03/01/14

Quem não sabe da metodologia e dos princípios não devia armar-se em docente do ensino superior

Um artigo de Mário Branco sobre o direito ao trabalho deu-me volta ao estômago. O que me provoca engulhos em «Direito ao Trabalho (4ª parte)» é sobretudo (porque muito mais haveria a apontar) o seguinte:
  1. A ideia de que vivemos numa sociedade livre, e de que a liberdade pode ser definida em função da liberdade de votar, de ser eleitor e de pedir responsabilidades aos eleitos (no acto eleitoral seguinte, supõe-se).
  2. A ideia de que todo o cidadão é culpado até prova em contrário.
  3. A ideia de que o trabalho é, e deve continuar a ser, um importante factor de socialização, aprendizagem e disciplinamento social.
Sobre o primeiro ponto não vou deter-me desta feita. Nos dois pontos seguintes reside a causa principal do meu enojamento, e é aí que quero centrar-me.


Duas formas de abordar os temas sociais e políticos

Existe uma forma de abordar os problemas sociais e respectivas soluções que consiste em mascarar e emudecer as questões de fundo, entrando imediatamente nas minudências da execução e da aplicação prática. Esta solução oferece uma vantagem: a todo o instante temos à mão um apetrecho expedito e útil ao poder executivo. É claro, porém, que nenhum apetrecho, lá por calar questões de princípio, pode fugir a elas – e portanto, com toda a probabilidade, o que esse apetrecho está a fazer é perpetuar tacitamente os princípios e o regime vigentes, proporcionando-lhes contudo uma nova máscara.

Outra forma de abordar os problemas sociais e políticos consiste em pôr à cabeça da discussão as questões gerais de princípio, sem cuidar de desenhar as minudências da vida, sem querer abrir processos de intenção aos vindouros, e deixar que esses princípios se corporizem naturalmente em linhas de orientação prática. Sobre esta última fase, seus perigos, correcção e incorrecção dos seus métodos muito mais haveria a dizer, mas como isto não pretende ser um manual de militância organizada, passo adiante.

Mário Branco coloca no seu artigo a seguinte questão: quando entregues a si próprios, os desempregados tornam-se uns irresponsáveis sociais, bandidos, assaltantes de supermercados, pais e mães ausentes, deixam de ajudar as velhinhas a atravessar a rua, dão mau aspecto às nossas belas ruas da nossa bela arquitectura alicerçada nas nossas belas propriedades privadas do solo urbano, e se lhes dermos um subsídio de sobrevivência isso então é o fim do mundo, nunca mais na vida querem trabalhar, sentam-se no chão da rua a fazer pouco de quem passa, gastam o dinheiro todo que lhes demos em álcool e drogas em vez de comprarem casinhas e telemóveis, e quando nós quisermos comprar uma casinha e um telemóvel vai ser um desatino, um regresso à idade da pedra, porque já não haverá casinhas e telemóveis, porque os madraços dos desempregados subsidiados já não querem produzi-las. É caso para perguntar se o artigo de Mário Branco não terá por acaso sido encomendado por Paulo Portas.

Para defender a sua tese calamitosa, Mário Branco vale-se de uns quantos estudos académicos ou de campo (suponho eu, mas tenho de confessar, enquanto é tempo, que não fui consultar a bibliografia fornecida). É claro que qualquer pessoa minimamente informada sabe que é possível apresentar outros tantos estudos e experiências de campo a contrario, onde se prova que n+1 indigentes se tornaram excelentes pessoas e cidadãos (segundo os moldes sociais, ideológicos e económicos dominantes, quero eu dizer) quando lhes foi posto na mão um rendimento mínimo sem condições, e portanto tudo isto resulta numa conversa fútil, interminável, inconclusiva e sem qualquer interesse.

Sejamos honestos: de todo não é possível provar que em qualquer época, em qualquer país e em qualquer cultura um indivíduo sujeito a desemprego prolongado, com ou sem subsídio, se torna um indivíduo decadente, ou mesmo um sociopata. Aliás, querer reduzir o comportamento e a personalidade cada pessoa concreta a um caso geral uniforme é pouco menos que fascizante. 
 
A questão essencial perante a qual nos deparamos aqui é a seguinte: por detrás das afirmações de Mário Branco existe um princípio fundamental tácito: toda a gente é culpada até prova em contrário. O meu pressuposto de partida é o oposto: toda a gente é inocente até prova em contrário. E aqui torna-se claro até que ponto eu e Mário Branco nos situamos em lados opostos da barricada – entre outras coisas, é para mapear posições que servem os grandes princípios gerais.

Olhemos com mais atenção para esta declaração – «toda a gente é inocente até prova em contrário». Ela define os factores de culpabilidade e inocência, para qualquer época, região, regime ou circunstância? – não, é uma declaração genérica; permite, quaisquer que sejam os usos e costumes locais, quaisquer que sejam os usos e abusos do poder, manter uma posição genérica de princípio: a priori sou inocente, seja lá o que for o carácter da culpa e da inocência na sociedade em que me insiro. É culpável hoje manifestar afecto para com as crianças? – pois bem, serei inocente dessa culpa até prova em contrário. É culpável amanhã não mostrar afecto para com as crianças? – serei inocente até prova em contrário. No meu sistema de princípios, as circunstâncias mudam, os princípios mantêm-se. Os princípios e os direitos não são negociáveis, como explico no meu post anterior, e essa é a única segurança ao nosso dispor, a única coisa que nos pode salvar dos erros pontuais e objectivos que possamos cometer. É indesculpável que um docente académico, carregado que nem uma mula de cadeiras metodológicas e obras publicadas, não entenda isto.

Olhemos agora para a declaração oposta – «toda a gente é culpada até prova em contrário». Neste caso tão-pouco importa o carácter específico da culpa e da inocência, pois trata-se igualmente duma declaração genérica de princípio. Se for culpável não ter um trabalho, sou culpado a priori, devendo apresentar prova em contrário quando e sempre que necessário. Se for culpável trabalhar numa empresa que polui as toalhas freáticas, sou culpado a priori, devendo apresentar prova de que a empresa onde trabalho não polui as águas. Por outro lado, se eu não trabalhar, encontrar-me-ei exactamente na mesma situação – sou considerado culpado a priori. Imagino que Mário Branco, na estreiteza planar de um trabalhador esforçado que dedica certamente 12 a 14 horas por dia à investigação académica, nem sonhe que, no caso de alguém com carácter semelhante ao meu, o princípio da culpa a priori pode ser um grande incentivo ao não trabalho, visto que a carga de trabalhos e conflitos sociais resultante de ambos os casos (trabalhar ou não trabalhar), do ponto de vista de um cidadão politicamente consciente, é exactamente a mesma.


O trabalho é uma disciplina (e a escola é a preparação para a disciplina do trabalho, já agora)

Uma breve nota acerca do terceiro ponto: o efeito disciplinador e socializante do trabalho. Tem mesmo de ser uma nota breve, pois é evidente que a incapacidade para compreender certas coisas elementares da vida exigiria um curso de vários meses ou anos, não bastando um simples artigo. 
 
É claro que o trabalho é uma disciplina e é socializante!, ora bolas para a grande descoberta! Não é isso que ponho em causa. O trabalho, numa sociedade capitalista, é como o ar que respiramos – está em toda a parte, mesmo quando fazemos separação de lixo em casa; e quando não há trabalho, as pessoas sufocam.  O que eu ponho em causa é a própria sociedade para a qual me querem socializar! O que Mário Branco me pede é que eu, a fim de me integrar plenamente na sociedade, a fim de fazer ombro com ombro com os outros trabalhadores e marcharmos todos juntos em direcção ao pôr do sol, como os cowboys, me sujeite a regras rituais que eu quero destruir, sendo que quero destruí-las não virtualmente nas páginas virtuais de um blog, não na virtualidade da teoria livresca, não no sonho esperançoso numa suposta geração futura, mas agora, já, através de cada uma das pequenas acções que me forem possíveis. Eu não quero ser praxado, eu sou contra as praxes! Não sei se isto é compreensível para os Mário Branco deste mundo, mas vamos tentar espevitar a visão das coisas recorrendo a um contexto ligeiramente diferente – isto é, saindo da floresta em que nos encontramos embrenhados.

Em Israel, conforme atestam numerosos testemunhos, só existe uma forma eficaz de socialização: cumprir o serviço militar. Quem não cumpre o serviço militar (pode fazê-lo, a muito custo, com muito sofrimento e com alguma perda de cidadania) torna-se um pária, à semelhança dos nossos vagabundos. Terá a maior dificuldade em constituir família, em encontrar trabalho. Os contactos e amizades necessários ao desenvolvimento da vida adulta plena (plena, entenda-se, segundo o modelo dominante) são todos feitos no final da adolescência, em ambiente de caserna, a dar tiros nos putos que se aproximam do muro de Israel, a dar pontapés nos velhos que passam na rua como motivo de diversão, e outras coisas que tais. Passada esta prova ritual, o cidadão atingiu os dois objectivos pretendidos: 1) assimilou até ao tutano uma certa maneira de pensar, estar e relacionar-se em sociedade; 2) está pronto a ser integrado na sociedade civil e tornar-se uma pessoa «responsável».

Dirão: o que se passa em Israel é horrível, não pode ser comparado com o que se passa na nossa sociedade. É verdade que duas culturas não podem nem devem jamais ser comparadas, mas o meu exemplo não tinha essa intenção; pretendia apenas chamar a atenção para o seguinte: do ponto de vista da maioria dos israelitas, o que lá se passa é normal; da mesma maneira que, para a maioria das pessoas na nossa sociedade, o que cá se passa é normal. Não é preciso tirar um curso de antropologia, outro de sociologia e mais outro de história para perceber que, dentro de cada sociedade ou cultura, o que lá se passa é normal (e já agora também um curso de estatística e outro de filosofia, para perceber o que é uma norma). O que não é normal, precisamente, é pôr-se em causa o que lá se passa. E quando isto acontece, quando se põe em causa a normalidade duma sociedade, é quando os cães começam a ser atiçados, as campanhas mediáticas a bombardear massivamente a opinião pública, os artigos académicos a ser encomendados às dúzias, etc.


Ainda agora o debate vai no adro

Nesta coisa da polémica sobre o direito ao trabalho, terreiro onde aliás se encontram pessoas pelas quais tenho a maior estima e consideração, desculpem que lhes diga, mas o debate encontra-se ainda a um nível miseravelmente básico, entravado por preconceitos onde se tropeça a todo o instante, com grande produção de nódoas negras e luxações. Há que trabalhar muito mais, de preferência no recato da casa, da biblioteca e das tertúlias, para chegar a alguma coisa parecida com uma conclusão apresentável em público e que não seja uma lastimável versão revista e embelezada do velho capitalismo. Nestas condições, querer correr a apresentar conclusões e grandes directivas para a populaça sobre a questão do trabalho é o mesmo que ter uma pulsão para fazer figura de tolo.

Custa-me imenso que pessoas por quem tenho tão elevada consideração se metam irreflectidamente a dizer coisas tão horripilantes a propósito do trabalho na sociedade contemporânea.

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