De longe e sem concorrente à altura, a mentalidade liberal é a campeã do eufemismo. Ao longo de mais de dois séculos conseguiu eufemizar tudo o que havia de eufemizável.
Desgraçadamente, a eufemização sistemática,
enquanto arma política, contém em si mesma um princípio diabólico:
provoca a destruição de todo o pensamento estruturado e portanto de
tudo o que de bom a civilização ocidental conseguiu criar.
É moda dizer-se que algumas categorias de
pensamento metódico e abstracto (como os conceitos de trabalho,
capital, mais-valia, esquerda, direita, etc.) estão desactualizadas
e já não têm razão de ser. Esta tentativa de lixiviação do
pensamento de esquerda no que ele possui de mais rigoroso e metódico
não é um acidente avulso – faz parte da lógica de eufemização,
com vista a esvaziar todo o pensamento, seja ele de que tipo for.
Mortas e enterradas as gerações liberais ainda herdeiras de alguma
formação humanista, a barbárie dos seus descendentes neoliberais
persegue um fim preciso: a destruição de todo o pensamento
estruturado – e fá-lo com a mesma sanha com que persegue a
destruição de todas as forças produtivas estruturadas (incluindo a
força de trabalho).
É curioso verificar que, ao mesmo tempo que o
liberalismo – nos meios de comunicação, nas escolas, nos
cursos universitários, no discurso político – procura
lixiviar o pensamento rigoroso e metódico, em particular o de
esquerda, quase todas as suas pérolas eufemísticas se mantêm.
Algumas passaram um pouco de moda (caso dos «invisuais» a troco dos
«cegos»), pela simples razão de não terem provado serem
necessárias à fundamentação e manutenção do sistema. Mas
aquelas capazes de definirem por si mesmas o caroço do regime mantêm-se de pedra e cal.
Um dos mais antigos eufemismos – diria
mesmo a pedra de toque de todo o pensamento liberal – é o
time is money, «tempo é
dinheiro». Temos de concordar que se trata de uma
tirada magistral, até porque
contém
as condições necessárias para entrar na cabeça das pessoas e lá
ficar irredutivelmente alapado.
A habilidade com que este eufemismo elide o factor trabalho,
renomeando-o de forma muito mais abstracta (tempo)
é de se lhe tirar o chapéu. Mesmo as pessoas com um pensamento e
uma prática antiliberais
(perdoe-me alguma excepção
que por aí ande) não
conseguem combatê-lo no dia-a-dia, são contaminadas na sua
coloquialidade – logo, no seu pensamento –
logo, na sua prática social.
«Posso roubar-te algum do teu tempo?» – soa
bem, é delicado, é
gentil, e no entanto qualquer
pessoa avisada devia saber que estamos necessariamente a falar de
cravar trabalho não pago. «Tens
tempo hoje para tratar daquele assunto?» – pimba, mais trabalho
não pago. Sejamos claros:
não está aqui em causa a disponibilidade ou vontade de oferecer
trabalho a alguém que estimamos. A questão essencial é que, ao
elidir-se a noção de trabalho (concreto, material, representado em
forma humana), estamos automaticamente a elidir a noção de respeito
pelo trabalho alheio, ou pelo trabalho em geral. Sobra assim mais
espaço para o respeito pelo lucro.
A pergunta «tens
tempo?» é tão disparatada como a pergunta «tens ar respirável?»
ou «tens sol?» – o tempo
é algo que existe por si
mesmo, independentemente de nós e da nossa vontade, e
não pode (ou não deve) ser objecto de propriedade pessoal.
Mas sobretudo, ao contrário
do sol e do ar, é um
conceito muito mais abstracto
do que
as suas consequências práticas. A
habilidade deste
eufemismo consiste precisamente
em transformar a
nossa força de trabalho, essa
coisa que sendo
material é,
ao mesmo tempo,
exclusivamente nossa,
pessoal, intransmissível (tal
como a vida), em algo que
navega no éter, descaracterizado, impessoal, separado da condição
humana. O desrespeito pela
força de trabalho é correlativo e indissociável do desrespeito
pela vida.
Nos tempos
recentes o discurso neoliberal introduziu outra lapa mental que nem
mesmo os mais atentos conseguem evitar introduzir na sua
coloquialidade: os colaboradores. Este era o eufemismo que faltava
para acabar de vez com uma categoria de pensamento que moía
o juízo liberal:
o trabalhador. Da
força de trabalho já
o liberalismo
se tinha visto livre, substituindo-a por tempo.
Mas estava a ser difícil livrar-se da expressão mais concreta, mais
terra-a-terra, da força de trabalho: o trabalhador. A
invenção da expressão
colaborador, temos de
concordar, foi um golpe de génio na resolução desse problema. Mas
esta solução brilhante só foi possível graças a um
longo processo de destruição
de um certo tipo de
pensamento estruturado.
Um século antes, qualquer pessoa razoavelmente instruída saberia
que colaborar
significa co-laborar e
que laborar, lavrar, labor
significam trabalho... Hoje, em contrapartida, graças a uma
destruição sistemática do pensamento estruturado, creio
não existir um
único aluno de mestrado (quero eu dizer: uma pessoa instruída em
elevado grau) que não diga:
«vou colaborar com a empresa tal». E di-lo precisamente por não
ter a exacta noção do seu papel enquanto força de trabalho, por
não ter qualquer respeito pela sua própria
força de trabalho. Nem
sonha sequer esse tonto mestrando dos dias de hoje que, ao pronunciar
a palavra colaborador,
várias gerações de resistentes antinazis e anti-salazaristas,
entre outros, dão uma volta na tumba.
Dicionário de eufemismos (aceitam-se sugestões e acrescentos):
Força de trabalho
|
Tempo
|
Trabalhador
|
Colaborador
|
Redução salarial
|
Competitividade salarial
|
Crise
|
Desaceleração
|
Cortes nos salários e pensões
|
Reformas estruturais, reajustamentos
|
Saque e privatização da saúde pública
|
Optimização da gestão do sistema de saúde
|
Quebra do contrato social, com cortes e reduções
nas pensões
|
Contribuição especial de solidariedade social
|
Encerramento de postos de saúde e escolas, segundo
o princípio do abandono e desprezo pela periferia
|
Racionalização dos meios disponíveis
|
Trabalho escravo, não remunerado
|
Estágio de um ano; formação profissional
|
País submetido ao neocolonialismo, com imposição
dos modelos económicos dos países hegemónicos do Norte
|
País em vias de desenvolvimento
|
Endividamento público com perda de soberania
|
Ajuda externa
|
Aumento das taxas de lucro, crescimento do
desemprego e redução drástica dos salários
|
Reforma estrutural
|
Eliminação das garantias sociais, políticas e
cívicas, bem como das funções sociais do Estado, consagradas na
lei fundamental
|
Refundação do Estado
|
Desalojamento violento dos habitantes dos bairros de
lata
|
Requalificação urbana
|
Contributos dos
leitores para o dicionário de eufemismos:
Miséria
|
Custos sociais
|
Perda de direitos/pensões/etc.
|
Convergência de direitos/pensões/etc.
|
Empreendedorismo
|
Exploração
|
Cortes na segurança social
|
Consolidação orçamental
|
Despedimento
|
Oportunidade
|
Endividamento com perda de soberania
|
Resgate, auxílio
|
Trabalhadores da função pública
|
Gorduras do estado
|
Despedimentos na função pública
|
Mobilidade especial
|
Aumentos de impostos
|
Aumentos na receita
|
Cortes sociais generalizados
|
Ajustamento
|
|
|
Miséria = "custos sociais"
ResponderEliminarperda de direitos/pensões/etc = "convergência de direitos/pensões/etc"
ResponderEliminarora aqui está mais um eufemismo: chamar empreendedorismo à exploração (serve mesmo é para enganar os putos)
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