07/04/13

Sobre o frentismo (parte 6)

Continuação da série sobre frentismo e movimentos sociais. Nesta secção aponta-se uma característica peculiar das estruturas sindicais. Tudo o que aqui se diz deve ser entendido à luz do quadro teórico estabelecido inicialmente (partes 1-4), para que não se gerem mal-entendidos.



6. O edifício sindical – uma situação dúplice

As estruturas sindicais, embora comummente englobadas todas elas sob a mesma designação, assumem formas diversas: umas mais basistas, outras mais frentistas.

O exemplo típico de um movimento social de base são as comissões de trabalhadores – estas são homogéneas, estão ligadas directamente, sem mediadores, a interesses específicos da população envolvida. O sindicato sectorial (por exemplo, quando agrupa todos os metalúrgicos ou todos os professores duma região) sobe um degrau na mediação; os interesses do grupo envolvido tornam-se mais genéricos, mais abstractos; a negociação entre os assalariados e o patronato desliza para um plano mais superstrutural; os interlocutores passam a ser as associações patronais e em muitos casos o Estado – ou, para todos os efeitos, instâncias de nível mais elevado e definidas pelo poder instituído. Apesar disso continuamos a poder ver no sindicato sectorial uma associação razoavelmente homogénea e com interesses comuns mais ou menos imediatos1.

A tendência para a abstracção, à medida que se caminha para âmbitos regionais e sectoriais mais latos, é mais fácil de ver nuns casos do que noutros. No caso dos professores, por exemplo, conforme caminhamos do sindicato ou da comissão local para o sindicato ou federação regional, a formulação imediata da situação dos professores, da relação com os alunos, das necessidades pedagógicas concretas e das problemáticas concretas de gestão da escola vai dando lugar a conceitos mais genéricos, mais abstractos, de modo a abarcar todos os casos particulares. Por fim, é frequente que as regras e convénios de alto nível em certos sectores se encontrem já bastante distantes da realidade concreta, quando não em litígio com ela – algures, na cadeia de relações e mediações, pode ter-se quebrado o elo que mantém a produção de abstracções ligada e aferida à realidade.

Quando subimos ao topo do edifício sindical (tipicamente as federações nacionais, a CGTP, a UGT, etc.), as coisas tornam-se ainda mais indistintas: interesses imediatos tornam-se menos homogéneos, mais difusos, mais abstractos. Perante a multitude de interesses e de organizações de base, é intuitivo vermos nas estruturas de topo um agrupamento de direcções sindicais (logo, uma frente).

Suponhamos que, numa determinada região, existem várias grandes empresas metalúrgicas e um sindicato único, comum a todos os metalúrgicos de todas as empresas. Suponhamos que na Fábrica-A a entidade patronal desviou lucros para especulação financeira, colocando a empresa à beira da falência. Imaginemos que os trabalhadores da Fábrica-A, apercebendo-se do fim inevitável da empresa, se organizam, formam uma comissão de trabalhadores e tomam o controle da empresa. A partir daí encontrar-se-ão sob ataque cerrado do Estado, das associações patronais e de várias empresas das quais depende a continuidade da produção – a sua luta corre o risco de sufocar, não por incapacidade de gestão, mas devido a factores externos. Há várias soluções possíveis para vencer este cerco, com destaque para o papel dos sindicatos.
Se a direcção do sindicato que representa os trabalhadores dessa empresa estiver empenhada em manter a sua capacidade negocial institucionalizada em relação às outras empresas e patrões, preferindo não os hostilizar, virará costas aos trabalhadores da Fábrica-A, evitando generalizar o conflito a todas as fábricas e distanciando-se de qualquer tentativa de subverter o poder estabelecido (o poder patronal) – ou seja, expressamente ou por omissão permitirá que as associações patronais ponham fim à «experiência» de tomada de controle pelos trabalhadores da Fábrica-A.
Se, pelo contrário, a direcção do sindicato estiver disposta a colocar-se incondicionalmente ao lado da luta dos trabalhadores e assumir os custos de um enfrentamento de classe, então utilizará a sua influência para convocar a solidariedade activa dos trabalhadores das outras empresas, e até das outras estruturas das redes sindicais nacionais e internacionais, impedindo os patrões de torpedear a Fábrica-A.
Em qualquer dos casos o sindicato encontrar-se-á na charneira da relação de forças. Chamamos-lhe charneira porque – e é este o ponto chave da questão – o poder não reside no sindicato, mas sim ou no patronato ou nos trabalhadores; o sindicato é apenas uma estrutura que ora assume um papel canalizador, ora um papel catalisador – mas não o lugar do poder por direito próprio. Toda e qualquer presunção de poder por parte de um sindicato significa apenas que ele já se colocou do lado do poder hegemónico (que, na sociedade em que vivemos, é normalmente o do patronato).

Quando subimos no edifício sindical até ao topo, continuamos a encontrar interesses comuns – já não os interesses imediatos dos assalariados de uma empresa, ou de um sector de trabalho, ou de uma indústria, ou de uma região; já não as relações de trabalho e produção concretas, mas sim um fenómeno genérico: a oposição geral entre trabalho e capital, considerada de uma forma abstracta e superstrutural. Chegados a este nível, vemo-nos perante vastas e elaboradas superstruturas de poder. Por isso convém lembrar que o modelo e as estruturas de poder são definidos pela classe dominante; ou seja, ao nível de topo do edifício sindical todo o confronto e toda a negociação correm o risco permanente de serem condicionados pela construção superstrutural dominante.2 A construção de uma estrutura e de uma práxis diferentes, contendo em si a promessa de um poder alternativo arquitectado pelos dominados, tende a ser excluída, juntamente com a intervenção directa (não mediada) e consciente dos assalariados.

Esta distinção é da maior importância, porque põe em jogo o tipo de poder proposto. No confronto entre uma comissão de trabalhadores e um gestor de empresa podemos ver facilmente o poder instituído em confronto directo com um germe potencial de poder alternativo. No confronto negocial entre uma central sindical e um ministro ou um sindicato patronal podemos ver sobretudo toda a maquinaria institucional de poder a funcionar em pleno. Ora esta máquina (o Estado e, para quê escondê-lo, as suas mimeses em muitas das estruturas dos trabalhadores) é uma superstrutura arquitectada sobre os interesses imediatos e mediatos das classes dominantes. Esta constatação permite-nos compreender o empenho da maioria das organizações políticas em forçarem a existência de centrais sindicais para todos os «gostos».

Em suma, dentro do edifício sindical é necessário distinguir dois níveis distintos: a movimentação social de base e a movimentação frentista. A primeira está de alguma forma ligada a uma possível alternativa de poderes; a segunda ou se subordina rigorosamente à primeira, ou correrá o risco de tender a colaborar com o poder dominante.

No que diz respeito à aferição do modelo teórico proposto, caberia agora aplicar a lei de medição do alargamento/estreitamento. Embora pareça evidente que se verifica um estreitamento do movimento sindical nas últimas décadas, não vamos aplicar o teste, porque, perante os efeitos combinados de vários factores políticos, económicos e sociais actuais (com destaque para o aumento do contingente de desempregados e precários), uma avaliação apressada correria o risco de confundir causas e efeitos e de tomar por correlativos fenómenos independentes que concorrem em paralelo.


Gráfico 1: Evolução do número de trabalhadores abrangidos por  convenções colectivas, 2000-2012

A redução de 83% do número de trabalhadores abrangidos pela contratação colectiva em 5 anos, expressa no Gráfico 1, cria um conjunto de condições políticas objectivas que nos impede de analisar com rigor as condições subjectivas de organização dos trabalhadores, nos moldes em que nos conviria aqui.

Na secção seguinte tentaremos aplicar o quadro teórico proposto à situação actual.

Notas

1 Insistimos, mais uma vez, em que o termo imediato tem ser entendido neste texto no seu sentido próprio (sem mediador) e não no seu sentido figurado (próximo, instantâneo, superficial), que é o mais comum na linguagem corrente.

2 Não deve deduzir-se desta afirmação que o perigo de alinhamento com as estruturas do poder (político e económico) tenha de concretizar-se – isso equivaleria a dizer que os sindicatos são perigosos instrumentos do poder instituído, tese que nem pouco mais ou menos sugerimos.

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