06/09/13

Uma política para as artes? (1)

Uma polémica recente na blogosfera a propósito de uma performance reacendeu-me na memória um facto que quanto mais se afirma mais tende a tornar-se invisível: há na cultura portuguesa actual um vazio, uma ausência de pensamento revolucionário sobre as artes e a cultura – e portanto uma ausência de programa entre as hostes que pretendem construir uma sociedade nova e melhor.


Vivemos um momento em que aparentemente o poder dominante também não possui uma política para as artes. Essa aparência manifesta-se, por exemplo, na extinção do Ministério da Cultura. Mas, para que as aparências não nos iludam, recordemos que é possível ter um Ministério da Cultura sem possuir uma estratégia para a cultura, prosseguindo apenas uma espécie de gestão ou navegação à vista. Tomar a iniciativa de extinguir o Ministério da Cultura, pelo contrário, manifesta uma estratégia determinada e consciente: o vazio institucional revela um propósito – para o dizermos de forma muito simplificada: o de entregar toda a iniciativa e controle da produção artística e cultural ao capital privado – e esse propósito está alinhado com a visão neoliberal e conservadora da sociedade. O vazio institucional criado pelos governos neoliberais não corresponde a um vazio de pensamento sobre as artes; muito pelo contrário revela que a estratégia neoliberal sabe exactamente o que pretende da produção cultural, intelectual e artística.
Como pode ter sido tão fácil ao governo de Passos Coelho extinguir todo um ministério dedicado a um vastíssimo campo da actividade humana? Fácil: a ausência de um pensamento revolucionário, ou sequer de esquerda, facilitou a relação de forças – por falta de comparência do adversário, a relação de forças pendeu 100% a favor das políticas neoliberais.
O campo assim conquistado pela direita é de uma vastidão incalculável (no sentido exacto da palavra) e os explorados irão pagar este erro estratégico com derrotas após derrotas, com um desnorteamento e uma ausência de projecto geral que provavelmente já não se viam há 200 anos; as consequências desta derrota irão reflectir-se estrategicamente em todos os outros campos de luta social e política.


O que pode significar aqui o termo pensamento

Uma vez que afirmo existir um vazio no pensamento revolucionário sobre cultura e artes, convém explicar o sentido atribuído ao termo: além dos sentidos genéricos usuais (papel na cognição e aprendizagem, etc.), pretendo referir a lenta construção de uma visão, de um conhecimento e de programas de acção, duma forma sistemática, numa linha de continuidade ao longo dos anos (e não recomeçando constantemente do zero), e destaco o seu sentido etimológico de «pesar» a realidade, colocando-a em constante confronto com a imagem que dela construímos.


O que salta à vista no vazio geral

É possível que exista literatura e programas políticos actuais sobre cultura e artes, mas elas não são fáceis de encontrar na Internet (refiro-me a Portugal, porque doutros países de língua portuguesa ou castelhana há às carradas), o que não me facilitou a documentação deste artigo. Aos eventuais autores aqui esquecidos peço desde já desculpa pela minha ignorância. Restam-me, como documento, os lugares tradicionais de debate político e a novel blogosfera, onde vão aparecendo comentários e artigos dispersos.
Na ausência de construção de um pensamento sobre artes e cultura, o mais avisado seria que os autores e cronistas se abstivessem de dizer uma palavra sobre o assunto, para não asnearem; não o fazendo, o vazio salta ainda mais à vista e exprime-se numa espantosa repetição de lugares-comuns avulsos, muitos deles provenientes dos tempos do fascismo. Tudo isso está expresso em textos de autores que, afirmando-se de esquerda, defendem formas mais ou menos directas, mais ou menos camufladas, de censura, e não só – as preocupações mais ventiladas são as seguintes:
  • temem dar por mal empregue a parte dos impostos aplicada nos subsídios às artes; para acautelar esses temores permitem-se sugerir ou o corte nos apoios à criação artística ou processos de controle mais ou menos apertado na atribuição de subsídios, tomando por critério o controle dos conteúdos, do estilo, da forma e da estética, e revelando, consoante os casos, um pendor mais ou menos salazarista, estalinista, maoista, etc.;
  • sugerem o critério de bilheteira (ou, para usar um termo mais modernaço, de audiência) como condição de atribuição de subsídios;
  • nitidamente não têm a mais ténue noção das questões envolvidas na distinção entre artes comerciais ou mainstream e investigação artística e de vanguarda; [Nota: Esta espantosa inocência acontece 100 anos depois de Gramsci e de sucessivas gerações de debate e análise sobre cultura e artes, depois do debate dos anos 60, depois...]
  • nitidamente estão convencidos de que é possível criar um sistema quase matemático em que apenas sejam pagas ou subsidiadas as obras tendencialmente «geniais»; por outras palavras, não possuem qualquer noção sobre a filtragem exercida pelo tempo na totalidade do acervo criativo duma cultura, não têm a mínima noção de que para escrever em tempos idos um romance que hoje consideramos um marco histórico ou uma obra-prima foi necessário que se escrevessem centenas de coisas absolutamente desinteressantes, as quais entretanto sumiram nas vísceras do tempo; não se dão conta (espero eu) de que na total impossibilidade de compatibilizar um modelo matemático com a actividade criativa, o único resultado possível desse critério é o apadrinhamento oficial de uns quantos autores que sirvam os interesses propagandísticos dominantes;
  • assumem o lugar-comum (bastante salazarista e folclórico) de que as artes subsidiadas devem «ser para o povo» (pergunto-me quem será esse gajo?); seguindo a opinião destes ilustres opinadores, todo o criador individual ou colectivo ficaria reduzido a fazer o que «o povo» sabe fazer (ou seja, mais do mesmo); isto é não só uma aplicação do famoso princípio da democratização por redução à média baixa, mas sobretudo uma negação sumária de toda a obra criativa que nasça das mudanças sociais, culturais e tecnológicas, ou até que as ponha a nu – é um conservadorismo ferrenho e entranhado;
  • não fazem a mais pequena ideia de que uma obra mais ou menos criativa subsidiada e sujeita ao controle criterioso do Estado não se chama arte, chama-se propaganda;
  • falam de cor, não estudaram a história concreta das artes e do apoio às artes nos últimos 40 anos; isso não lhes permite ver que é possível um instituto de apoio às artes apostar no trabalho e na produção artística em si mesmos (e não em «critérios» de conteúdo e «qualidade»), até ao limite das verbas disponíveis;
  • estranhamente, o já mencionado amor às audiências e à arte para «o povo» não impede muitos opinadores de zurzir na música pimba (a única capaz de encher em pleno qualquer terreiro de aldeia); por outras palavras, assumem muito naturalmente que o seu critério ideológico, moral e estético pessoal é o critério «do povo»; esta duplicidade de critérios revela à exaustão o vazio de pensamento sobre o assunto e uma potencial arrogância censória;
  • facilmente acusam uma obra de ser «feia» ou «bonita», o que é o critério mais estúpido e idiossincrático que se pode invocar à face da terra no século XXI, com o devido respeito pelos filósofos clássicos (se calhar há 60 anos atrás não se coibiam de dizer: «é feio como um preto da Guiné»... nem hoje de dizer: «é belo como um negro escultural»...); mas como, apesar de tudo (aleluia!) ainda têm uma vaga intuição de que não cai bem na era pós-moderna essa invocação sacerdotal do bem e do mal, do feio e do belo, fazem-na através de eufemismos e circunlóquios – há muitos, para todos os gostos, mas um agora muito na moda é o «escatológico».


Os velhos do Restelo

A incapacidade de reconhecer e aceitar o filtro do tempo anda de braço dado com a incapacidade de compreender que, para realizar um salto qualitativo, é muitas vezes necessária uma formidável acumulação quantitativa – assim sucede no caso das artes. Certamente a acumulação quantitativa não basta, por si só, para garantir saltos qualitativos – uma série de outros factores entram aqui em jogo, entre os quais avulta a introdução de novas técnicas e a construção de um pensamento inovador.
No que diz respeito ao filtro do tempo, a criação artística não difere de outros modos de criação intelectual: a mesma filtragem ocorre na ciência, na filosofia, na teoria política, etc. Sabemos que montes de teorias científicas existiram no passado e foram abandonadas. Sabemos também que não é normal vir um velho do Restelo tentar ressuscitar a teoria de que a Terra é plana, ou de que as mosquinhas da fruta nascem por geração espontânea – o filtro do tempo faz aí o seu trabalho com grande limpeza. Mas em relação às artes, a política e a teoria pululam de velhos do Restelo. A maior parte do que leio e ouço nos meios de comunicação social (no sentido lato contemporâneo) releva de uma visão das artes que foi morta e enterrada logo no início do século XX – no entanto, parece não haver forma de enterrar de vez os seus velhos do Restelo: «A que novos desastres determinas / De levar estes reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas / Debaixo dalgum nome preminente? / Que promessas de reinos, e de minas / D'ouro, que lhe farás tão facilmente? / Que famas lhe prometerás? que histórias? / Que triunfos, que palmas, que vitórias?» [Camões, Os Lusíadas, canto IV, 97]
Que os sectores políticos conservadores incorram numa atitude conservadora em relação às artes, ça va de soi. Mas que os sectores de esquerda dita revolucionária – por vezes com uma violência intelectual e política que pode ferir de morte a criatividade contemporânea – queiram perpetuar à força as estéticas pré-Méliès, pré-futurismo, pré-cubismo, pré-Hugo Ball, pré-Pierre Schaeffer, … é um absurdo.
Os sectores da esquerda do Restelo libertam o neoliberalismo de um enorme peso: o de ter de lutar contra modelos e estéticas que ponham em causa seja que aspecto for do modelo dominante de sociedade, à excepção daqueles aspectos que já estão tão desadequados ao modelo de produção e exploração actual, que os próprios conservadores apostam na sua denúncia; poupa-os à necessidade de lutar contra qualquer forma quotidiana de subversão que não esteja enquadrada na pobre quadratura da política em sentido estrito; poupa-os ao trabalho de impor pela força uma máquina propagandística mascarada de arte. A única trabalheira que resta ao poder dominante é a de organizar comercialmente uma produção artística inteiramente dedicada ao consumismo acéfalo – e mesmo nisso podem contar com o contributo de incontáveis teóricos, políticos, sindicalistas e comentadores de esquerda.


O filtro do tempo e a importância do trabalho

O filtro do tempo é bidireccional. Por um lado filtra o inútil, o desinteressante, o banal, deixando passar para a posteridade o que interessa. Mas «o que interessa», ainda assim, está durante algum tempo sujeito aos ditames do poder – a máquina institucional da memória tende a favorecer a memória do poder dominante. Felizmente, por outro lado, o filtro do tempo funciona também em direcção oposta, permitindo ir buscar ao passado o que foi injustamente deitado para o lixo. Assim foram recuperadas muitas obras hoje consagradas ou tidas por essenciais, mas durante muitos anos escondidas numa montanha de lixo. O problema, porém, está em saber se alguém já despejou o saco do lixo, ou se ele ainda está ali à mão de vasculhar. Se alguém já deitou fora o saco do lixo, então podemos ter perdido algo muito precioso.
E é precisamente aqui que entra em cena o primeiro princípio institucional que devemos preservar: se destruirmos (ou até se diminuirmos) a biblioteca nacional, a cinemateca nacional, a hemeroteca nacional, enfim, todos os tipos de arquivo local e geral dependentes do orçamento de Estado – como o actual governo está a fazer –, estaremos a deitar fora um saco que, embora possa estar cheio de lixo, em muitos casos contém valores inestimáveis para o conjunto da sociedade e que podem ser repescados a qualquer instante.
O conceito de «filtro do tempo» aqui proposto talvez seja demasiado poético na forma e complexo na definição. Para quem prefere saltar directamente para as 3 linhas finais da punch line, e obter uma fórmula simples e prática de aplicação imediata e pré-cozinhada, posso fornecer a mesma ideia de forma simplificada:
Quando escreves um livro, quando pintas um quadro, quando dizes uma piada, o que é que preferes? – o reconhecimento no curto prazo imediato ou o reconhecimento no longo prazo possível?
Postas as coisas nestes termos, é fácil (espero eu) perceber as razões da escolha neoliberal e capitalista: o capital preferirá sempre o que lhe rende juros no curto prazo imediato. É igualmente fácil perceber (continuo a esperar) a necessidade imperiosa de preservar a memória e o acervo da produção intelectual e artística. É menos fácil, mas ainda assim tenho esperança de que seja possível, perceber porque não pode uma instituição dedicada ao apoio às artes basear-se em critérios de «qualidade», conteúdo, estética, etc., devendo favorecer simplesmente os autores que demonstram a capacidade de realizar um trabalho continuado de investigação, inovação ou... simplesmente trabalho.


[continua no próximoartigo]


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