Tudo o que de importante havia a dizer sobre a
oferta duma cátedra a Passos Coelho já foi dito – o oportunismo,
o carreirismo, a trafulhice administrativa, o compadrio elitista e
partidário; enfim tudo foi já suficientemente esmiuçado. E se um
desses professores que há décadas aguardam em vão o acesso à
cátedra, em desespero de causa e ao ver-se ultrapassado por um
simples licenciado, abraçasse o terrorismo como solução de todos
os seus males, poderia contar com a minha compreensão, ainda que não
com a minha simpatia. Compreende-se também a indignação dos 28
professores que assinaram uma petição pública, argumentando que «A
atribuição do grau de catedrático a Pedro Passos Coelho, mesmo sem
cadeira designada, constitui um atropelo flagrante ao estatuto da
carreira docente universitária em Portugal» (ver aqui
e aqui).
Contudo há um aspecto contextual que não deve ser ignorado: não
estamos a falar duma escola universitária qualquer, trata-se do
ISCSP – um facto que torna a cátedra justificável, como passarei
a explicar.
O ISCSP é um caso à parte, não é um instituto académico «normal». É uma espécie de reserva natural protegida onde se alberga uma larga variedade de espécies fascistas e fascistoides. Depois de passar por um período em que foi morto e enterrado pelo «período de grande turbulência» revolucionária (cito o auto-historial da instituição) de 1974-1975, o ISCSP «ressurgiu plenamente» (ibidem) qual zombie, no dealbar da era neoliberal (1980), orientado pelo seu antigo reitor Adriano Moreira – ex-ministro do Ultramar, reitor da Escola Superior Colonial (actual ISCSP), co-fundador e ex-presidente do CDS.
A trafulhice
científica fascistoide e
a desonestidade intelectual do ISCSP ficam bem ilustradas em dois
factos exemplares:
O primeiro diz
respeito a uma cadeira História do Pensamento Social (I e II, salvo
erro) que havia no ISCSP na década de 1980. O catedrático
responsável (cujo nome não recordo) interrompia a história do
pensamento social em meados do século XIX, isto é, no preciso
momento em que se pode começar a falar de pensamento social e de
ciências sociais no sentido moderno e
pleno da expressão.
Inquirido em privado
sobre essa estranha opção, confessou que desta
forma evitava ter de falar em
Karl Marx e em todo o pensamento social que lhe sucedeu; argumentava
que, se falasse da história do pensamento social pós-1860 omitindo
Marx, isso não seria
honesto (!), por isso dava
por finda a História nesse ponto.
O segundo facto
diz respeito a um aluno que, de forma incauta e inocente, se
inscreveu no curso de Comunicação Social, só demasiado tarde se
apercebendo do carácter fascista daquela escola. Por lá andou cerca
de um ano, sofrendo a presença dos colegas tipicamente
boas-famílias-provinciano-pedantes do Curso de Relações
Internacionais. Por fim, num dia diluviano, entrou na escola de capa
alentejana e chapéu de feltro
de copa redonda e aba
larga; por coincidência
cruzou-se com Adriano Moreira nos corredores e o reitor, obrigando-o
a manter uma distância respeitosa nos
monumentais corredores do Palácio Burnay,
admoestou-o nestes termos sucintos:
«O sr. não pode voltar a
entrar aqui nessa figura» (o
termo «figura» dispensava-o de referir expressamente as possíveis
conotações políticas, ainda que forçadas, da vestimenta).
Foi remédio santo: o meu amigo nunca mais voltou a lá meter os pés,
compreendendo finalmente que estava fora do seu ambiente natural.
Criar
uma cátedra sem objecto nem nome para Passos Coelho – uma
espécie de cheque em branco – numa
escola com profundas tradições colonialistas e fascistas faz todo o
sentido. É como tirar um animal raro do
suplício da jaula e
entregá-lo ao seu ambiente natural, numa reserva protegida. Ainda
para mais, trata-se de um animal de carreira, não pode ser pura e
simplesmente largado no mercado de trabalho, como um cachorro
abandonado – seria o mesmo que condená-lo à morte, uma
desumanidade abominável.
Por outro lado, atendendo à ferocidade e perigosidade exacerbadas do
bicho, onde queriam vocês que o
metessem? Na ONU? É que a
pobre alimária nem na Goldman Sachs encaixa, por falta de qualidades
e atributos.
Assim, no ISCSP,
fica muito bem. Aí formará com natural desenvoltura
a sua descendência, aí estará entre pares,
bem
protegido e isolado. É para isso que servem as reservas naturais
como o ISCSP.
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