«Ninguém é mais escravo do que aquele que considera ser livre sem o ser» (Goethe).
Saber fazer política apenas é dispensável para quem aceite como
projecto de vida a escravidão.
Felizmente fazer política é a coisa mais fácil
do mundo. Não carece de cursos de especialização nem de uma vida
inteira de estudo e investigação, ao contrário do que acontece com a economia, a física quântica, a
criação cinematográfica e muitas outras actividades altamente
especializadas. Fazer política é talvez o acto mais simples do
mundo para quem viva num ambiente social denso. Diria mesmo que fazer
boa política corre o risco de ser mais simples do que fazer bom
sexo.
A abordagem do tema aqui escolhida entra pelo lado
da lógica. Isto não implica a presunção de que a lógica seja um
modo de pensamento superior a qualquer outro (longe de mim tal
ideia!), mas apenas que neste caso, e por agora, seria da maior
conveniência não misturar abordagens diferentes, para evitarmos
erros graves.
O ponto de partida
Qualquer tentativa de solução dos problemas
– ou, mais simplesmente, das situações da vida –
parte sempre de uma pergunta, mesmo que ela não esteja à vista. Por
exemplo: quero comer um ovo estrelado; o que devo fazer e por que
ordem? – ir comprar um ovo, aquecer a frigideira, partir o ovo,
etc. Para um mesmo problema, cada tipo de pergunta que fizermos
conduzir-nos-á a um tipo de resposta diferente.
O primeiro princípio fundamental da lógica
estabelece que domínios diferentes não podem ser misturados. Isto é
fácil de perceber no dia-a-dia: significa que as leis e conclusões
a que chegamos no domínio específico dos mamíferos não podem ser
aplicadas aos peixes; que as regras do futebol não podem ser
aplicadas no basquetebol; e assim por diante.
O nosso ponto de partida será, portanto, o da
separação rigorosa dos domínios.
As 3 perguntas essenciais
Ao falarmos de política, falamos de questões
sociais e ideológicas, de mundividências e formas organizativas da
sociedade. Neste âmbito genérico existem apenas 3 tipos de
perguntas a considerar. Cada uma delas perguntas irá conduzir-nos a
domínios diferentes. É preciso conhecê-las bem, para que os
domínios não se misturem, causando a maior confusão.
É claro que os 3 tipos de perguntas podem ter
imensas variantes. Vamos resumi-las em 3 fórmulas típicas, para
efeitos práticos:
Porquê?
– esta pergunta coloca-nos irremediavelmente no domínio da
fé, ou da
religião,
ou da mítica.
Como? –
esta pergunta coloca-nos no domínio da ciência, da tecnologia ou da
lógica pura.
Para quem?
– pertence ao
domínio político. Quem souber fazer
esta pergunta sabe, automaticamente, fazer política – tão simples
quanto isso.
Talvez estas 3 categorias genéricas pareçam intimidantes à primeira vista. Um exemplo muito simples (e muito clássico) mostra-nos a sua simplicidade: olhemos para o universo que nos rodeia (coisa que os seres humanos não conseguem deixar de fazer pelo menos desde que temos testemunhos culturais da sua existência) e apliquemos as 3 perguntas.
Porque existe
o universo? – a
resposta pertencerá
necessariamente ao domínio
da fé, da religião
ou da mitologia.
Tanto quanto sei, a esmagadora maioria das culturas (para não dizer todas)
colocou esta pergunta e construiu uma resposta, cada qual à sua
maneira. É o caso de um dos
mitos mais maravilhosos e elegantes que conheço, proveniente de
uma determinada cultura africana, sobre a criação das estrelas no
céu; curiosamente, nesta
explicação mítica
encontramos entrelaçada a
demonstração do papel da mulher africana na repartição social
do trabalho. Já no caso da
cultura ocidental monoteísta a resposta consiste numa valente trapalhada, onde se misturam vários mitos de várias
culturas, em prejuízo da simplicidade. Mas em ambos os casos existe
uma mesma entidade totalmente
abstracta, mais
displicente num caso, mais intrusiva no outro, à qual foi atribuída
uma anima
(um sopro, uma vontade todo-poderosa, uma intenção), que um dia,
por desfastio, resolveu criar o universo.
Como se
formou o universo?
– e zás!, ao fazer esta pergunta mergulhamos
a fundo no
domínio da ciência. Todos os tipos de pergunta e resposta têm como condição necessária a inteligência, a
imaginação, a curiosidade. No
caso da pergunta porquê?,
estes elementos são
suficientes;
mas no caso da pergunta como? são necessários milhentos
dados relativos ao próprio objecto da curiosidade; a sua
recolha
pode levar milénios – ou seja, a resposta pode ficar suspensa
durante muito, muito tempo.
Quem
beneficia do universo?,
ou: a quem
pertence o universo?,
ou: … – aí estamos nós em pleno domínio da política. Colocar
esta pergunta
de
forma constante
e
sistemática
significa
fazer política. Assim, por exemplo, quando nos perguntam se achamos
que o actual sistema económico é bom ou mau, existem várias
respostas
legítimas:
a da fé, a
da
ciência,
etc. A
resposta política implica
devolver a pergunta na seguinte forma:
bom ou mau para
quem?
Como
a própria expressão quem
sugere, a
ausência desta
pergunta implica, de forma radical e irremediável, retirar a pessoa
humana de todas as equações.
É
claro que os 3 tipos de pergunta implicam todos eles a capacidade de
fazer outra pergunta prévia: quê?
É ela que define o objecto da curiosidade e do estudo. Sem ela,
corremos o risco de confundir baleias e peixes.
Os templos da fé
Olhando com atenção para os meios de comunicação dominantes, verificamos que a pergunta omnipresente é: porquê?
Os
meios de comunicação mainstream
são, na
actualidade,
os substitutos dos clássicos templos de celebração da fé.
O
sucesso destes templos e oráculos tem a ver com algo extremamente
primitivo, uma constante de toda a humanidade, uma necessidade
compulsiva que encontramos logo numa
fase tenra da infância e
que se expressa
através da mania de perguntar porquê
a propósito de tudo e de nada.
Na
linguagem comum confunde-se muito a natureza da pergunta porquê?,
com como?
e com quem?
Esta confusão deve-se ao simples facto de a escola não fornecer
pistas para a organização do pensamento a este nível. Perante
esta falha,
uns encontram tempo e paciência para resolver a confusão; outros
não.
No
discurso quotidiano da
comunicação
social
a
ausência
da pergunta para
quem?
acarreta a nulidade absoluta duma perspectiva política das coisas;
alimenta a fé, mas não permite resolver qualquer problema social e
político.
Nos
meios de comunicação social mainstream,
como nos templos clássicos,
a pergunta política – directa,
inequívoca –,
é praticamente tabu. Isto não significa que os seus sacerdotes não
defendam um determinado território político. Simplesmente é-lhes
vedado abordar
directamente esse domínio. Trata-se de uma norma de comportamento
não expressa mas muito
eficaz.
Desse ponto de vista, a censura existe hoje
com
renovada
força
nos meios de comunicação social; pouco carece de vigilantes e
censores, como acontece com todas as normas sociais comummente
aceites e
tacitamente impostas – ninguém anda nu na rua (ou pratica qualquer outra
atitude fortemente ofensiva da moral vigente), mesmo sabendo que não existe
polícia a vigiar.
Os terreiros da política
Por
detrás da pergunta para
quem?
escondem-se algumas evidências. Uma delas é o facto de toda a
gente ter interesses próprios. Esses interesses, que
começam por ser
pessoais, podem congregar-se em interesses comuns de grupo. É bom
não esquecer que noutras línguas a palavra interesse
tem um sentido extra
que
foi
elidido na língua portuguesa:
juro.
A
presença do interesse justifica que, se não quisermos
ser prejudicados, temos de colocar a pergunta política perante
certas afirmações e temas:
A
segurança social é insustentável – pergunta: para quem?
Existe
uma crise económica mundial – pergunta: para quem?
Tem
de haver desenvolvimento económico – pergunta: para quem?
A
Europa … – pergunta: qual
Europa de
quem?
O
país … – pergunta: qual
país de
quem?
A
economia … – pergunta: de quem?
A
aplicação das regras … – pergunta: a quem?
Etc.
Fazer
política
começa nessa
pergunta singela. Encontrar uma
resposta política
pode
nalguns
casos requerer
uma quantidade de informação considerável, como acontece com a
ciência. Mas na maior parte dos casos, verdade seja dita, a resposta
pode ser encontrada da maneira mais simples e imediata, se nos
ativermos ao domínio político. O único grande problema, de facto,
provém na maioria das vezes da mistura (ilegítima do ponto de vista
lógico) entre diferentes domínios. Muitas vezes as pessoas
perguntam para
quem?,
mas logo a seguir começam a misturar respostas que nada têm a ver
umas
com as outras –
misturam quem, como, porquê. O resultado é desastroso, faz
lembrar uma espécie de batido de sardinha, cacto e
coco.
Perguntar
porquê
é uma necessidade incontornável do espírito humano; seria uma
batalha perdida e inútil combatê-la. Há apenas que confiná-la ao
seu próprio domínio.
Perguntar
como
é igualmente um impulso inevitável para muitas pessoas. É ele que
nos permite compreender como funciona o universo, como
funciona a circulação sanguínea, como se mete um avião no ar,
como
funciona a economia (e neste particular o estudo marxista da economia já
provou ser inexcedível), etc. Mas seria um erro tremendo pensar que,
ao saber como
funciona a economia capitalista, por
exemplo,
ficamos
aptos para intervir politicamente. Não
existe qualquer aptidão política enquanto não for feita a
pergunta essencial (acompanhada ou não, tanto faz, dos
esclarecimentos da pergunta científica ou
da pergunta de fé):
a
quem, de quem, para quem?
Por
fim, uma última nota: o termo quem
não pode referir-se jamais a entidades inteiramente abstractas (o
que nos faria recair na pergunta da fé) – tem de referir-se a
pessoas de carne e osso, ainda que tomadas num conjunto categorizado
(ou seja, num domínio organizado do pensamento).
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