21/05/13

Eufemismos: o tempo e o colaborador


De longe e sem concorrente à altura, a mentalidade liberal é a campeã do eufemismo. Ao longo de mais de dois séculos conseguiu eufemizar tudo o que havia de eufemizável.

Desgraçadamente, a eufemização sistemática, enquanto arma política, contém em si mesma um princípio diabólico: provoca a destruição de todo o pensamento estruturado e portanto de tudo o que de bom a civilização ocidental conseguiu criar.



É moda dizer-se que algumas categorias de pensamento metódico e abstracto (como os conceitos de trabalho, capital, mais-valia, esquerda, direita, etc.) estão desactualizadas e já não têm razão de ser. Esta tentativa de lixiviação do pensamento de esquerda no que ele possui de mais rigoroso e metódico não é um acidente avulso – faz parte da lógica de eufemização, com vista a esvaziar todo o pensamento, seja ele de que tipo for. Mortas e enterradas as gerações liberais ainda herdeiras de alguma formação humanista, a barbárie dos seus descendentes neoliberais persegue um fim preciso: a destruição de todo o pensamento estruturado – e fá-lo com a mesma sanha com que persegue a destruição de todas as forças produtivas estruturadas (incluindo a força de trabalho).

É curioso verificar que, ao mesmo tempo que o liberalismo – nos meios de comunicação, nas escolas, nos cursos universitários, no discurso político – procura lixiviar o pensamento rigoroso e metódico, em particular o de esquerda, quase todas as suas pérolas eufemísticas se mantêm. Algumas passaram um pouco de moda (caso dos «invisuais» a troco dos «cegos»), pela simples razão de não terem provado serem necessárias à fundamentação e manutenção do sistema. Mas aquelas capazes de definirem por si mesmas o caroço do regime mantêm-se de pedra e cal.

Um dos mais antigos eufemismos – diria mesmo a pedra de toque de todo o pensamento liberal – é o time is money, «tempo é dinheiro». Temos de concordar que se trata de uma tirada magistral, até porque contém as condições necessárias para entrar na cabeça das pessoas e lá ficar irredutivelmente alapado. A habilidade com que este eufemismo elide o factor trabalho, renomeando-o de forma muito mais abstracta (tempo) é de se lhe tirar o chapéu. Mesmo as pessoas com um pensamento e uma prática antiliberais (perdoe-me alguma excepção que por aí ande) não conseguem combatê-lo no dia-a-dia, são contaminadas na sua coloquialidade – logo, no seu pensamento – logo, na sua prática social. «Posso roubar-te algum do teu tempo?» – soa bem, é delicado, é gentil, e no entanto qualquer pessoa avisada devia saber que estamos necessariamente a falar de cravar trabalho não pago. «Tens tempo hoje para tratar daquele assunto?» – pimba, mais trabalho não pago. Sejamos claros: não está aqui em causa a disponibilidade ou vontade de oferecer trabalho a alguém que estimamos. A questão essencial é que, ao elidir-se a noção de trabalho (concreto, material, representado em forma humana), estamos automaticamente a elidir a noção de respeito pelo trabalho alheio, ou pelo trabalho em geral. Sobra assim mais espaço para o respeito pelo lucro.

A pergunta «tens tempo?» é tão disparatada como a pergunta «tens ar respirável?» ou «tens sol?» – o tempo é algo que existe por si mesmo, independentemente de nós e da nossa vontade, e não pode (ou não deve) ser objecto de propriedade pessoal. Mas sobretudo, ao contrário do sol e do ar, é um conceito muito mais abstracto do que as suas consequências práticas. A habilidade deste eufemismo consiste precisamente em transformar a nossa força de trabalho, essa coisa que sendo material é, ao mesmo tempo, exclusivamente nossa, pessoal, intransmissível (tal como a vida), em algo que navega no éter, descaracterizado, impessoal, separado da condição humana. O desrespeito pela força de trabalho é correlativo e indissociável do desrespeito pela vida.

Nos tempos recentes o discurso neoliberal introduziu outra lapa mental que nem mesmo os mais atentos conseguem evitar introduzir na sua coloquialidade: os colaboradores. Este era o eufemismo que faltava para acabar de vez com uma categoria de pensamento que moía o juízo liberal: o trabalhador. Da força de trabalho já o liberalismo se tinha visto livre, substituindo-a por tempo. Mas estava a ser difícil livrar-se da expressão mais concreta, mais terra-a-terra, da força de trabalho: o trabalhador. A invenção da expressão colaborador, temos de concordar, foi um golpe de génio na resolução desse problema. Mas esta solução brilhante só foi possível graças a um longo processo de destruição de um certo tipo de pensamento estruturado. Um século antes, qualquer pessoa razoavelmente instruída saberia que colaborar significa co-laborar e que laborar, lavrar, labor significam trabalho... Hoje, em contrapartida, graças a uma destruição sistemática do pensamento estruturado, creio não existir um único aluno de mestrado (quero eu dizer: uma pessoa instruída em elevado grau) que não diga: «vou colaborar com a empresa tal». E di-lo precisamente por não ter a exacta noção do seu papel enquanto força de trabalho, por não ter qualquer respeito pela sua própria força de trabalho. Nem sonha sequer esse tonto mestrando dos dias de hoje que, ao pronunciar a palavra colaborador, várias gerações de resistentes antinazis e anti-salazaristas, entre outros, dão uma volta na tumba.

Dicionário de eufemismos (aceitam-se sugestões e acrescentos):
Força de trabalho
Tempo
Trabalhador
Colaborador
Redução salarial
Competitividade salarial
Crise
Desaceleração
Cortes nos salários e pensões
Reformas estruturais, reajustamentos
Saque e privatização da saúde pública
Optimização da gestão do sistema de saúde
Quebra do contrato social, com cortes e reduções nas pensões
Contribuição especial de solidariedade social
Encerramento de postos de saúde e escolas, segundo o princípio do abandono e desprezo pela periferia
Racionalização dos meios disponíveis
Trabalho escravo, não remunerado
Estágio de um ano; formação profissional
País submetido ao neocolonialismo, com imposição dos modelos económicos dos países hegemónicos do Norte
País em vias de desenvolvimento
Endividamento público com perda de soberania
Ajuda externa
Aumento das taxas de lucro, crescimento do desemprego e redução drástica dos salários
Reforma estrutural
Eliminação das garantias sociais, políticas e cívicas, bem como das funções sociais do Estado, consagradas na lei fundamental
Refundação do Estado
Desalojamento violento dos habitantes dos bairros de lata
Requalificação urbana


Contributos dos leitores para o dicionário de eufemismos:
Miséria
Custos sociais
Perda de direitos/pensões/etc.
Convergência de direitos/pensões/etc.
Empreendedorismo
Exploração
Cortes na segurança social
Consolidação orçamental
Despedimento
Oportunidade
Endividamento com perda de soberania
Resgate, auxílio
Trabalhadores da função pública
Gorduras do estado
Despedimentos na função pública
Mobilidade especial
Aumentos de impostos
Aumentos na receita
Cortes sociais generalizados
Ajustamento






fonte da imagem: http://imagina65.blogspot.com/2012/06/la-zona-del-pensamiento-el-arte-del.html

3 comentários:

  1. Miséria = "custos sociais"

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  2. perda de direitos/pensões/etc = "convergência de direitos/pensões/etc"

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  3. ora aqui está mais um eufemismo: chamar empreendedorismo à exploração (serve mesmo é para enganar os putos)

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