05/03/18

Novo anedotário neoliberal (3) – Inovação tecnológica, trabalho e natureza

(Pat Stacy, técnicas mistas sobre tela, s/d)

Embora a questão da relação entre a ciência e a produção seja discutida há pelo menos dois séculos, ela é-nos apresentada hoje como uma novidade emergente. Já falei aqui sobre este tema, do qual acabei por extrair duas conclusões: 1) quanto mais poderosa a tecnologia, tanto maior o poder de quem controla os meios de produção; 2) este aumento de poder justifica o reforço da protecção dos assalariados e a aplicação, por parte destes, de contra-medidas. Pretendo agora falar-vos da relação entre tecnologia, forças produtivas e natureza.
Não é novidade que o capital se apropria da ciência e tecnologia em tudo quanto ela tenha de aplicável à extracção de lucro ou exercício do poder.
O que talvez haja de novo na actualidade é o facto de certos avanços tecnológicos permitirem abrir caminho mais largo à apropriação das forças da Natureza. Estas forças – o ar, a água, a terra, a luz do sol, a variedade genética, etc. – são-nos oferecidas a custo zero. Ainda que algumas delas possuam um valor de uso imbatível, por serem indispensáveis à manutenção da vida, à partida não incorporam trabalho em si mesmas e por isso não têm um valor mercantil susceptível de ser incorporado nos bens produzidos. Assim, o moleiro do moinho de vento tem de calcular o valor da sua farinha tendo em conta o custo do trigo, o seu próprio trabalho, o do cantoneiro que talhou a mó, o dos pedreiros que construíram o moinho, o do marceneiro que construiu as engrenagens, etc.; mas ninguém admitiria que ele cobrasse a energia eólica que pôs o moinho em movimento, porque essa é gentilmente oferecida pela Natureza. 
 
A partir do momento em que a ciência ou a tecnologia deram meios à indústria de grande escala para passar a «capturar» as forças da natureza, o capital procurou encontrar maneira de sacar novos lucros à conta dos factores naturais. A única coisa que (circunstancialmente) se interpunha entre a ganância privada e a captura das forças da Natureza era o Estado. Durante algumas décadas, nada parecia mais natural: se as forças da natureza nos são oferecidas (a todos, sem distinção), então são um bem comum; e se assim é, a sua gestão devia ser feita de forma benigna e em proveito de todos. Uma das batalhas centrais do neoliberalismo, de há três décadas para cá, tem sido a reversão desta ideia, preparando a opinião pública para aceitar a apropriação total das forças da natureza. Estamos pois perante uma questão puramente política, e não perante um problema de relação entre a ciência e a sociedade ou as forças produtivas. Assim, a seguir à fase de apropriação do conhecimento e das forças da Natureza, individualmente consideradas, surgiu a tentativa de apropriação de toda a Natureza, de jure. Esta táctica do capital permite extrair da Natureza uma renda (que não deve ser confundida com lucro, entendido este como extracção directa de mais-valia). Podemos falar (em sentido figurado) de uma segunda ronda da acumulação capitalista primitiva, desta vez à custa de factores naturais, indo muito além do mero açambarcamento de terras. Este processo pode ser observado com bastante clareza em empresas como a Monsanto: depois de terem aproveitado os avanços da ciência no campo da manipulação genética, tornaram-se «donas» de certas espécies e estão a caminho de conseguirem apropriar-se de todo o património genético da Natureza. 
 
No século XXI, sob o regime neoliberal e após o choque inicial da livre circulação do conhecimento através da rede digital, a disseminação do conhecimento deixou de ser um problema para a minoria que procura assenhorear-se da sua aplicação na produção de valor: qualquer um pode entender o fabrico duma bomba nuclear ou a manipulação genética – se estiver para aí virado –, mas apenas uma minoria ínfima pode de facto realizá-la, porque se apropriou de jure das fontes da natureza, do uso do conhecimento e dos meios necessários para realizar a proeza. Ora isto apenas pôde ser alcançado por meios políticos – a ciência, a tecnologia, os robôs, não são para aí chamados.
 
Contudo, continua a haver um busílis: o carácter gracioso das forças da natureza não se altera por efeito da sua apropriação. O facto de uma empresa privada ser capaz, graças às inovações tecnológicas, de produzir maiores quantidades de electricidade a partir de energias naturais não permite incorporar o «seu valor», porque esse valor é fictício, não pode ser quantitativamente medido. A empresa pode, claro está, tirar partido do facto de ser um monopólio – ou um grupo de empresas que se põem de acordo para manipular os preços de mercado – e inflacionar artificialmente o preço dos seus produtos. Mas este expediente tem limites, pois o «valor» mercantil das forças da natureza utilizadas não só continua a ser fictício, como entra em contradição com todo o sistema de criação de valor e funcionamento de mercado que mantém o sistema capitalista em pé. Acaba sempre por se tornar claro que os avanços científicos no domínio da Natureza não fizeram aumentar o valor dos bens produzidos; pelo contrário, em grande parte dos casos tornam mais barato o seu custo unitário.

A única forma garantida de aumentar os lucros passa pela «flexibilização» política: rebaixamento dos salários, anulação das garantias oferecidas pelas leis laborais, precarização, aumento artificial do desemprego, etc. Mas isso já nós sabíamos há dois séculos! A questão central é a seguinte: o acréscimo de riqueza proporcionado pela inovação tecnológica devia estar a ser partilhado por todos; em vez disso, está a proporcionar uma concentração crescente da riqueza nas mãos de uma minoria ínfima.
 
Uma das invenções relativamente recentes para alcançar a apropriação total da Natureza consiste no que alguns autores designam «filantropocapitalismo»: sob a capa das boas acções humanitárias (na realidade, incentivos à introdução de monoculturas onde havia uma diversidade propiciadora do bem-estar e da soberania alimentar das populações), organismos como a Aliança para uma Revolução verde em África (AGRA), da Fundação Gates, fornecem «ajuda» em troca da apropriação de todo o património genético africano.1
  
As populações locais devem identificar a natureza do problema e atacá-lo na sua raiz. Ora a sua raiz nada tem a ver com a ciência, a tecnologia e os robôs, mas sim com o poder político. Por isso a sua atenção não se deve focar no papel da ciência, mas sim nos poderes públicos. Assim, por exemplo, se a Nestlé resolver privatizar toda a água duma região,2 o que a população tem a fazer é atacar os poderes públicos, pois é aí que reside a capacidade de decidir de jure se a água é um bem natural (e portanto comum) ou se pode ser privatizada e utilizada como geradora de lucros. Neste sentido, o Estado de direito, que (bem ou mal) era tido como garante dos direitos humanos e das populações, tornou-se um inimigo das populações e da Natureza.
  
Um dos raros casos em que a raiz política do problema foi bem identificada está expresso na nova Constituição do Equador, que reconhece a Natureza como sujeito de direito. Ao tornar a Natureza titular de direitos, a Constituição equatoriana passou a tratar a «Mãe Terra» como um organismo vivo, com direitos próprios; atribui-lhe também, em caso de ofensa, o direito de restauração.

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Anexo: Direitos da natureza na Constituição equatoriana

(sublinhados meus)
Capítulo séptimo - Derechos de la naturaliza
Art. 71. La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos.
Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda.
El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema.
Art. 72. La naturaleza tiene derecho a la restauración. Esta restauración será independiente de la obligación que tienen el Estado y las personas naturales o jurídicas de Indemnizar a los individuos y colectivos que dependan de los sistemas naturales afectados.
En los casos de impacto ambiental grave o permanente, incluidos los ocasionados por la explotación de los recursos naturales no renovables, el Estado establecerá los mecanismos más eficaces para alcanzar la restauración, y adoptará las medidas adecuadas para eliminar o mitigar las consecuencias ambientales nocivas.
Art. 73. EI Estado aplicará medidas de precaución y restricción para las actividades que puedan conducir a la extinción de especies, la destrucción de ecosistemas o la alteración permanente de los ciclos naturales.
Se prohíbe la introducción de organismos y material orgánico e inorgánico que puedan alterar de manera definitiva el patrimonio genético nacional.
Art. 74. Las personas, comunidades, pueblos y nacionalidades tendrán derecho a beneficiarse del ambiente y de las riquezas naturales que les permitan el buen vivir. Los servicios ambientales no serán susceptibles de apropiación; su producción, prestación, uso y aprovechamiento serán regulados por el Estado.

Notas:
1 Ver, entre outros, Carol B. Thompson, «Philanthrocapitalism: Appropriation of Africa's genetic wealth», Review of African Political Economy, 2014.
2 Em certas regiões dos EUA já é proibido aos cidadãos recolher a água da chuva, pois todas as fontes naturais de água pertencem de jure a uma companhia privada. Que melhor exemplo de apropriação da Natureza se pode pedir?

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