7. Que movimentos, que frentismo, que frentes, agora?
Vem agora a parte mais difícil: a possível aplicação do quadro teórico proposto na situação política actual. Este é um capítulo que deixarei deliberadamente em curso de obra, aguardando contributos de outros autores e activistas (se eles acharem alguma utilidade neste estudo).A primeira coisa a fazer, creio eu, será identificar as linhas gerais do combate político e os pontos onde vale a pena apostar na construção de frentes comuns.
Uma vez que eu, bem ou mal, estou convicto de que na fase actual não é boa coisa apostar em frentes eleitorais para derrubar o governo – ou, para pôr as coisas mais claras, enquanto não houver uma movimentação social minimamente forte, autónoma e constante –, arredo desde já a hipótese da clássica frente popular, onde se reuniriam todas as organizações políticas e movimentos sociais apostados em mudar o rumo governativo, que é como quem diz, dispostos a disputar o poder. É absolutamente imprescindível saber quando se devem queimar todos os cartuchos disponíveis; não é preciso ser nenhum Lenine ou Roosevelt para perceber isso.
Portanto o que há a fazer, por agora, é fortalecer a movimentação popular. É preciso então procurar os pontos nevrálgicos que ou favorecem o frentismo (isto é, estão maduros para a aglomeração de esforços), ou contêm em si condições para o lançamento de movimentos de luta ainda incipientes mas que podem ser decisivos.
Estado social, segurança social, funções sociais do Estado
Devido a uma longa série de factores que não
analisaremos aqui, não existe uma frente comum para esta questão.
Vemo-nos portanto na contingência de aceitar por agora uma
movimentação social fraccionada. Há já algumas iniciativas em
curso, outras teriam de ser lançadas:
- APRe! – movimento dos reformados. Esta associação, gerada na sequência dos cortes nas pensões de reforma e da criação do «imposto de velhice», está ligada à luta geral pela solidariedade e segurança social; foi formada há pouco tempo e está ainda em fase de crescimento e organização; tem um âmbito extremamente vasto logo à partida (nível nacional), mas parece ter condições para seguir bom caminho. A potencialidade deste movimento é demonstrada pelo ataque cerrado de que foi vítima logo após a sua criação (sempre que um movimento vê surgir concorrentes fantasma ou paralelos, venham eles de que quadrante vierem, como foi o caso, o seu potencial fica demonstrado).
- Movimentos locais de utentes dos serviços públicos de saúde – desconheço a sua actividade, por isso evito estender-me em considerações; mas seria essencial que se tornassem activos e desafiassem continuamente o Governo. Não é possível vencer o Governo numa frente única de luta, por mais esforços que aí se concentrem – a única táctica passível de sucesso é a guerrilha política, ou seja, a multiplicação de frentes luta, obrigando o Governo a responder a todas ao mesmo tempo, a sofrer derrotas numas mesmo quando conseguiu vitórias noutras.
- Movimentos de utentes dos transportes públicos – idem, tão-pouco tenho informações sobre a situação nesta área; mas também aqui seria muito importante manter uma onda permanente de protesto e luta contra a progressiva (mas rápida) degradação e extinção dos transportes públicos e aumento de encargos dos utentes.
- Educação, escolas, universidades. À primeira vista (mas a minha visão é exterior), os poderes públicos conseguiram partir a espinha a estes sectores, que protagonizaram alguns dos maiores e precursores protestos de rua nos últimos 5 anos. O movimento estudantil (visto de fora, repito) parece parado, senão mesmo morto. Este vazio é coerente com o da área da cultura, onde nada acontece (em termos de movimentação social e política, entenda-se). É caso para perguntar se não existe aqui todo um trabalho de mobilização a fazer; ou se, pelo contrário, os tempos mudaram de forma tão radical que estes sectores (parte das superstruturas ideológicas), que outrora costumavam estar na vanguarda das lutas, não terão sido remetidos para a cauda da luta e da consciência – e nesse caso não adianta desbaratar aí energias, mais vale deixá-los entregues a si próprios. Quem anda na cauda dos acontecimentos só pode ser chamado à luta quando os sectores de vanguarda já singram a todo o vapor.
- Movimentos de utentes das vias de transporte. Apesar da luta aguerrida dos utentes da Via do Infante e de um ou outro caso anterior, na prática parece ser difícil manter este tipo de movimentação por longo tempo. Quem está envolvido localmente nessas lutas poderá avaliar a situação melhor que eu.
- Vários outros sectores, a estudar.
Todos estes movimentos terão um dia de ser articulados numa frente comum. O instante em que for possível reuni-los é o mesmíssimo instante em que se começará a desenhar uma consciência alargada (ou pelo menos um debate sério) acerca das funções sociais do Estado no seu todo, e das formas presentes e futuras de solidariedade social e auxílio mútuo. Este debate já foi feito e concluído em décadas passadas, mas entretanto desapareceu da consciência pública.
Sector dos transportes e distribuição
Como a historiadora Raquel Varela aponta – e
muito certeiramente, a meu ver –, o actual modelo de produção
just in time tem um calcanhar de Aquiles mortal: os
transportes, comunicações e distribuição de mercadorias. Quanto
mais just in time funciona o
sistema, maior a sua fragilidade a esse nível. Um
modelo que depende da resposta instantânea e à medida da encomenda,
da produção dispersa mas
coordenada pelos quatro
cantos do mundo, colapsa no momento em que perder o
controle instantâneo dos meios
de comunicação e transporte.
As lutas dos
estivadores dão prova disso mesmo – ao longo dos últimos anos
tem-se verificado uma batalha renhida nos portos de todo o mundo,
porque de ambos os lados da
barricada há quem entenda bem que se trata de uma trincheira
estratégica para a guerra em
curso. Recentemente,
os governos parecem ter obtido uma vitória importante – e nisso os
sindicatos hegemónicos não foram de todo inocentes. Mas
a situação ainda não está totalmente perdida, caso seja possível
criar uma frente comum de luta entre vários sectores dos transportes
e comunicações.
Em primeiro
lugar, é preciso deixar
muito claro que os
transportes de passageiros não devem ser arredados deste
tabuleiro. Os
trabalhadores necessitam de transportes para se deslocarem
ao
trabalho,
e para o capital eles continuam a ser uma mercadoria como outra
qualquer – uma
mercadoria descartável, reconvertível e deslocável –,
portanto não existe razão
para os colocarmos à parte.
Em segundo lugar,
uma frente comum capaz de coordenar esforços e agendas criaria uma
situação de guerrilha cheia
de dificuldades para o
Governo e para os patronatos.
Além disso resolveria um grande problema: os custos das greves são
cada vez mais pesados para os trabalhadores, à medida que os
salários descem e o tom das medidas de austeridade sobe; ora, num
conjunto coordenado de 7 a 12 sectores profissionais (controladores
aéreos, motoristas de transportes públicos, pilotos,
fiscais de transportes,
estivadores, controladores de tráfego, oficinas de manutenção,
maquinistas, etc.), cada subsector apenas precisa de adoptar
esporadicamente formas de luta totais ou parciais (greve, greve por
função, greve de zelo, etc.) para garantir que durante meses a fio
as anomalias no transporte,
circulação e distribuição transformassem
a vida do patronato
e do Governo num inferno.
Todos estes
trabalhadores têm problemas comuns que justificam a formação duma
frente comum: os despedimentos, a precarização, a redução
drástica de salários, a destruição das convenções colectivas, a
perda de direitos adquiridos. Todos estes problemas são
comuns à demais população
– a
luta deste sector actua como
rastilho. Pode ser que eu esteja enganado (toda a especulação vale
o que vale...), mas acredito
que uma eventual vitória no
sector dos transportes e distribuição poderia
provocar um incêndio
político nacional. O medo é
uma das piores coisas que está a acontecer às classes
trabalhadoras; nada melhor que assistir a uma bravata e uma vitória,
nada melhor que um herói para ajudar a vencer o medo.
Uma frente comum
dos transportes e comunicações seria uma seta apontada ao coração
do sistema actual de produção
capitalista e um rastilho
para a luta global.
O sistema bancário
O sistema
bancário, visto na perspectiva do utente comum, tem enormes
debilidades. Os utentes têm
todas as condições para
exercer uma pressão terrível sobre os bancos. Como muitos destes
utentes estão na mão das instituições bancárias (hipotecas,
crédito de vários tipos, obrigatoriedade de utilização das
instituições bancárias para o comum dos trabalhadores,
obrigatoriedade essa que foi instalada de fininho ao
longo de décadas sem que
ninguém conseguisse prever as consequências), é necessário
inventar formas imaginativas de efectuar
esse combate. O certo é que os bancos dependem tanto dos seus
pequeninos depositantes como os supermercados dependem de que alguém
queira lá vai comprar um
simples pacote de arroz em
vez de usar o merceeiro do bairro.
O ataque aos bancos por
parte dos clientes comuns (os pobres e remediados) está numa fase
embrionária em Portugal. Se for possível desenvolvê-lo, ele irá
articular-se com outra frente fundamental, mas muito menos imediata
nos seus objectivos e no seu carácter: a luta contra a dívida
pública.
A organização sindical e de base
Já fiz anteriormente referência à necessidade de inventar novas formas de organização adaptadas aos tempos que correm. Existe aqui terreno para a coordenação e o frentismo, mas não enquanto essas novas formas de organização não forem criadas.
A luta pela suspensão e cancelamento da dívida pública
Existem vários movimentos (pelo menos 4, que eu conheça) centrados na questão da dívida. Um deles encontra-se numa posição de grande isolamento (a nível nacional e internacional), por ser o único que se propõe contribuir para a reestruturação da dívida (mas é também aquele que beneficia de largo apoio das organizações políticas com maior peso na cena política institucional). Os restantes movimentos, uns têm vocação mais institucional, outros propõem uma movimentação forte – se não constituírem uma frente comum, nenhum deles por si só conseguirá criar qualquer espécie de pressão (creio eu), pelo simples motivo de que estão a atacar o grande bastião do sistema. É da maior importância que, mantendo a sua autonomia (se assim o desejarem), estes movimentos se unam numa frente comum, assim que tenham consolidado a sua própria organização e métodos de trabalho.
O tema da dívida tende a ser visto pela
generalidade da população como algo distante e um pouco abstracto,
isto é, sem ligação directa com toda a política de austeridade em
curso. Por conseguinte esta frente comum, a partir do momento em que
seja formada, deveria estabelecer relações de comunicação e
coordenação com todas as outras frentes ligadas às funções
sociais do Estado.
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