16/03/12

Compadrio, opacidade e sociopatia


O «compadrio» é uma norma de comportamento na sociedade portuguesa.

O âmbito do compadrio (não no sentido das relações de parentesco, mas no sentido lato de norma de relacionamento) é muito vasto – organiza relações pessoais, comerciais e profissionais; acarreta a corrupção material, intelectual, política e ideológica; cultiva o favoritismo abusivo e a cumplicidade em crimes de pequena e média envergadura.


Quando digo «norma» quero dizer que se trata não apenas de um vago modelo de comportamento; é uma regra coerciva, recorrendo se necessário a meios violentos para imperar – meios que podem variar desde a aplicação (rara, hoje em dia) do varapau até à ostracização social e profissional, destruindo se necessário a vida do «prevaricador».

O compadrio, tal como o vivemos em Portugal, tem raízes profundas na tradição romana, em particular na tradição da «freguesia», que sobreviveu um ror de séculos transformando-se numa instituição administrativa. Mas do aspecto histórico não trataremos aqui, para não alongar. O que importa fazer notar é que o compadrio é um eixo central de toda a vida social portuguesa.



Alguns exemplos genéricos de compadrio

Para onde quer que nos viremos encontramos o compadrio no centro da mecânica social. Os exemplos sucedem-se até ao infinito. Mas como se trata de um assunto que envolve a repressão e suspensão da consciência, esta pode ter dificuldade em reconhecer o óbvio. Vejamos alguns exemplos genéricos que ajudarão o leitor a perceber de que tratamos aqui.

É vulgar que um concurso – público e oficial – para admissão de bolseiros ou para preenchimento de cargos muito especializados veja os seus fins e critérios «moldados», de forma a excluir todos os possíveis candidatos à excepção de um «conhecido».

É vulgar, num círculo profissional, comercial, de amizade ou mesmo em organizações cívicas, manter-se o silêncio cúmplice perante um «par» ou «compadre» que praticou uma ilegalidade em prejuízo de outrem (exterior ao círculo ou hierarquicamente inferior dentro do círculo), que cometeu um crime de pequena ou média envergadura, uma corrupção, uma violência continuada de género ou de pedofilia, um favorecimento ilícito a fim de obter vantagens pessoais, etc. Se alguém exterior ao círculo lançar a acusação ou denúncia do acto, a matilha inteira defenderá com unhas e dentes o «ofendido».


É vulgar, quando alguém presta um «favor» a outrem, que esse outrem fique definitivamente obrigado a silenciar os actos incorrectos, corruptos ou criminosos de quem lhe prestou o favor. Torna-se automaticamente cúmplice. Aliás, muitas vezes procura-se prestar um favor desnecessário precisamente para poder usufruir da cumplicidade.

A malha e o tabu

O compadrio constrói-se através duma malha de comportamentos correlativos.

Um deles é a «opacidade» e assemelha-se de alguma forma ao tabu.

É vulgar, especialmente em meios pequenos, toda a gente saber que o fiscal da parte eléctrica das obras é ao mesmo tempo parte interessada no comércio de instalações eléctricas; mas o facto nunca é enunciado na consciência e no discurso colectivo.

Em determinadas zonas, sabendo ou suspeitando toda a gente dos comportamentos generalizados de pedofilia dos «tios» ou de violência doméstica, ninguém ousa enunciá-los ou chamar os autores do crime à pedra, chegando mesmo a participar no encobrimento desses actos.


Inversão dos valores – honestidade


Se um elemento pertencente a um círculo social restrito denuncia actos ou crimes praticados dentro desse círculo que lesam terceiros ou até o interesse geral do país, é acusado e castigado das mais variadas formas. A punição provém muitas vezes não só do círculo estrito mas até da sociedade em geral – rompendo com a norma do compadrio a nível local, tornou-se um potencial perigo para a sociedade em geral.


Ainda que o denunciante invoque a honestidade (perante a sociedade) e a consciência como imperativos da denúncia, acha-se socialmente condenado – nunca mais ninguém confiará nele. Dentro da hierarquia das normas de comportamento lusitanas os princípios éticos e legais situam-se muitos furos abaixo do princípio do compadrio. Donde, a cumplicidade dentro do círculo restrito acarreta a desonestidade perante o círculo social alargado.

No sistema de compadrio a honra e a honestidade assumem natureza inversa – a ética portuguesa típica é uma ética invertida.

Inversão dos valores – a transparência

Todo o círculo social português é, por norma, maçonicamente opaco. O que se passa lá dentro não pode ser visto do lado de fora. Quem ousar perfurar esse muro será imediatamente punido e ostracizado.

Quando a conversa entre Vítor Gaspar e Wofgang Schauble foi gravada à socapa em Bruxelas, vários políticos e comentadores queixaram-se de que se tratava de uma conversa privada e por isso seria «incorrecto» divulgá-la. Acontece que eles não estavam a combinar ir para a cama, isto é, não se tratava de uma conversa sobre assuntos privados, mas sim sobre assuntos de Estado, e que portanto o princípio da transparência devia ser superior a todas as outras considerações. Resultado: o operador de câmara foi despedido.

Esta característica assume um aspecto desconcertante na actualidade, uma vez que nunca como hoje se falou tanto em transparência. A transparência está presente pelo menos uma vez por dia em todos os jornais diários, em todos os telejornais. E no entanto a sua prática é uma impossibilidade absoluta, em virtude da norma social de opacidade.

Este paradoxo mereceria estudo mais aprofundado.

Inversão dos valores – a confiança


O conceito latino de confiança tem a ver com revelação, verdade ou garantia. Uma pessoa de confiança é uma fiadora cuja verdade e coerência dos actos presentes constitui a fiança dos seus actos futuros.

Dentro do sistema de compadrio português, o conceito é totalmente invertido – é de confiança aquele que for capaz de mentir, enganar, oscilar arbitrariamente no seu próprio comportamento, a fim de se tornar cúmplice da matilha.

Inversão de valores – a corrupção


A corrupção consiste na deturpação da natureza das coisas – dos objectos, das ideias, do carácter das pessoas ou das instituições. O ácido corrompe o metal, alterando a sua natureza química. Um detentor de cargo político que aceita luvas para alterar a natureza e os fins da instituição corrompe-se a si e à instituição.
No sistema de compadrio, a corrupção, ao invés de ser uma coisa condenável, é a regra adoptada. Muitas vezes não se trata de corrupção material, mas sim intelectual – uma tal corrupção é suficiente para subverter o carácter e os fins das instituições.

A corrupção é praticada, aceite e incentivada como condição necessária do compadrio – a simples existência de um elemento impoluto dentro dum círculo de amigos constitui um dedo acusatório apontado a todos os elementos corruptos do grupo, ainda que nunca pronuncie uma só palavra acerca do assunto.

Todo o discurso oficial anticorrupção em Portugal não passa de um mantra sem sentido, de uma manobra de marketing para o exterior. Num sistema socialmente alicerçado no compadrio, combater de facto a corrupção equivaleria ao suicídio colectivo.

Inversão dos valores – a gratidão


O conceito latino de gratidão deriva directamente da utilização, em tempos remotos, da grade para alisar o terreno de cultivo. Gratificar é assim o acto de suavizar um terreno de cultura, um território comum. Este conceito remete para gratuidade; é correlativo do conceito de mérito. Em certo sentido opõe-se à «obrigação». Ser grato deveria pressupor independência de meios e de espírito; ser obrigado pressupõe dependência e subserviência.

O sistema português de compadrio inverteu totalmente a questão – a gratidão lusitana faz parte do sistema de compra e venda de favores; implica uma obrigação. Presta-se um favor ou uma amabilidade para obter uma gratidão, devendo esta ser entendida como um título de obrigação, em tudo semelhante aos títulos de obrigação financeiros – pressupõe um retorno com juro. No sistema português uma pessoa grata é automaticamente uma pessoa comprada. O próprio entendimento comum da palavra foi corrompido, para se adequar à realidade social.

Onde seria de esperar que o ingrato fosse aquele que não reconhece o mérito alheio de forma graciosa, encontramos uma inversão: o ingrato é aquele que não «retribui» o favor especial com juros e em prejuízo do interesse geral.

Conclusão

O sistema português de compadrio é uma patologia que gere toda a dinâmica social, de alto a baixo – do presidente da república ao calceteiro, do catedrático ao empregado de balcão. A sua força coerciva impede o desenvolvimento da sociedade em determinados sentidos.

Um fenómeno desta magnitude na vida social e pessoal há tempo devia ter sido objecto de estudo antropológico.

Já assistimos a outros casos em que uma campanha investida de autoridade «científica» consegue alterar, no espaço de alguns meses, comportamentos profundamente radicados. Por isso mesmo reforço a urgência de esmagar esta questão despejando-lhe em cima o peso da autoridade científica e académica. Mas para isso é preciso estudar, investigar, trabalhar – e se calhar ter também uma grande coragem.

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