11/09/13

Uma política para as artes? (5)

[continuação da série sobre artes e cultura; ver artigos (1), (2), (3), (4)]


As condições subjectivas da criação artística

Ao fim do dia, depois de picar o ponto e atravessar o portão, o operário da fábrica de donuts pode pôr literalmente para trás das costas o trabalho e a fábrica. Pode ir para casa e dormir, brincar com os filhos, ver televisão, sem estar a ver em toda a parte e em todos os rostos donuts, sem pensar obsessivamente que outras formas e sabores poderiam ser concebidos, sem congeminar formas mais eficazes e baratas de produção.
Há casos excepcionais de pessoas que escreveram um livro ou fizeram uma performance assinalável mas que, depois disso, nunca mais quiseram ter nada a ver com produção artística. Isso não diminui o valor artístico do que produziram, mas não faz deles caso típico. O típico criador da área das artes é alguém que nunca pica o ponto – está sempre de serviço, e frequentemente durante uma vida inteira. O seu trabalho não se enquadra nos limites de um horário; o seu cérebro é uma máquina que nunca deixa de trabalhar na produção artística. Por vezes afasta-se do trabalho intencionalmente, procurando distracções momentâneas, porque sabe que é durante esse período que o cérebro pode processar uma soma de dados demasiado elevada para ser tratada de forma consciente. Muitas vezes é durante o sono que alguns problemas aparentemente insolúveis encontram solução; e a atenção obsessiva do artista permite-lhe encontrar numa frase casualmente ouvida na rua a solução para um problema criativo.

O artista, tal como o investigador científico, pode chegar ao extremo de assimilar a tal ponto essa disponibilidade contínua para o trabalho, que se torna doentiamente maníaco e obsessivo – não é por isso de estranhar que o público veja no comportamento de alguns artistas (ou cientistas) uma excentricidade. O remédio consiste em, contrariando a indústria dos mass media, prestar muito menos atenção ao autor e toda a atenção à obra.

O ser humano é o único animal cujo cérebro pode consumir a parte maior da energia disponível no corpo – é uma autêntica aberração da natureza, se compararmos com a quantidade de energia consumida pelo cérebro de todos os outros mamíferos. Isto significa que um trabalhador intelectual não consome necessariamente muito menos energia do que uma pessoa que passa o dia a carregar sacos de carvão – simplesmente dirige a energia disponível para outras partes do corpo. Se a isto somarmos o facto de o criador artístico poder estar disponível para o trabalho 24 horas por dia, não é difícil perceber que estamos perante um tipo de força de trabalho ao qual se colocam por vezes problemas particularmente graves de subsistência. A tudo isto soma-se ainda o facto de nalguns casos a intensidade dos dois tipos de trabalho (físico e intelectual) ser concomitante e elevada ao máximo expoente – tal é o caso típico da dança contemporânea. A intensidade do trabalho intelectual e as suas consequências a nível pessoal e de saúde talvez não possam ser medidas; mas o desgaste físico e energético pode ser cientificamente medido e estudado e tem efeitos permanentes – por isso os profissionais da dança há muito tempo pedem a qualificação da dança como profissão de desgaste rápido. Uma grande parte dos bailarinos e bailarinas que conheço sente diariamente esse desgaste, sendo obrigada a custear do seu bolso dietas especiais, consultas regulares a osteopatas e outros expedientes que lhes permitam continuar a exercer e diminuir o efeito do desgaste rápido.

Sejamos claros: do que estamos aqui a falar é do processo de produção artística, não da qualidade final do produto. A «qualidade» é um aspecto ao qual já nos referimos anteriormente, deixando clara a nossa posição: no que se refere à discussão sobre uma política para as artes, a «qualidade» (seja lá o que for que isso queira dizer em cada momento histórico) não pode ser critério forte.

Artes conservadoras e artes de vanguarda

A indústria, numa sociedade de consumo, implica certas condicionantes. Por exemplo, não se pode mudar todos os dias as características do produto. Não faz sentido gastar milhões numa campanha demarketing e publicidade centrada nas características (reais ou fictícias) de um champô e no dia seguinte alterá-las de alto a baixo. Basicamente, a indústria numa sociedade de consumo está virada para a optimização dos recursos e ganhos do capital e não para a optimização do produto ou do bem-estar do consumidor, sendo muito naturalmente um baluarte de conservadorismo e resistência ao progresso.

Os poucos exemplos históricos em que a indústria e o investimento de capitais se gabam de ter aproveitado e lançado novas tecnologias são a excepção que confirma a regra, a peneira que tapa o sol. Tirando esses instantes raros, vemos na maior parte do tempo a indústria opor-se ferozmente (no sentido literal da palavra) à substituição das tecnologias dominantes – na indústria da energia, nos transportes, no audiovisual, etc.

O conservadorismo na indústria é geral, não é particular. Os cortes sofridos pelos institutos de investigação científica quando o objecto do seu labor não importa à indústria dos bens de consumo ecoam nos cortes efectuados no apoio às artes quando elas não servem a indústria do entertainment mainstream.

Isto permite-nos introduzir aqui uma distinção essencial: existe uma diferenciação clara entre a arte industrial ou mainstream, e outros tipos de arte a que, para facilitar, chamaremos de vanguarda e experimental.

Os produtos mainstream têm de obedecer a modelos estéticos e formais constantes; qualquer inovação representa um risco para o capital investido – e se a coisa não pega e o público não compra?

A arte de vanguarda, pelo contrário, caracteriza-se pelo facto de não apostar na eterna repetição do mesmo mote e das mesmas fórmulas.

Quanto mais a indústria e o mainstream habituam os consumidores à constância do produto, mais isolados e encurralados ficam os artistas de vanguarda. Neste processo de habituação a um determinado tipo de produto, a crítica (tal como a conhece o público através dos mass media) desempenha um papel de infantaria de primeira linha.

Quando Hitchcock quis fazer o primeiro filme sonoro produzido na Europa (tinha sido feito um nos EUA pouco antes), o «produtor» fez-lhe um manguito. Apostado em levar por diante o seu projecto inovador, Hitchcock recorreu a um expediente notável: de dia filmava nos moldes aprovados pelo seu «produtor»; de noite, custeando do seu bolso os novos meios técnicos, regressava às escondidas ao estúdio, para filmar tudo de novo – mas desta vez com som. Depois, quando conseguiu os meios para apresentar o seu talking movie numa sala, a crítica arrasou-o completamente, afirmando peremptoriamente tratar-se de uma arte detestável e condenada ao fracasso. Ora essa nova arte do cinema sonoro implicava uma transformação profunda dos meios técnicos, das instalações e estúdios de filmagem, das técnicas e aparelhos de montagem, dos aparelhos de projecção, do apetrechamento das salas de projecção; as equipas técnicas de filmagem tinham de ser alteradas, era preciso contratar mais gente, os custos de produção aumentavam... e nada garantia que o público viesse a acorrer em maior número às salas de projecção, compensando assim os aumentos de custo. A tropa de choque da crítica cumpriu o seu papel, protegendo os capitais da indústria cinematográfica de um aventureiro que lhes podia sair caro.

Quando um artista tem a rara coragem de afirmar que a última coisa em pensa quando participa numa produção artística é o público, a maioria das pessoas (incluindo muitos artistas) fica indignada. Esta indignação é de um absurdo incompreensível que salta à vista se tivermos em conta que o artista está numa situação semelhante à do investigador científico – estará o investigador científico a pensar na recepção do público quando procura novas explicações para os fenómenos da realidade?

[continua no próximo artigo]

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