07/04/13

Sobre o frentismo (parte 7)

Continuação da série sobre movimentos sociais e frentistas, tentando-se agora avançar para a aplicação do quadro teórico proposto na situação actual. Sem a leitura de pelo menos as secções 1-4 todo o texto que segue perde sentido, pois pressupõe tudo quanto foi enunciado na secção inicial.

7. Que movimentos, que frentismo, que frentes, agora?

Vem agora a parte mais difícil: a possível aplicação do quadro teórico proposto na situação política actual. Este é um capítulo que deixarei deliberadamente em curso de obra, aguardando contributos de outros autores e activistas (se eles acharem alguma utilidade neste estudo).

A primeira coisa a fazer, creio eu, será identificar as linhas gerais do combate político e os pontos onde vale a pena apostar na construção de frentes comuns.

Uma vez que eu, bem ou mal, estou convicto de que na fase actual não é boa coisa apostar em frentes eleitorais para derrubar o governo – ou, para pôr as coisas mais claras, enquanto não houver uma movimentação social minimamente forte, autónoma e constante –, arredo desde já a hipótese da clássica frente popular, onde se reuniriam todas as organizações políticas e movimentos sociais apostados em mudar o rumo governativo, que é como quem diz, dispostos a disputar o poder. É absolutamente imprescindível saber quando se devem queimar todos os cartuchos disponíveis; não é preciso ser nenhum Lenine ou Roosevelt para perceber isso.

Portanto o que há a fazer, por agora, é fortalecer a movimentação popular. É preciso então procurar os pontos nevrálgicos que ou favorecem o frentismo (isto é, estão maduros para a aglomeração de esforços), ou contêm em si condições para o lançamento de movimentos de luta ainda incipientes mas que podem ser decisivos.

Estado social, segurança social, funções sociais do Estado

Devido a uma longa série de factores que não analisaremos aqui, não existe uma frente comum para esta questão. Vemo-nos portanto na contingência de aceitar por agora uma movimentação social fraccionada. Há já algumas iniciativas em curso, outras teriam de ser lançadas:

  • APRe! – movimento dos reformados. Esta associação, gerada na sequência dos cortes nas pensões de reforma e da criação do «imposto de velhice», está ligada à luta geral pela solidariedade e segurança social; foi formada há pouco tempo e está ainda em fase de crescimento e organização; tem um âmbito extremamente vasto logo à partida (nível nacional), mas parece ter condições para seguir bom caminho. A potencialidade deste movimento é demonstrada pelo ataque cerrado de que foi vítima logo após a sua criação (sempre que um movimento vê surgir concorrentes fantasma ou paralelos, venham eles de que quadrante vierem, como foi o caso, o seu potencial fica demonstrado).
  • Movimentos locais de utentes dos serviços públicos de saúde – desconheço a sua actividade, por isso evito estender-me em considerações; mas seria essencial que se tornassem activos e desafiassem continuamente o Governo. Não é possível vencer o Governo numa frente única de luta, por mais esforços que aí se concentrem – a única táctica passível de sucesso é a guerrilha política, ou seja, a multiplicação de frentes luta, obrigando o Governo a responder a todas ao mesmo tempo, a sofrer derrotas numas mesmo quando conseguiu vitórias noutras.
  • Movimentos de utentes dos transportes públicos – idem, tão-pouco tenho informações sobre a situação nesta área; mas também aqui seria muito importante manter uma onda permanente de protesto e luta contra a progressiva (mas rápida) degradação e extinção dos transportes públicos e aumento de encargos dos utentes.
  • Educação, escolas, universidades. À primeira vista (mas a minha visão é exterior), os poderes públicos conseguiram partir a espinha a estes sectores, que protagonizaram alguns dos maiores e precursores protestos de rua nos últimos 5 anos. O movimento estudantil (visto de fora, repito) parece parado, senão mesmo morto. Este vazio é coerente com o da área da cultura, onde nada acontece (em termos de movimentação social e política, entenda-se). É caso para perguntar se não existe aqui todo um trabalho de mobilização a fazer; ou se, pelo contrário, os tempos mudaram de forma tão radical que estes sectores (parte das superstruturas ideológicas), que outrora costumavam estar na vanguarda das lutas, não terão sido remetidos para a cauda da luta e da consciência – e nesse caso não adianta desbaratar aí energias, mais vale deixá-los entregues a si próprios. Quem anda na cauda dos acontecimentos só pode ser chamado à luta quando os sectores de vanguarda já singram a todo o vapor.
  • Movimentos de utentes das vias de transporte. Apesar da luta aguerrida dos utentes da Via do Infante e de um ou outro caso anterior, na prática parece ser difícil manter este tipo de movimentação por longo tempo. Quem está envolvido localmente nessas lutas poderá avaliar a situação melhor que eu.
  • Vários outros sectores, a estudar.

Todos estes movimentos terão um dia de ser articulados numa frente comum. O instante em que for possível reuni-los é o mesmíssimo instante em que se começará a desenhar uma consciência alargada (ou pelo menos um debate sério) acerca das funções sociais do Estado no seu todo, e das formas presentes e futuras de solidariedade social e auxílio mútuo. Este debate já foi feito e concluído em décadas passadas, mas entretanto desapareceu da consciência pública.

Sector dos transportes e distribuição

Como a historiadora Raquel Varela aponta – e muito certeiramente, a meu ver –, o actual modelo de produção just in time tem um calcanhar de Aquiles mortal: os transportes, comunicações e distribuição de mercadorias. Quanto mais just in time funciona o sistema, maior a sua fragilidade a esse nível. Um modelo que depende da resposta instantânea e à medida da encomenda, da produção dispersa mas coordenada pelos quatro cantos do mundo, colapsa no momento em que perder o controle instantâneo dos meios de comunicação e transporte.

As lutas dos estivadores dão prova disso mesmo – ao longo dos últimos anos tem-se verificado uma batalha renhida nos portos de todo o mundo, porque de ambos os lados da barricada há quem entenda bem que se trata de uma trincheira estratégica para a guerra em curso. Recentemente, os governos parecem ter obtido uma vitória importante – e nisso os sindicatos hegemónicos não foram de todo inocentes. Mas a situação ainda não está totalmente perdida, caso seja possível criar uma frente comum de luta entre vários sectores dos transportes e comunicações.

Em primeiro lugar, é preciso deixar muito claro que os transportes de passageiros não devem ser arredados deste tabuleiro. Os trabalhadores necessitam de transportes para se deslocarem ao trabalho, e para o capital eles continuam a ser uma mercadoria como outra qualquer – uma mercadoria descartável, reconvertível e deslocável –, portanto não existe razão para os colocarmos à parte.

Em segundo lugar, uma frente comum capaz de coordenar esforços e agendas criaria uma situação de guerrilha cheia de dificuldades para o Governo e para os patronatos. Além disso resolveria um grande problema: os custos das greves são cada vez mais pesados para os trabalhadores, à medida que os salários descem e o tom das medidas de austeridade sobe; ora, num conjunto coordenado de 7 a 12 sectores profissionais (controladores aéreos, motoristas de transportes públicos, pilotos, fiscais de transportes, estivadores, controladores de tráfego, oficinas de manutenção, maquinistas, etc.), cada subsector apenas precisa de adoptar esporadicamente formas de luta totais ou parciais (greve, greve por função, greve de zelo, etc.) para garantir que durante meses a fio as anomalias no transporte, circulação e distribuição transformassem a vida do patronato e do Governo num inferno.

Todos estes trabalhadores têm problemas comuns que justificam a formação duma frente comum: os despedimentos, a precarização, a redução drástica de salários, a destruição das convenções colectivas, a perda de direitos adquiridos. Todos estes problemas são comuns à demais população – a luta deste sector actua como rastilho. Pode ser que eu esteja enganado (toda a especulação vale o que vale...), mas acredito que uma eventual vitória no sector dos transportes e distribuição poderia provocar um incêndio político nacional. O medo é uma das piores coisas que está a acontecer às classes trabalhadoras; nada melhor que assistir a uma bravata e uma vitória, nada melhor que um herói para ajudar a vencer o medo.

Uma frente comum dos transportes e comunicações seria uma seta apontada ao coração do sistema actual de produção capitalista e um rastilho para a luta global.

O sistema bancário

O sistema bancário, visto na perspectiva do utente comum, tem enormes debilidades. Os utentes têm todas as condições para exercer uma pressão terrível sobre os bancos. Como muitos destes utentes estão na mão das instituições bancárias (hipotecas, crédito de vários tipos, obrigatoriedade de utilização das instituições bancárias para o comum dos trabalhadores, obrigatoriedade essa que foi instalada de fininho ao longo de décadas sem que ninguém conseguisse prever as consequências), é necessário inventar formas imaginativas de efectuar esse combate. O certo é que os bancos dependem tanto dos seus pequeninos depositantes como os supermercados dependem de que alguém queira lá vai comprar um simples pacote de arroz em vez de usar o merceeiro do bairro.

O ataque aos bancos por parte dos clientes comuns (os pobres e remediados) está numa fase embrionária em Portugal. Se for possível desenvolvê-lo, ele irá articular-se com outra frente fundamental, mas muito menos imediata nos seus objectivos e no seu carácter: a luta contra a dívida pública.

A organização sindical e de base

Já fiz anteriormente referência à necessidade de inventar novas formas de organização adaptadas aos tempos que correm. Existe aqui terreno para a coordenação e o frentismo, mas não enquanto essas novas formas de organização não forem criadas.

A luta pela suspensão e cancelamento da dívida pública

Existem vários movimentos (pelo menos 4, que eu conheça) centrados na questão da dívida. Um deles encontra-se numa posição de grande isolamento (a nível nacional e internacional), por ser o único que se propõe contribuir para a reestruturação da dívida (mas é também aquele que beneficia de largo apoio das organizações políticas com maior peso na cena política institucional). Os restantes movimentos, uns têm vocação mais institucional, outros propõem uma movimentação forte – se não constituírem uma frente comum, nenhum deles por si só conseguirá criar qualquer espécie de pressão (creio eu), pelo simples motivo de que estão a atacar o grande bastião do sistema. É da maior importância que, mantendo a sua autonomia (se assim o desejarem), estes movimentos se unam numa frente comum, assim que tenham consolidado a sua própria organização e métodos de trabalho.

O tema da dívida tende a ser visto pela generalidade da população como algo distante e um pouco abstracto, isto é, sem ligação directa com toda a política de austeridade em curso. Por conseguinte esta frente comum, a partir do momento em que seja formada, deveria estabelecer relações de comunicação e coordenação com todas as outras frentes ligadas às funções sociais do Estado.



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