Vivemos um momento em que aparentemente o
poder dominante também não possui uma política para as artes. Essa
aparência manifesta-se, por exemplo, na extinção do Ministério da
Cultura. Mas, para que as aparências não nos iludam, recordemos que
é possível ter um Ministério da Cultura sem possuir uma estratégia
para a cultura, prosseguindo apenas uma espécie de gestão ou
navegação à vista. Tomar a iniciativa de extinguir o Ministério
da Cultura, pelo contrário, manifesta uma estratégia determinada e
consciente: o vazio institucional revela um propósito – para
o dizermos de forma muito simplificada: o de entregar toda a
iniciativa e controle da produção artística e cultural ao capital
privado – e esse propósito está alinhado com a visão
neoliberal e conservadora da sociedade. O vazio institucional criado
pelos governos neoliberais não corresponde a um vazio de pensamento
sobre as artes; muito pelo contrário revela que a estratégia
neoliberal sabe exactamente o que pretende da produção cultural,
intelectual e artística.
Como pode ter sido tão fácil ao governo de
Passos Coelho extinguir todo um ministério dedicado a um vastíssimo
campo da actividade humana? Fácil: a ausência de um pensamento
revolucionário, ou sequer de esquerda, facilitou a relação de
forças – por falta de comparência do adversário, a relação de
forças pendeu 100% a favor das políticas neoliberais.
O campo assim conquistado pela direita é de uma
vastidão incalculável (no sentido exacto da palavra) e os
explorados irão pagar este erro estratégico com derrotas após
derrotas, com um desnorteamento e uma ausência de projecto geral que
provavelmente já não se viam há 200 anos; as consequências desta
derrota irão reflectir-se estrategicamente em todos os outros campos
de luta social e política.
O que pode significar aqui o termo pensamento
Uma vez que afirmo existir um vazio no pensamento
revolucionário sobre cultura e artes, convém explicar o sentido
atribuído ao termo: além dos sentidos genéricos usuais (papel na
cognição e aprendizagem, etc.), pretendo referir a lenta construção
de uma visão, de um conhecimento e de programas de acção, duma
forma sistemática, numa linha de continuidade ao longo dos anos (e
não recomeçando constantemente do zero), e destaco o seu sentido
etimológico de «pesar» a realidade, colocando-a em constante
confronto com a imagem que dela construímos.
O que salta à vista no vazio geral
É possível que exista literatura e programas
políticos actuais sobre cultura e artes, mas elas não são fáceis
de encontrar na Internet (refiro-me a Portugal, porque doutros países
de língua portuguesa ou castelhana há às carradas), o que não me
facilitou a documentação deste artigo. Aos eventuais autores aqui
esquecidos peço desde já desculpa pela minha ignorância.
Restam-me, como documento, os lugares tradicionais de debate político
e a novel blogosfera, onde vão aparecendo comentários e artigos
dispersos.
Na ausência de construção de um pensamento
sobre artes e cultura, o mais avisado seria que os autores e
cronistas se abstivessem de dizer uma palavra sobre o assunto, para
não asnearem; não o fazendo, o vazio salta ainda mais à vista e
exprime-se numa espantosa repetição de lugares-comuns avulsos,
muitos deles provenientes dos tempos do fascismo. Tudo isso está
expresso em textos de autores que, afirmando-se de esquerda, defendem
formas mais ou menos directas, mais ou menos camufladas, de censura,
e não só – as preocupações mais ventiladas são as seguintes:
- temem dar por mal empregue a parte dos impostos aplicada nos subsídios às artes; para acautelar esses temores permitem-se sugerir ou o corte nos apoios à criação artística ou processos de controle mais ou menos apertado na atribuição de subsídios, tomando por critério o controle dos conteúdos, do estilo, da forma e da estética, e revelando, consoante os casos, um pendor mais ou menos salazarista, estalinista, maoista, etc.;
- sugerem o critério de bilheteira (ou, para usar um termo mais modernaço, de audiência) como condição de atribuição de subsídios;
- nitidamente não têm a mais ténue noção das questões envolvidas na distinção entre artes comerciais ou mainstream e investigação artística e de vanguarda; [Nota: Esta espantosa inocência acontece 100 anos depois de Gramsci e de sucessivas gerações de debate e análise sobre cultura e artes, depois do debate dos anos 60, depois...]
- nitidamente estão convencidos de que é possível criar um sistema quase matemático em que apenas sejam pagas ou subsidiadas as obras tendencialmente «geniais»; por outras palavras, não possuem qualquer noção sobre a filtragem exercida pelo tempo na totalidade do acervo criativo duma cultura, não têm a mínima noção de que para escrever em tempos idos um romance que hoje consideramos um marco histórico ou uma obra-prima foi necessário que se escrevessem centenas de coisas absolutamente desinteressantes, as quais entretanto sumiram nas vísceras do tempo; não se dão conta (espero eu) de que na total impossibilidade de compatibilizar um modelo matemático com a actividade criativa, o único resultado possível desse critério é o apadrinhamento oficial de uns quantos autores que sirvam os interesses propagandísticos dominantes;
- assumem o lugar-comum (bastante salazarista e folclórico) de que as artes subsidiadas devem «ser para o povo» (pergunto-me quem será esse gajo?); seguindo a opinião destes ilustres opinadores, todo o criador individual ou colectivo ficaria reduzido a fazer o que «o povo» sabe fazer (ou seja, mais do mesmo); isto é não só uma aplicação do famoso princípio da democratização por redução à média baixa, mas sobretudo uma negação sumária de toda a obra criativa que nasça das mudanças sociais, culturais e tecnológicas, ou até que as ponha a nu – é um conservadorismo ferrenho e entranhado;
- não fazem a mais pequena ideia de que uma obra mais ou menos criativa subsidiada e sujeita ao controle criterioso do Estado não se chama arte, chama-se propaganda;
- falam de cor, não estudaram a história concreta das artes e do apoio às artes nos últimos 40 anos; isso não lhes permite ver que é possível um instituto de apoio às artes apostar no trabalho e na produção artística em si mesmos (e não em «critérios» de conteúdo e «qualidade»), até ao limite das verbas disponíveis;
- estranhamente, o já mencionado amor às audiências e à arte para «o povo» não impede muitos opinadores de zurzir na música pimba (a única capaz de encher em pleno qualquer terreiro de aldeia); por outras palavras, assumem muito naturalmente que o seu critério ideológico, moral e estético pessoal é o critério «do povo»; esta duplicidade de critérios revela à exaustão o vazio de pensamento sobre o assunto e uma potencial arrogância censória;
- facilmente acusam uma obra de ser «feia» ou «bonita», o que é o critério mais estúpido e idiossincrático que se pode invocar à face da terra no século XXI, com o devido respeito pelos filósofos clássicos (se calhar há 60 anos atrás não se coibiam de dizer: «é feio como um preto da Guiné»... nem hoje de dizer: «é belo como um negro escultural»...); mas como, apesar de tudo (aleluia!) ainda têm uma vaga intuição de que não cai bem na era pós-moderna essa invocação sacerdotal do bem e do mal, do feio e do belo, fazem-na através de eufemismos e circunlóquios – há muitos, para todos os gostos, mas um agora muito na moda é o «escatológico».
Os velhos do Restelo
A incapacidade de reconhecer e aceitar o filtro do
tempo anda de braço dado com a incapacidade de compreender que, para
realizar um salto qualitativo, é muitas vezes necessária uma
formidável acumulação quantitativa – assim sucede no caso das
artes. Certamente a acumulação quantitativa não basta, por si só,
para garantir saltos qualitativos – uma série de outros factores
entram aqui em jogo, entre os quais avulta a introdução de novas
técnicas e a construção de um pensamento inovador.
No que diz respeito ao filtro do tempo, a criação
artística não difere de outros modos de criação intelectual: a
mesma filtragem ocorre na ciência, na filosofia, na teoria política,
etc. Sabemos que montes de teorias científicas existiram no passado
e foram abandonadas. Sabemos também que não é normal vir um velho
do Restelo tentar ressuscitar a teoria de que a Terra é plana, ou de
que as mosquinhas da fruta nascem por geração espontânea – o
filtro do tempo faz aí o seu trabalho com grande limpeza. Mas em
relação às artes, a política e a teoria pululam de velhos do
Restelo. A maior parte do que leio e ouço nos meios de comunicação
social (no sentido lato contemporâneo) releva de uma visão das
artes que foi morta e enterrada logo no início do século XX – no
entanto, parece não haver forma de enterrar de vez os seus velhos do
Restelo: «A que novos desastres determinas / De levar estes reinos e
esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo dalgum
nome preminente? / Que promessas de reinos, e de minas / D'ouro, que
lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? que
histórias? / Que triunfos, que palmas, que vitórias?» [Camões, Os
Lusíadas, canto IV, 97]
Que os sectores
políticos conservadores incorram numa atitude conservadora em
relação às artes, ça va de soi.
Mas que os sectores de esquerda dita revolucionária – por
vezes com uma violência intelectual e
política que pode ferir de
morte a criatividade contemporânea –
queiram perpetuar à força as estéticas pré-Méliès,
pré-futurismo, pré-cubismo, pré-Hugo
Ball, pré-Pierre Schaeffer,
… é um absurdo.
Os
sectores da esquerda do Restelo libertam o neoliberalismo de um
enorme peso: o de ter de
lutar contra modelos e
estéticas que ponham em causa seja que aspecto for do
modelo dominante de
sociedade, à excepção daqueles aspectos que já estão tão
desadequados ao modelo de produção e exploração actual, que os
próprios conservadores apostam na sua denúncia; poupa-os à
necessidade de lutar contra qualquer forma quotidiana de subversão
que não esteja enquadrada na pobre quadratura da política em
sentido estrito; poupa-os ao
trabalho de impor pela força
uma máquina propagandística mascarada de arte.
A única trabalheira que resta ao poder dominante é a de organizar
comercialmente uma produção artística inteiramente dedicada
ao consumismo acéfalo –
e mesmo nisso podem contar com o contributo de incontáveis teóricos,
políticos, sindicalistas e comentadores de esquerda.
O filtro do tempo e a importância do trabalho
O filtro do tempo
é bidireccional. Por um lado filtra o inútil,
o desinteressante, o banal, deixando passar para a posteridade o que
interessa. Mas «o que interessa», ainda assim, está durante algum
tempo sujeito aos ditames do poder – a máquina
institucional da memória
tende a favorecer
a memória do poder
dominante. Felizmente, por outro lado, o filtro do tempo funciona
também em
direcção oposta, permitindo
ir buscar ao passado o que
foi injustamente deitado para o lixo. Assim foram recuperadas muitas
obras hoje consagradas ou tidas por essenciais, mas durante
muitos anos escondidas numa montanha de lixo. O problema, porém,
está em saber se alguém já despejou o saco do lixo, ou se ele
ainda está
ali à mão de vasculhar. Se alguém já deitou fora o saco do lixo,
então podemos ter perdido algo muito precioso.
E é precisamente
aqui que entra em cena o primeiro princípio institucional que
devemos preservar: se destruirmos (ou até
se diminuirmos) a biblioteca
nacional, a cinemateca nacional, a hemeroteca nacional, enfim, todos
os tipos de arquivo local
e geral
dependentes do orçamento de Estado – como
o actual governo está a fazer –,
estaremos a deitar fora um saco que, embora possa estar cheio de
lixo, em muitos casos contém valores inestimáveis para o conjunto
da sociedade e que podem ser repescados a qualquer instante.
O conceito de
«filtro do tempo» aqui
proposto talvez seja
demasiado
poético na forma e complexo na definição. Para quem prefere saltar
directamente para as 3 linhas finais
da punch line, e obter
uma fórmula simples e prática de
aplicação imediata e
pré-cozinhada, posso
fornecer a mesma ideia de forma simplificada:
Quando escreves
um livro, quando pintas um quadro, quando dizes uma piada, o que é
que preferes? – o reconhecimento no curto prazo imediato ou o
reconhecimento no longo prazo possível?
Postas as coisas
nestes termos, é fácil (espero
eu) perceber as razões da
escolha neoliberal e capitalista: o
capital preferirá sempre o que lhe rende juros
no curto prazo imediato. É
igualmente fácil perceber (continuo
a esperar)
a necessidade imperiosa de preservar a memória e o acervo da
produção intelectual e artística. É menos fácil, mas ainda assim
tenho esperança de que seja possível, perceber porque não pode uma
instituição dedicada ao apoio às artes basear-se em critérios de
«qualidade», conteúdo, estética, etc., devendo favorecer
simplesmente os autores que demonstram a capacidade de realizar um
trabalho continuado de investigação, inovação ou... simplesmente
trabalho.
obrigada por tudo o que está aqui escrito
ResponderEliminar