foram sugerir uma auditoria à dívida – aliás, Cavaco Silva é candidato à figura mais bronca da história do estadismo português, o que permitiria compreender a sua incompreensão acerca da natureza da dívida – ao contrário, por exemplo, dos presidentes da Islândia e do Equador.

Por conseguinte vemo-nos perante uma questão inicial ainda não resolvida: é forçoso realizar uma auditoria integral às contas públicas, incluindo a dívida, sob pena de ninguém fazer a mínima ideia do que está a falar (incluindo o primeiro-ministro, como tem sido sobejamente provado).

Só depois é possível perguntar quais as medidas à nossa disposição e para quem são elas justas ou injustas.
Por outras palavras, só depois da auditoria integral é possível começar a fazer política.
Antes disso apenas podemos obedecer ou rebelar-nos cega e inutilmente contra o exercício brutal de uma ditadura aparentemente apolítica (ou seja aparentemente sem campo ou partido ou beneficiário) que nos é imposta do exterior, através de cães de fila internos.

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